O setor de saneamento enfrenta desafios regulatórios não triviais. O mais saliente, para o aqui importa, decorre das denominadas falhas de coordenação[1], as quais dizem respeito aos casos de inconsistências e incoerências regulatórias experimentadas pela multiplicidade de entidades reguladoras subnacionais no setor de saneamento. Razão pela qual o art. 48, III, da Lei n°11.445/2007 (com redação alterada pela Lei n°14.026/2020), define como uma das diretrizes da Política Nacional de Saneamento a “uniformização da regulação do setor e divulgação de melhores práticas, conforme o disposto na Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000”. Cuida-se de objetivo que pretende ser atingido a partir da nova competência que foi atribuída à ANA para a edição de normas de referência de que tratam os artigos 1º e 4º-A, §1º, da Lei nº 9.984/2000 c/c art. 25-A da Lei nº 11.445/2007.
Não se trata de competência normativa regulatória lastreada no tradicional e desgastado enforcement de comando-controle. É que, de acordo com o Novo Marco Regulatório do Saneamento, a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União serão condicionados à observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento expedidas pela ANA (art. 50, inciso III, da Lei n°14.026/2020 e art. 4º, inciso III, do Decreto nº 10.588/2020). Ao poder do spending power, soma-se a força do moral suasion: uma vez estabelecida em norma de referência, uma diretriz tende a se influenciar a regulação subnacional mesmo quando os recursos da União não são ali necessários.
São as razões pelas quais estamos de acordo com Rafaella Peçanha Guzela, para quem as normas de referência podem ser situadas “enquanto regulação normativa, e, em termos de intensidade, enquanto soft regulation. São elas normas jurídicas de fato, destinadas a prescrever comportamentos e modificar a conduta de seus agentes. Porém, não por meio de coerção punitiva, mas indução e estímulos”. Ainda de acordo com visão da doutrinadora, “sua não adoção não é atrelada a uma punição, mas a sua observância é atrelada a uma vantagem, um benefício que incentiva a conduta em conformidade com a norma de referência”.[2] Acrescentamos que o benefício da conduta não se circunscreve à possibilidade de atração de determinada fonte de recursos federais, pois inclui também a legitimidade conferida à conduta que estará em conformidade com norma nacionalmente discutida e validada em processos de construção socialmente participativos e sujeitos à devida Análise de Impacto Regulatório.
De fato, a soft regulation pode ser entendida como uma modalidade de regulação que não se lastreia na técnica de comando-controle.[3] A doutrina internacional destaca que a soft regulation pode se materializar, por exemplo, em diretrizes não sancionatórias, recomendações ou códigos normativos de conduta, sem efeitos jurídicos imediatos, uniformemente vinculantes, diretos, precisos e com monitoramento claramente delineado.[4] Assim, é de se concluir que a soft regulation se aproxima, de um lado, da proposta de desenho regulatório decorrente da Teoria da Regulação Responsiva, de acordo com a qual a efetividade da regulação está relacionada com a criação de regras que incentivam o cumprimento voluntário pelo regulado.[5] E, de outro, no sentido de que a soft regulation se relaciona ao conceito de Smart Regulation, uma vez que recomenda formas flexíveis e inovadoras de regulamentação, afastando-se da clássica abordagem regulatória de comando-controle.[6]
Tal forma de regulação apresenta as seguintes vantagens:[7] (i) a adaptabilidade e flexibilidade às situações concretas; (ii) rapidez e menor custo para elaboração e implementação da regulação; (iii) mais assertividade e eficiência diante do problema regulatório que se pretende resolver; (iv) capacidade de influenciar e orientar pedagogicamente os regulados aos comportamentos desejados; (v) capacidade de aproveitar o conhecimento e a experiência dos regulados para lidar com questões específicas do setor; e (vi) menor custo e maior celeridade para resolução de conflitos.[8]
Para além disso, é de se destacar a natureza responsiva de tal novel modalidade de normativo regulatório. Tanto é verdade que o 11-B, § 9°, da Lei n° 11.445/2020 (incluído pela Lei n° 14.026/2020, prescreve que “Quando os estudos para a licitação da prestação regionalizada apontarem para a inviabilidade econômico-financeira da universalização na data referida no caput deste artigo, mesmo após o agrupamento de Municípios de diferentes portes, fica permitida a dilação do prazo, desde que não ultrapasse 1º de janeiro de 2040 e haja anuência prévia da agência reguladora, que, em sua análise, deverá observar o princípio da modicidade tarifária”. Cuida-se de vertente regulatória que deve levar em consideração: (i) o attitudinal setting dos agentes regulados;[9] (ii) o ambiente institucional no âmbito do qual a regulação incide; (iii) as diferentes lógicas na aplicação de ferramentas e estratégias regulatórias; (iv) a performance do próprio regime regulatório por ele endereçada; e (v) as possibilidades de mudança e de alteração da própria regulação[10].
Claro que não se pode desconsiderar a pertinente advertência de Carlos Roberto de Oliveira[11] segundo a qual “a norma de referência não retira e tampouco deslegitima o poder normativo das agências reguladoras infranacionais – somente traz balizas para moldar critérios de padronização nacional”. Tanto é verdade que, de acordo com art. 23 da Lei n°11.445/2007 (alterado pela Lei n°14.026) “A entidade reguladora, observadas as diretrizes determinadas pela ANA, editará normas relativas às dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços públicos de saneamento básico, que abrangerão, pelo menos, os seguintes aspectos”.
Nada obstante, temos para nós que tal novel competência normativa regulatória pode contribuir para o advento de um novo modelo de regulação no direito brasileiro, que deve: (i) fomentar que o regulado proponha formas de alteração do seu próprio comportamento; (ii) elogiar os regulados que demostrem compromisso em mudar o seu comportamento evasivo da regulação; (iii) criar níveis de avalição qualitativos dos regulados, que possam premiar a adequação dos seus comportamentos; (iv) sinalizar aos regulados que podem lançar mão de escaladas punitivas, mas sem ameaça-los; (v) se coordenar com uma rede de reguladores (em uma Governança que poderá assumir formato piramidal), de modo a endereçar um sistema de autoaprendizagem experimental de suas próprias práticas reguladoras[12]. Os desafios do desenho de tais normativos são salientes, mas os seus resultados podem ser alvissareiros.
Rafael Véras
Consultor Jurídico em Setores de Infraestrutura.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
Frederico Turrola
Doutor e Mestre em Economia de Empresas pela FGV – SP (2005, 1999),
com intercâmbio em International Economics and Finance pela Brandeis University.
Notas
[1] A coordenação regulatória, diversamente, é o ajuste de padrões domésticos a formatos ou molduras regulatórias estrangeiras, permitindo verificar preferências regulatórias diferentes. (DREZNER, D. W. All Politics is Global: explaning international regulatory regimes. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2007 apud RACHMAN, Nora Matilde. Caminhos da Cooperação Regulatória no Mercado de Capitais. 2013. Tese. (Doutorado em Relações Internacionais) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013).
[2] GUZELA, Rafaella Peçanha. Normas de referência para o setor de saneamento: um exame conceitual. Revista de Direito Público da Economia, ano. 19, nº 74, 2021, p. 201.
[3] Ana Paula Andrade de Melo e Fernando Meneguin asseveram sobre a soft regulation: “podem ser elaboradas com a participação direta dos interessados e ter abrangência nacional ou transnacional. E que antecedem, complementam, suplementam ou substituem a regulação tradicional, a depender da necessidade e do contexto, como mais uma alternativa para minimizar um problema regulatório” (MENEGUIN, Fernando B.; MELO, Ana Paula Andrade de. Soft regulation: formas de intervenção estatal para além da regulação tradicional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, 2022, p. 11-12).
[4] Nesse sentido, ver: KASA, Sjur; WESTSKOG, Hege; ROSE, Lawrence E. Municipalities as frontrunners in mitigation of climate change: does soft regulation make a difference? Environmental Policy and Governance, v. 28, p. 98-113, 2018.
[5] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive regulation: transcending the deregulation debate. New York: Oxford University Press, 1992.
[6] “Emerging form of regulatory pluralism that embraces flexible, imaginative, and innovative forms of social control which seek to harness not just governments but also business and third parties” (GUNNINGHAM, Neil. Enforcement and compliance strategies. In: LODGE, Martin; CAVE, Martin; BALDWIN, Robert (ed.). The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 752ss).
[7] MENEGUIN, Fernando B.; MELO, Ana Paula Andrade de. Soft regulation: formas de intervenção estatal para além da regulação tradicional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, 2022, p. 16 e 19.
[8] Nesse sentido: “Soft regulatory practices are said to have several advantages. They are noted for their adaptability to local circumstances, their ability to influence the motivations of important actors, and their suitability for dealing with complex regulatory issues such as health policy (…), labour standards (…) and environmental policies (…). They imply a recognition of the limits of more traditional top-down regulatory approaches” (KASA, Sjur; WESTSKOG, Hege; ROSE, Lawrence E. Municipalities as frontrunners in mitigation of climate change: does soft regulation make a difference? Environmental Policy and Governance, v. 28, 2018, p. 99).
[9] BALDWIN, Robert; BLACK, Julia. Really Responsive Regulation. The Modern Law Review, v. 71, nº 1, 2008, p. 60).
[10] Um crítica à abstração dos dois modelos de regulação responsiva é destacado em Oren Perez, Responsive Regulation and Second-order Reflexivity: on the limits of regulatory intervention. UBC Law Review, 44 (3), p. 743-778.
[11] OLIVEIRA, Carlos Roberto de. A regulação infranacional e o novo marco regulatório. In: GRANZIERA, Maria Luiza Machado; OLIVEIRA, Carlos Roberto de (org.). O novo marco do saneamento básico no Brasil. Indaiatuba: Editora Foco, p. 73-87, 2021
[12] BRAITHWAITE, John. The Essence of Responsive Regulation. U.B.C. Law Review, v. 44, nº 3, 2011, p. 482.