1 INTRODUÇÃO[1]
As relações jurídicas têm passado por transformações significativas na era digital, com o surgimento de novas formas de transações e a valorização de ativos digitais. Dentre os ativos digitais, destacam-se os NFTs (Non-Fungible Tokens), em virtude do expressivo ganho de atenção e popularidade da tecnologia dos NFTs nos últimos anos, com especial destaque para os colecionáveis digitais.
Esta forma de ativo digital como é conhecida hoje surgiu em 2014 quando o artista Kevin McCoy e o empresário Anil Dash apresentaram a tecnologia numa conferência “Seven on Seven”, no Museu de Arte Contemporânea em Nova York (Rhizome, 2014). De lá para cá, a tecnologia evoluiu bastante; mas o conceito chave foi ali lançado.
Os NFTs são, resumidamente, ativos digitais que representam a propriedade digital de itens únicos e são registrados em uma tecnologia descentralizada conhecida como a Blockchain.
Para se ter uma ideia, em 2021, os NFTs atingiram alto índice de popularidade, tendo chegado a movimentar cerca de 17 (dezessete) bilhões de dólares, segundo a plataforma de análise de criptoativos Nansen (2022).
Corroborando, destaca-se que no ano de 2022, a pergunta “o que é NFT?” ficou em segundo lugar nas pesquisas realizadas no Google (Brasil), segundo a retrospectiva do buscador (Calado, 2022).
Os desafios jurídicos que envolvem as negociações de NFTs e a regulamentação da comercialização destes ativos digitais são complexos e relevantes, sendo fundamental compreendê-los.
Atualmente, há um interesse mundial em estudar o mercado de NFTs, com objetivo de desenvolver mecanismos de regulação eficientes, que possibilitem, por sua vez, soluções aos desafios jurídicos supramencionados que podem e vem sendo extraídos da comercialização desta espécie de ativos digitais.
Em recente estudo publicado analisamos um dos casos de grande repercussão que chegou ao Poder Judiciário dos Estados Unidos da América (EUA), que teve como pivô uma coleção de NFTs da liga americana de basquete, a NBA.
Trata-se do caso coletivo Friel vs. Dapper Labs Inc., envolvendo a coleção de tokens não fungíveis (NFTs) denominada de “Moments”, que foi desenvolvida pela empresa Dapper Labs para a grande liga de basquete americano, a “National Basketball Association” (NBA).
No estudo apresentamos os conceitos basilares sobre os NFTs (Non-Fungible Tokens) e a tecnologia descentralizada que tornou possível a sua existência, a denominada tecnologia blockchain para, ao final, analisarmos a fundamentação da decisão judicial do caso Friel vs. Dapper Labs Inc., evidenciando os elementos que deram suporte para a conclusão da Corte em negar a moção da defesa e dar prosseguimento ao processo, cuja ratio decidendi poderia servir de inspiração para a regulamentação brasileira sobre o tema, na medida em que ainda não existe norma nacional específica para os colecionáveis digitais.
No presente artigo, apresentamos uma versão resumida do estudo.
2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS SOBRE BLOCKCHAIN E TOKENS NÃO FUNGÍVEIS
A tradução literal de “Non-Fungible Token” em português poderia ser algo como “Ficha Não Fungível”, contudo o mais comum é não se traduzir a palavra token, sendo a expressão “Token Não Fungível” aquela que é normalmente encontrada na literatura brasileira, como é possível verificar no levantamento realizado.
Na língua inglesa a palavra “token” se aplica a aquilo que serve como prova de algo intangível, motivo pelo qual se pode afirmar que um token é uma representação digital de algo, podendo ainda ser fungível ou infungível.
Um exemplo de token fungível são as assim chamadas “moedas” digitais, pois são tokens que representam um valor financeiro como, por exemplo, o bitcoin.
Para o direito brasileiro são fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade (art. 85 do Código Civil Brasileiro), sendo o conceito de infungibilidade dele decorrente.
Assim, um NFT é um tipo de token que é único, não existindo outro item exatamente igual e, portanto, não pode ser substituído por outro de igual valor. Pode-se usar como exemplo do mundo físico uma pintura, pois o estilo, a técnica, as cores etc., a tornam única, pelo que a sua mera reprodução jamais terá o mesmo valor.
Essa tecnologia permite que as pessoas comprem, vendam e colecionem itens digitais únicos, por meio da Blockchain, na qual as operações são autenticadas e registradas, garantindo a propriedade, a originalidade e toda a cadeia de transmissão desde a sua criação (mineração ou cunhagem). A cunhagem é o processo de disponibilizar obras de arte digitais ao público como um registro na Blockchain (Shitole, 2022).
Em resumo, os NFTs são ativos digitais únicos que representam itens exclusivos, como obras de arte, músicas, vídeos e até mesmo e-books, e permitem que as pessoas comprem, vendam e colecionem esses ativos de forma autêntica e segura. Na sequência, aprofunda-se o tema, a partir do estudo da tecnologia por trás dos NFTs.
A tecnologia foi criada com o bitcoin (Nakamoto, 2008), a partir do reconhecimento de um problema prático. Blockchain consiste numa tecnologia que usa criptografia para guardar informações de forma descentralizada, sem precisar de intermediários. Isso significa que qualquer pessoa pode verificar essas informações sem depender de uma autoridade central, já que elas são validadas pela rede (Cendão; Andrade, 2022, p.15).
É muito comum a utilização da alegoria de que a blockchain deve ser imaginada como um grande banco de dados ou uma grande planilha que é escrita com criptografia para o registro das transações, onde cada registro parte do registro anterior num encadeamento de blocos (por isso, block chain, ou corrente de blocos ou cadeia de blocos). Como a rede é descentralizada não existe uma autoridade controladora, são os próprios usuários que validam a transação e a registram, sendo depois compartilhada com todos os demais, sendo certo que “[…] esses blocos são constantemente enviados pela rede aos outros nós encadeando com outros blocos já existentes, pelo protocolo do Blockchain” (Moraes, 2021, p. 16).
3 BREVE APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DA DECISÃO JUDICIAL DO CASO FRIEL VS. DAPPER LABS INC.
Trata-se de uma ação judicial coletiva que tramita perante o Tribunal Distrital dos Estados Unidos da América (EUA), no Distrito Sul de Nova York, sob o número 21-05837. Há uma pluralidade de réus na ação, figurando no polo passivo da demanda a empresa “Dapper Labs Inc.” e seu CEO, Roham Gharegozlou.
No processo judicial há a alegação de que a empresa Dapper Labs teria violado as leis de valores mobiliários ao oferecer para venda ao público a coleção de tokens não fungíveis (NFTs) conhecidos como “NBA Top Shot Moments”, ou simplesmente “Moments”, sem preencher a adequada declaração de registro na “Securities and Exchange Commission” (SEC), o que seria o equivalente a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil. Isto é, a grande questão em jogo é: deveriam os NFTs da coleção “Moments” serem considerados títulos mobiliários (valores mobiliários) ou não?
A decisão objeto do presente estudo teve grande repercussão para o mundo dos ativos digitais, pois se trata de um caso coletivo envolvendo uma coleção de tokens não fungíveis (NFTs) da grande liga de basquete americano, a “National Basketball Association” (NBA) que é a principal liga de basquetebol profissional da América do Norte, sendo também considerada a principal liga de basquete do mundo, conforme destaca a coluna “Jumper Brasil”, do jornal esportivo “Lance!” (Freitas, 2023). Para se ter uma ideia do volume financeiro envolvido nas coleções ofertadas pela Dapper Labs em sua blockchain existem mais de 1,5 milhões de usuários da coleção “NBA Top Shot” cujas vendas ultrapassam 1 (um) bilhão de dólares americanos (Stempel, 2023).
Em sua decisão o juiz (Victor Marrero) discorre sobre o modelo de negócio da Dapper Labs e sobre questões técnicas de uma blockchain. Ele aborda a distinção entre blockchain pública e privada, além de realizar a diferenciação entre as validações por meio da “proof of stake” e “proof of work”.
O magistrado ainda resgata que foi a Dapper Labs que criou a famosa coleção de sucesso “CriptoKitties” referindo expressamente que a Rede Ethereum foi utilizada naquele projeto e que, por causa do grande volume negociado, chegou a sobrecarregar a rede, causando uma desaceleração de todas as suas transações.
Na sequência, o magistrado aborda a criação da blockchain “Flow” e seu token específico, destacando o controle da Dapper Labs sobre a rede e sobre o Marketplace que possibilita as aquisições da coleção “Moments” no mercado secundário (onde um usuário que comprou o NFT inicialmente pode comercializar, caso queira, para terceiros interessados).
Outrossim, há destaque para a criação pela Dapper Labs do aplicativo blockchain, NBA Top Shot (em 2019), por meio de uma joint venture dela com a National Basketball Association (NBA) e a NBA Players Association (NBAPA). Ou seja, a Dapper Labs criou uma solução proprietária (uma plataforma ou aplicativo) pertencente a ela e por ela operada, construída sobre a Flow Blockchain (também dela proprietária).
Ao realizar a contextualização do caso, o juiz também realiza uma discussão de relevo trazendo precedentes sobre a matéria e analisa o seu enquadramento ao caso concreto em análise, ou seja, ele contextualiza as decisões precedentes e sua aplicabilidade ao novo caso concreto que está em apreciação, contextualizando e expondo as razões de decidir (ratio decidendi) de cada caso suscitado. No presente estudo, pela limitação do escopo, não se adentra nestas questões.
Dando continuidade à análise do caso, o magistrado analisa o comportamento da empresa nas mídias sociais, a forma como ela se comunica com seu público, bem como as promessas implícitas que estão presentes na sua comunicação, inclusive, para além do “mero texto”, analisando as ideias comunicadas pelos emojis constantes nas mensagens. O magistrado chega a utilizar a impressão de tela (os chamados prints) de “tweets” no corpo da sua decisão para realizar a apreciação das mensagens publicitárias.
Ao analisar os “tweets” da empresa sobre a comercialização dos “Moments” o magistrado deixa claro, após realizar a impressão dos “tweets” no corpo da sua decisão que: “[…] embora a palavra literal “lucro” não esteja incluída em nenhum dos tweets, o emoji de “foguete”, o emoji de “gráfico de ações” e o emoji de “sacos de dinheiro” significam objetivamente uma coisa: um retorno financeiro sobre o investimento. ”[2](United States of America, 2023, p. 46).
Como se vê, o comportamento e a comunicação da empresa nas mídias sociais foram considerados de extrema relevância para a formação do convencimento do magistrado e do fundamento jurídico da decisão. Assim, tem-se mais um fundamento relevante: as promessas implícitas de resultado financeiro realizadas diretamente pela empresa em suas mídias sociais.
Outro fundamento relevante é o controle que a Dapper Labs possui do Marketplace, sendo certo que “a Dapper Labs não reconhece e não endossa a venda ou troca de Moments fora do Marketplace.”[3] (United States of America, 2023, p.11). Isto é, a criação de uma blockchain privada, com seu token próprio se mostrou com um dado relevante para tomada de decisão.
Por fim, em fecho, percebe-se que um dos principais fundamentos para a conclusão da Corte é a criação e manutenção de uma blockchain privada (United States of America, 2023, p.62).
Notas
[1] Artigo completo publicado originalmente no e-book Direito, Governança e novas tecnologias II [Recurso eletrônico on-line] Organização CONPEDI Coordenadores: Beatriz de Castro Rosa; Edson Ricardo Saleme; Gustavo Cesar Machado Cabral.– Florianópolis: CONPEDI, 2023. disponível em: http://site.conpedi.org.br/publicacoes/pxt3v6m5/oz3d68xv/R1YpWjh8K9AXwkbo.pdf
[2] Tradução livre do original: “And although the literal word “profit” is not included in any of the Tweets, the “rocket ship” emoji, “stock chart” emoji, and “money bags” emoji objectively mean one thing: a financial return on investment.”
[3] Tradução livre do original: “Dapper Labs does not recognize and does not endorse Moments being sold or traded outside of the Marketplace”
Referências
CALADO, Vinicius. Afinal, o que é um NFT?. Diário de Pernambuco, Recife, 28 dez 2022. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/opiniao/2022/12/afinal-o-que-e-um-nft.html. Acesso em: 20 abr. 2023.
CALADO, Vinicius; TROCCOLI, Matheus. Colecionáveis Digitais (NFTs) podem ser considerados Ativos Mobiliários? Uma Análise a partir do caso Friel contra Dapper.Labs Inc. e Outros. Direito, Governança e novas tecnologias II. Organização CONPEDI. Coordenadores: ROSA, Beatriz de Castro; SALAME, Edson Ricardo; CABRAL, , Gustavo Cesar Machado. Florianópolis: CONPEDI, 2023. Disponível em: http://site.conpedi.org.br/publicacoes/pxt3v6m5/oz3d68xv/R1YpWjh8K9AXwkbo.pdf. Acesso em: 04 maio 2024.
CENDÃO, Fabio; ANDRADE, Lia. Direito, Metaverso e NFTs: Introdução aos desafios na Web3. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555599121. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555599121/. Acesso em: 03 jul. 2023.
Comissão de Valores Mobiliário (CVM). Parecer de Orientação CVM n.º 40. Os CriptoAtivos e o Mercado de Valores Mobiliários. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 out. 2022. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. Acesso em: 10 abr. 2024.
FREITAS, Gustavo. Quem são os 5 maiores campeões da NBA. Lance!. 2023. Disponível em: https://jumperbrasil.lance.com.br/quem-sao-os-5-maiores-campeoes-da-nba/. Acesso em: 22 mar. 2024.
MORAES, Alexandre Fernandes D. Bitcoin e Blockchain: a revolução das moedas digitais. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. 9786558110293. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786558110293/. Acesso em: 25 abr. 2024.
NAKAMOTO, S. Bitcoin: Um Sistema de Dinheiro Eletrônico Ponto-a-Ponto. Bitcoin Whitepaper, 2008. Disponível em: https://bitcoin.org/files/bitcoin-paper/bitcoin_pt.pdf. Acesso em: 25 jul. 2022.
NANSEN. Nansen’s State of The Crypto Industry Report 2021, 2022. Disponível em: https://www.nansen.ai/report/nansens-state-of-the-crypto-industry-report-2021. Acesso em: 20 mar. 2024.
RHIZOME. “Seven on Seven 2014: Kevin McCoy & Anil Dash” (vídeo). 2014. Disponível em: www.vimeo.com/96131398. Acesso em: 16 maio 2024.
SHITOLE, Piyush et al. SURVEY ON NFT MINT, BUY AND SELL WEB APPLICATION. International Research Journal of Modernization in Engineering Technology and Science (Peer-Reviewed, Open Access, Fully Refereed International Journal), Volume:04/Issue:11/November-2022. Disponível em: https://www.irjmets.com/uploadedfiles/paper/issue_11_november_2022/31549/final/fin_irjmets1669271912.pdf. Acesso em: 01 maio 2024.
STEMPEL, Jonathan. U.S. judge permits lawsuit claiming NBA Top Shot NFTs are securities The Thomson Reuters, 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/legal/us-judge-permits-lawsuit-claiming-nba-top-shot-nfts-are-securities-2023-02-22. Acesso em: 05 abr. 2024.
UNITED STATES OF AMERICA, United States District Court Southern District of New York. Friel v. Dapper Labs Inc et al, n.º 21-05837. Plaintiff: Jeeun Friel. Defendants: Dapper Labs Inc. and Roham Gharegozlou. Judge: Victor Marrero. New York, 22 Feb 2023. Disponível em: https://www.documentcloud.org/documents/23687222-friel-v-dapper-labs-inc-et-al. Acesso em: 20 maio 2024.
Vinicius Calado
Doutor em Direito, professor do Mestrado Profissional em Direito e Inovação da Universidade Católica de Pernambuco e advogado.
Matheus Troccoli
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito e Inovação (PPGDI) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e advogado.