Aplicativos de economia compartilhada e a tutela da vulnerabilidade dos usuários | Coluna Direito Civil

6 de abril de 2021

 


Eduardo Nunes de Souza
é doutor e mestre em Direito Civil
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil dos cursos de Graduação,
Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da UERJ.

 


Cássio Monteiro Rodrigues
é doutorando e mestre em Direito Civil
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Especialista em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor
pela EMERJ. Professor convidado de cursos da PUC-Rio
e do CEPED-UERJ. Advogado.

 

 

Nos últimos anos, o modelo negocial do consumo compartilhado tem observado um crescimento exponencial, muito impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, que tem permitido a difusão de aplicações para dispositivos eletrônicos oferecendo essa modalidade de contratação. Os contratos de economia de compartilhamento afirmam-se, assim, nos mais variados setores econômicos, tais como lazer, transporte de pessoas ou de carga, locação de bens, habitação etc. (pense-se, por exemplo, nas plataformas Airbnb, Ebay, Rappi, Dog Hero, Uber, 99, BlaBlaCar, Zopa, Bliive, dentre muitas outras), em um modelo atraente de organização da atividade produtiva e de troca de bens e serviços, transformando a estrutura do mercado, a forma de acesso e circulação de bens e os sistemas de prestação de serviços.

Tão vertiginoso foi o crescimento do setor da economia compartilhada nos últimos anos que a dogmática jurídica ainda não foi capaz de aquilatar seu conceito (desconhecido, em larga medida, até mesmo pelos próprios agentes de mercado que dela se utilizam). Muito menos existe consenso doutrinário com relação aos efeitos jurídicos produzidos para os contratantes, o que dificulta sobremaneira a correta qualificação desse modelo negocial e sua adequação às estruturas normativas contratuais existentes. Em linhas gerais, porém, costuma-se observar que os contratos de sharing economy traduzem um novo momento econômico, em que a lógica proprietária é substituída por novas formas de aproveitamento dos bens jurídicos, mais racionais e eficientes, que garantem o acesso às utilidades por eles proporcionadas independentemente da aquisição da titularidade de direitos reais sobre eles.

A nota distintiva da sharing economy, assim, parece estar no compartilhamento ou na utilização racional dos bens, propósito em prol do qual a construção de um forte sistema jurídico de tutela da confiança tem sido considerada essencial. O ponto de partida para a configuração dessa estrutura relacional, geralmente triangular, é a criação de uma plataforma de compartilhamento, termo que designa não apenas o aplicativo eletrônico, mas também a própria entidade responsável por operá-lo. A plataforma costuma ser detentora da tecnologia da informação que permite conectar os demais agentes que serão integrados à relação, sendo encarregada, na maioria das vezes, da intermediação e da organização do compartilhamento.

Ao entrar em operação, a plataforma dedica-se a arregimentar usuários-fornecedores, que com ela contratam, anuindo com termos e condições gerais que os autorizam, então, a se utilizarem do arcabouço tecnológico por ela disponibilizado para compartilharem (rectius, ofertarem) bens ou serviços ao público. Paralelamente, ocorre também a contratação entre o usuário-consumidor e a plataforma de compartilhamento. Nesta ocasião, o primeiro aceita as condições estipuladas por esta última no tocante à intermediação do negócio (que podem abranger desde as obrigações das partes até, em certos casos, o próprio preço dos serviços). Mas a triangulação da relação apenas ocorrerá com uma nova declaração de vontade por parte do usuário-consumidor, ao solicitar um bem ou serviço específico de um dos usuários-fornecedores (que poderá ou não ter sido escolhido pela própria plataforma, a depender do caso). O vínculo formado, em seguida, entre os dois usuários pode assumir diversas aparências, como se se tratasse de uma relação jurídica convencional de locação, prestação de serviços, compra e venda, permuta ou até mesmo correspondendo a um contrato atípico.

Forma-se, assim, uma estrutura negocial inovadora, plurilateral, entre a plataforma (que poderá assumir contratualmente os mais variados papéis, desde mera intermediária até efetiva fornecedora) e os seus usuários. Do ponto de vista jurídico, esses arranjos incomuns preocupam, por gerarem dúvidas quanto ao regime normativo aplicável a tais relações. Assim, por exemplo, poderia acontecer que, em certos contratos de economia compartilhada, ao menos em uma análise puramente estrutural, não se caracterizasse nenhuma relação de consumo propriamente dita, nem entre os usuários e a plataforma (que, não raro, afasta contratualmente os índices que a enquadrariam como fornecedora de produtos ou serviços), nem entre o usuário-consumidor e o fornecedor (que, muitas vezes, desempenha a atividade de forma esporádica, sem habitualidade, além de ostentar assimetrias em face da plataforma que remetem à figura clássica do consumidor – já tendo recebido, por isso, até mesmo a alcunha de prosumer, um profissional-consumidor). Vale dizer: em grande parte dos casos, pelo menos duas das três partes envolvidas ostentam clara vulnerabilidade contratual, mas não existe consenso mínimo quanto a aplicar-se ou não a elas regimes legais protetivos, como o do CDC.

Esse cenário de incerteza não deve, contudo, constituir óbice à tutela desses contratantes, sempre na medida de sua concreta vulnerabilidade. Ao contrário, partindo de uma perspectiva sistemática do ordenamento e munida dos valores que conferem a este último sua unidade formal e material, a metodologia civil-constitucional pode orientar o intérprete nos setores que o trabalho legislativo ainda não logrou apreender, tais como os contratos de economia compartilhada, aos quais permite a aplicação de normas reguladoras de relações contratuais análogas. A identidade de ratio, neste caso, será determinada pelo tipo de tutela demandada pela concreta vulnerabilidade de cada contratante. Torna-se possível, assim, estender a incidência de normas protetivas do aderente, do consumidor, do locatário, do empregado, do passageiro e assim por diante aos contratos de sharing economy, ainda que estes não se subsumam estruturalmente às fattispecie descritas em lei, caso seja possível demonstrar, fundamentadamente, que aqueles instrumentos normativos se voltam, do ponto de vista funcional, à proteção de contratantes em situação de inferioridade semelhante àquela dos usuários na economia compartilhada. O desafio do hermeneuta, portanto, consiste em identificar os parâmetros e valores ponderados pelo legislador na tutela dos contratantes vulneráveis, em busca da construção de diretrizes gerais que possam orientar o juízo de merecimento de tutela também desse (ainda novo) modelo negocial.

A rigor, a pauta mais premente do direito contratual contemporâneo como um todo parece ser, justamente, o imperativo desenvolvimento de remédios capazes de se adequarem ao tipo e ao grau da concreta vulnerabilidade das partes, permitindo ao intérprete amparar-se o mínimo possível em categorias excessivamente abstratas e estruturais – que, por mais específicas que se pretendam (tais como o “contrato empresarial”, a “parte hipervulnerável” e outras tantas expressões que se têm popularizado em doutrina), continuam sendo ineficazes no propósito de apreenderem as necessidades concretas de contratantes reais, simplesmente multiplicando o número de categorias teóricas com as quais o intérprete já lida diariamente – e que jamais serão suficientes. As relações de sharing economy, assim, inovadoras que são, refletem, na verdade, pelo menos duas tendências muito mais amplas do direito civil atual. No âmbito da teoria dos bens, a lógica proprietária perde, progressivamente, sua relevância, na medida em que é substituída por meios mais eficazes e racionais de aproveitamento dos bens jurídicos, em um cenário no qual a titularidade de direitos reais cede espaço ao compartilhamento. No campo contratual, por outro lado, a evolução social e tecnológica, ao conceber novos arranjos negociais, clama pelo desenvolvimento de instrumentos jurídicos que se prendam menos à estrutura (isto é, à categorização abstrata de contratos e/ou de contratantes) e que se voltem a permitir ao intérprete que gradue o nível de tutela a ser conferida a cada parte, de acordo com as necessidades decorrentes de sua concreta vulnerabilidade.

Enquanto a comunidade jurídica queda-se fascinada pela inovadora estrutura da economia do compartilhamento, o avanço tecnológico promete, novamente, subvertê-la, talvez antes mesmo de a civilística a assimilar por completo. A adoção de smart contracts, por meio da tecnologia de blockchains, tem sido defendida como uma medida necessária para o futuro desenvolvimento da economia do compartilhamento, uma vez que confere maior segurança aos pagamentos efetuados pelas partes e até mesmo aos dados pessoais fornecidos nas transações, ao dispensar a presença de um terceiro que opere a plataforma. A tendência, afirma-se, é a de que os próprios usuários passem a controlar as plataformas de compartilhamento, com vistas a aumentar a confiabilidade destas últimas, o que pode superar algumas das vulnerabilidades hoje vislumbradas nessas relações, bem como revelar outras tantas. O jurista estará tão preparado para tais mudanças quanto mais for capaz de extrair, da racionalidade dos instrumentos de tutela já conhecidos, em perspectiva sistemática e funcional, os parâmetros valorativos necessários para proteger, em concreto, a vulnerabilidade dos contratantes.

 

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