A teoria econômica convencional aponta o setor de saneamento como um típico monopólio natural. É dizer, na prestação de tais serviços, só poderá haver um prestador, uma vez que os custos iniciais são elevados (sunk costs) e os custos, para sua utilização, por cada novo usuário, são baixos (custos incrementais). Assim, para que a atividade se torne economicamente viável, deve-se retirá-la da esfera da concorrência para a obtenção de economias de escala e de eventuais economias de escopo, sobrepostas às economias de densidade, sob pena de a competição por usuários impossibilitar a amortização dos investimentos afundados.
A prestação, em cada mercado relevante, sob uma estrutura de mercado monopolista, por sua vez, enseja diversas questões, notadamente, nos livros-texto, a ineficiência alocativa decorrente da precificação com lucros sobrenormais pelo detentor do monopólio, ensejando algum controle público das variáveis econômicas – genericamente, a regulação, que também tem como objetivo controlar aspectos técnicos que, sob assimetrias informacionais marcantes, pode ser indevidamente manipulada pelo monopolista.
Entretanto, há questões adicionais de economia política que se verificam na prática em operações de saneamento como a brasileira. A principal delas é que o “regulador”, confundido com o papel de titular ou poder concedente quando detém o monopólio em sua própria utility estatal, está sob outro tipo de falha de mercado, uma assimetria de informação no processo político-eleitoral, que o leva a escolher entre, de um lado, a preservação da situação financeira da sua empresa controlada ou departamento/autarquia, e o sistema de ônus e bônus eleitorais da manipulação dessa tarifa. Em regra, a tarifação pende para a obtenção de bônus eleitorais pelos incumbentes, em detrimento da sustentabilidade da prestação. Ocasionalmente, e por razões diversas, algum administrador incumbente de ente subnacional busca reverter o quadro, com um choque tarifário.
Em quase todos os casos, entretanto, essa dinâmica vem dissociada dos bons princípios de criação de incentivos aos objetivos regulatórios mais nobres que a literatura aponta: a modicidade tarifária; a promoção da universalização e fomento à cobertura dos contingentes populacionais não conectadas; a própria eficiência na prestação, de forma mais fina que as grandes economias de escala, escopo e densidade já ensejadas pela operação monopolista; a preservação dos aspectos de qualidade e de atendimento que se encontram ocultos à percepção direta do usuário pela presença de assimetrias informacionais; e eventualmente alguns objetivos adicionais, politicamente contratados, de ASG (ambiente, sustentabilidade e governança).
Muitos dos avanços recentes dos serviços de saneamento no Brasil vêm confiando em duas grandes linhas de solução, documentadas na literatura.
Uma linha, particularmente voltada a operações que não tenham sido previamente submetidas ao teste do mercado, notadamente às companhias estatais e serviços autônomos, diz respeito à definição de uma entidade reguladora independente, exercendo uma função regulatória para o controle dos aspectos técnicos sujeitos às assimetrias informacionais, e com capacidade para a definição de tarifas, baseadas em incentivos ou menos frequentemente em recuperação de custos, no horizonte de ciclos tarifários com duração pré-definida. Trata-se do ambiente da regulação discricionária, que exige entidades reguladoras com forte capacidade técnica (e não capturadas) devido ao hermetismo e a crescente sofisticação dos modelos empregados.
A outra linha é que, preservado o caráter de monopólio do mercado relevante da prestação dos serviços de saneamento em si, se estabeleça um ambiente competitivo no mercado antecedente de concessões de operação. Como, na linha proposta por Harold Demsetz[1], a competição ex ante (Competition for the Market)[2] emula a competição em mercado captando uma parte relevante das eficiências potenciais. Tendo em vista a ênfase dada a esse tipo de competição antecedente, a preservação do pacto contratual assume papel central nesse tipo de solução. Embora quase tudo seja contratualizado, a observação dos aspectos técnicos e a operacionalização dos reequilíbrios contratuais pode contar com uma entidade reguladora independente cujos poderes, no caso, são mais limitados, reduzindo, sensivelmente, o risco regulatório envolvido. Trata-se, aqui, da operação privada sob regulação contratual.
Dessa forma, o quadro atual dos serviços de saneamento pode ser representado, sob o ponto de vista das grandes linhas dos sistemas de incentivo vigentes, em duas grandes linhas: a regulação por ERI (Entidade Reguladora Independente) e a regulação por contrato. A tabela a seguir desenvolve um pouco mais a situação fática no Brasil, pois não se pode dizer que ambas existem de forma plena: há situações intermediárias, que devem ser consideradas.
Os imensos desafios remanescentes foram objeto das propostas legislativas, que culminaram na Lei n° 14.026/2020 (Novo Marco Regulatório do Saneamento. Cuida-se de normativo que tem os seguintes pilares principais: (i) a obrigação regulatória de universalização dos serviços de água e esgoto até 31 de dezembro de 2033; (ii) conferir uma coerência regulatória setorial, por intermédio das normas de referência, a serem editadas, pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico-ANA, reduzindo os grandes riscos regulatórios trazidos pela fragmentação e pela heterogeneidade dos mais de 60 reguladores subnacionais; (iii) engendrar uma indução regulatória à prestação regionalizada, com o desiderato de, por meio da obtenção de economias de escala e de escopo, atender à obrigação de universalização; (iv) reforçar a abertura do mercado à competição ex ante, por intermédio da introdução de uma regulação contratual mais eficiente.
Nesse quadrante, a Lei n°14.026/2020 tem por desiderato estabelecer uma regulação mais eficiente sobre as instituições centrais: o Contrato de Concessão, que enredará a disciplina da relação público-privada e a Entidade Reguladora Independente. E, mais que isso, pretende-se endereçar um nexo causal entre as dimensões institucionais, a regulação, a competição e a universalização, que pode ser evidenciada pela seguinte ilustração:
É, nesse contexto, que deve ser interpretado o leilão da CEDAE. Trata-se de uma iniciativa que converte o ambiente de regulação discricionária da estatal, em um ambiente mais moderno de regulação contratual, minimizando o elevado custo imposto aos usuários fluminenses pelo risco regulatório antes prevalecente. Claro está que a solução envolve custos de transação indesejáveis, particularmente ao manter na relação contratual a empresa estatal, em posição de intermediária, conciliando a solução ótima com a preservação de interesses estabelecidos. Assim, alguns elementos podem ser observados nesse processo.
Em primeiro lugar, o próprio leilão para a exploração dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário, nos municípios licitados em blocos, já é um exemplo saliente de avanço regulatório. É que a regulação de entrada, em contratos de concessão, tem por objetivo extrair, ex ante, eficiência de um mercado que será explorado de forma monopólica. Para tanto, uma das primeiras formas de regulação incidente sobre tais mercados é a realização de um leilão (franchise bidding), por intermédio do qual se pretende, num ambiente de pressão competitiva, estabelecer um regime de competição pelo mercado. É dizer, por intermédio dos leilões, no âmbito da instauração de uma competição ex ante, sugere-se que serão praticados os melhores preços ex post[3], dentro de padrões técnicos e de atendimentos socialmente estipulados ex ante. A regulação de entrada, ao definir áreas, também poderá colaborar para reduzir a prática de subsídios cruzados quando firmas multiprodutos pretendam privilegiar as atividades mais rentáveis (cream skimming) em determinados segmentos, se aproveitando da condição de monopolista em outros. Outra utilidade desse instrumento é o estabelecimento de um regime de transição entre um ambiente monopolista e um ambiente competitivo, no caso no mercado de concessões.
Para além de se abrir o mercado à competição (superando-se o modelo de exploração pública via Companhia Estadual de Saneamento – CESB), o Leilão foi desenhado, por intermédio de uma lógica de incentivos que tende a propiciar economias de escala, de escopo e a própria sustentabilidade econômica do ativo, nos termos do que determina o art. 2°, XIV, da Lei n°11.445/2007, com a redação dada pela Lei n°14.026/2020 (Novo Marco Regulatório do Saneamento). É dizer, a licitação por blocos, lastreada, a partir da instituição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, unidade regional instituída pela Lei Complementar Estadual nº 184/2018, ao dar cumprimento ao disposto no art. 3°, IV, da Lei n°11.445/2007 (com redação dada pela Lei n°14.026/2020, tende a criar um sistema de subsídios cruzados mais transparente, bem como induzir a exploração mais eficiente de serviços de interesse comum (art. 8°, I, da Lei n°14.026/2020)
Mas que isso, se instituiu uma governança regulatória para endereçar os interesses do Município (titular do serviço, nos termos da ADI n°1842), por intermédio do Contrato de gerenciamento e dos Conselhos de Titulares, instrumentos que tem por objetivo, respectivamente, complementarmente ao convênio de cooperação, disciplinar a transferência da organização e do gerenciamento da prestação regionalizada dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, na área urbana dos Municípios agrupados em blocos, bem como propiciar a interlocução entre os titulares do serviço municipal.
Na modelagem, previu-se a cobrança de uma outorga fixa, composta pelo pagamento realizado, pela concessionária, ao Poder Concedente, como condição à exploração da concessão, cujos valores serão compartilhados pelo estado com os municípios e o fundo de desenvolvimento da região metropolitana. E uma outorga variável, que corresponde a um pagamento mensal realizado pela concessionária aos municípios e ao fundo de desenvolvimento da região metropolitana, correspondente a um percentual da receita tarifária oriunda dos pagamentos das tarifas pelos usuários localizados em seus territórios. A análise dessas questões de modelagem vale um outro artigo. Pode-se dizer, entretanto, que há argumentos que apontam que, em razão do adiantamento de vultosos recursos pelo concessionário (próprios ou de terceiros) a fim de se fazer frente ao pagamento de uma outorga ufront, cria-se o incentivo para que tais valores sejam amortizados, durante a execução do contrato, para o que se predica de uma adequada execução de seu objeto; com isso, evita-se a prática de comportamentos oportunistas (rent-seeking). Para além disso, nos casos da fixação de outorgas variáveis, tal critério de julgamento poderá propiciar a geração de uma reserva financeira serviente a financiar o pagamento de reequilíbrios contratuais e de eventuais indenizações pela extinção prematura da avença (por caducidade, anulação, encampação, relicitação ou rescisão).
O projeto adotou, ainda, a sistemática de “gatilhos de investimentos”. De acordo com tal previsão, toda vez que determinado parâmetro de demanda for atingido, um gatilho será acionado, determinando que o parceiro privado invista de acordo com os critérios preestabelecidos[4]. Cuida-se de importante previsão que tem por desiderato fomentar que a remuneração do concessionário (receita) seja compatível com os objetivos de interesse públicos enredados por intermédio de pactos concessórios e com os custos gerados pelo projeto (tais como os relacionados às obrigações de investimentos, ao pagamento de financiamentos e ao cumprimento de obrigações regulatórias).
Por fim, é de destacar a sistemática de equilíbrio econômico-financeiro da modelagem licitada, que traz importantes avanços para a regulação contratual setorial. A primeira diz com a inclusão de deflatores tarifários atrelados ao desempenho contratual da concessionária, previsão que produzirá ainda mais incentivos para o atendimento das obrigações de desempenho e de investimentos. Mais que isso, a modelagem considera os efeitos do evento desequilibrante, no âmbito da prestação regionalizada, o que propiciará o reequilíbrio mais amplo desses contratos, considerando, ainda, o sistema de subsídios cruzados transparentes que será implementado. Dignos de nota, ainda, são a simplificação do procedimento de reajuste, que reforça a sua natureza jurídica de ato administrativo vinculado. E, ainda, a configuração de Revisão Extraordinária como um instrumento de reequilíbrio emergencial, deixando, para a Revisão Ordinária, os desequilíbrios de menor porte, intrínsecos à incompletude dos pactos concessórios. Cuida-se de relevante avanço, justamente, na medida em que um dos grandes elementos que destroem os modelos discricionários é o risco regulatório subjacente aos eventos tarifários, tanto de reajuste quanto de revisão, que são, sistematicamente, procrastinados no universo setorial brasileiro.
Em suma, temos para nós que, mais do que o retorno financeiro, o Leilão da CEDAE se configura como um importante avanço no trespasse de uma regulação com forte carga discricionária (notadamente no âmbito da regulação por “custos”, que lastreava a exploração pelas CESBs) para uma regulação contratual. Mais que isso, a modelagem engendrada põe freios a importantes elementos de externalidades negativas produzidas pela exploração monopólica; reduz a assimetria de informações entre partes (Regulador, Concessionário e Usuários); direciona o setor para o atendimento da tão alvitrada (e atrasada) universalização. Para além disso, consolida a abertura de um mercado nacional em que a força da competição produzirá incentivos, ex ante, em vez de confiar em modelos regulatórios, extremamente, sofisticados, que admitem doses de subjetividade cujo custo econômico, em termos de custo de capital, vem se revelando proibitivo em relação ao objetivo da universalização dos serviços em várias partes do país.
Rafael Véras é professor Responsável do LLM
em Direito da Regulação e da Infraestrutura da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
Frederico Turolla é Doutor e Mestre em Economia de Empresas
pela Fundação Getúlio Vargas – SP (2005, 1999), com
intercâmbio em International Economics and Finance
pela Brandeis University.
[1] DEMSETZ, Harold. Why regulate utilities. Journal of Law and Economics. V. 11, n. 1, p. 55 – 65, 1968.
[2] CAMACHO, Fernando Tavares; RODRIGUES, Bruno da Costa Lucas. Regulação econômica de infraestrutura: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, n. 41, junho de 2014.
[3] PHILLIPS JR., C. F. The regulation of public utilities: theory and practice. Arlington, VA: Public Utilities Report Inc., 1993. DEMSETZ, H. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, n. 11,v. 1, p. 55-65, 1968.
[4] Cuida-se sistema de inventivos, que já teve a sua validade reconhecida pelo Tribunal de Contas da União – TCU, nos seguintes termos: “Ante o exposto, cabe determinar à ANTT que faça constar expressamente no Contrato de Concessão decorrente do Edital 001/2011-BR-101/ES/BA a obrigação de o concessionário realizar a infraestrutura (exceto o pavimento) das terceiras faixas do subtrecho homogêneo D juntamente com sua duplicação, sendo a execução da pavimentação do referido subtrecho condicionada ao atingimento do gatilho definido na Tabela 3.2 do Anexo 2 da minuta de contrato (PER), conforme registrado em seu Plano de Negócios e confirmado em resposta à diligência promovida pela Comissão de Outorga” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2.573/2012 – Plenário. 26.09.2012).
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REVISTA BRASILEIRA DE INFRAESTRUTURA – RBINF
REVISTA DE CONTRATOS PÚBLICOS – RCP
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