No contexto da adoção, pessoas com deficiência (PCD) e outras condições de “difícil colocação” são preteridas por pretendentes. Além disso, pessoas autistas (e outras PCD) e pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos (LGBTI+) são altamente vulneráveis nesse sistema, por elas serem socialmente marginalizadas, familiarmente rejeitadas e institucionalmente invisibilizadas. Portanto, é preciso enfrentar barreiras no acesso ao direito de pessoas autistas e pessoas LGBTI+ de serem acolhidas por uma família. Diante disso, faz-se importante que a discussão sobre esse assunto esteja presente no cotidiano dos profissionais envolvidos em processos de adoção[1].
A expressão “difícil colocação” faz paralelo com uma expressão da língua inglesa, “hard to place” (“difícil de colocar”), usada para se referir a grupos de crianças e adolescentes que são preteridos no perfil escolhido por pretendentes à adoção. Por outro lado, outra expressão da língua inglesa, “hard to find” (“difícil de encontrar”), é usada para se referir a famílias receptivas à adoção de crianças e adolescentes desses grupos que são preteridos por motivos de idade, raça e presença de irmãos, por exemplo.
A tarefa de encontrar pretendentes à adoção de pessoas autistas e pessoas LGBTI+ apresenta uma camada extra de dificuldade, pois, além de estigmas ligados à forma como a adoção é socialmente percebida, tem-se os processos de marginalização desses grupos. Assim, ocorre uma adição de vulnerabilidades, a partir da discriminação contra pessoas com deficiência (capacitismo) e da discriminação contra pessoas LGBTI+ (LGBTIfobia).
Observa-se uma relação incoerente entre características de crianças e adolescentes disponíveis à adoção, por um lado, e preferências de pretendentes, por outro lado. Além disso, existem leis brasileiras de combate à discriminação contra pessoas com deficiência, de criação recente, porém não há nenhuma expressamente direcionada ao combate à discriminação contra pessoas LGBTI+.
Considerando a presença de machismo, racismo, LGBTIfobia e outras formas de opressão no meio social e cultural do Brasil, o capacitismo é combatido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146, de 2015), entre outros textos normativos. Esse cenário estruturalmente discriminatório também se manifesta no contexto de crianças e adolescentes disponíveis para adoção, no qual o fato de ser uma pessoa com deficiência pode ser percebido como parte de um conjunto de condições denominadas como de “difícil colocação”, tais como ser uma pessoa negra, ter irmãos ou ter mais anos de vida.
De acordo com dados dos Relatórios Estatísticos Nacionais do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), coletados em abril de 2024, entre as 4.667 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, 69% são negras (somando-se pretas e pardas), 20,7% são pessoas com deficiência, 59% têm irmãos e 69% têm idade acima de 8 anos (48% têm idade acima de 12 anos). E entre 36.297 pretendentes disponíveis, 5% aceitam pessoa com deficiência e 6% aceitam com idade acima de 8 anos (0,9% aceitam com idade acima de 12 anos) (SNA, 2023).
Uma das medidas para enfrentar essa “dificuldade de colocar” pessoas com deficiência em famílias adotivas foi implementada por meio da Lei n. 12.955, de 2014, que incluiu o § 9º no artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei n. 8.069, de 1990. Conforme esse novo dispositivo, nos casos em que o adotando for PCD, os processos de adoção terão prioridade de tramitação (BRASIL, 1990).
Em relação à adoção “de difícil colocação”, o art. 87, VII, do ECA, estabelece que a política de atendimento tem como parte de suas linhas de ação as campanhas de estímulo à adoção inter-racial, de grupos de irmãos, de crianças maiores ou de adolescentes, com deficiências ou com necessidades específicas de saúde (BRASIL, 1990).
O ECA estabelece a necessidade de preparação tanto dos postulantes como também das crianças e adolescentes para a adoção. O § 5º do art. 28 determina a preparação gradativa e acompanhamento posterior para a colocação em família substituta. O § 3º do art. 50 impõe um período de preparação psicossocial e jurídica antes da inscrição de postulantes à adoção. E o § 1º do art. 197-C define como obrigatória a preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, de grupos de irmãos etc. (BRASIL, 1990).
Abordar e aliviar os estigmas da deficiência e os estigmas da adoção são passos importantes para melhorar o acesso à família para PCD. Entre os estigmas da deficiência, estão as ideias de tragédia, fardo, dependência e incompetência, enquanto que, entre os estigmas da adoção, estão as concepções de que terão problemas se souberem que foram adotadas, são danificadas, são menos amadas pelos pais adotivos e poderão ser retomadas pelos pais biológicos a qualquer momento (SUFIAN, 2022, p. 232-233).
É preciso reconhecer que as decisões envolvendo PCD – até aquelas sobre assuntos íntimos – são decisões políticas comumente moldadas por noções capacitistas de família, que devem ser expostas para reconceituar a família de novas maneiras, a fim de melhorar o acesso de crianças e adolescentes com deficiência. Contudo, também se faz necessário entender como e por que ocorreu essa dinâmica para pensar em soluções que focam menos na deficiência como problema pessoal ou parental e mais em limitações estruturais e socioculturais (SUFIAN, 2022, p. 228).
Os dados do SNA, conforme apresentados na página do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referente à adoção, expõem os números de crianças e adolescentes que compõem alguns grupos, identificados por gênero, raça, idade, deficiência e quantidade de irmãos. Assim, percebe-se a ausência de dados sobre pessoas com deficiência invisível (como é o caso de pessoas autistas) e sobre pessoas dissidentes da heteronormatividade (destoantes do padrão heterossexual de comportamento).
No que se refere à deficiência, aparecem dois tipos no sistema de adoção: deficiência física e deficiência intelectual. Autismo é uma condição neurológica – não é doença, e sim uma deficiência –, no entanto, não se enquadra em nenhum desses dois tipos. Existem autistas com deficiência intelectual ou sem, e existem autistas com deficiência física ou sem. Porém, autistas e LGBTI+ têm essas suas condições apagadas nos dados do SNA, como se não existissem ou não importassem.
Um foco interessante para futuras pesquisas sobre o sistema de adoção seria uma articulação entre as vulnerabilidades de pessoas pertencentes a um desses grupos marginalizados ou a ambos: pessoas autistas (que são pessoas com deficiência invisível) e pessoas LGBTI+ (dissidentes da heteronormatividade). A justificativa para a delimitação da interface entre tais grupos como recorte de análise poderia ser fundamentada por duas de suas características em comum.
A primeira dessas características é a possibilidade de que essas pessoas sejam rejeitadas por sua condição. Tal rejeição pode ocorrer tanto em relação a pretendentes a adotantes (que percebem comportamentos considerados indesejados, incômodos ou incompreendidos) quanto em relação às famílias de origem, que podem ter praticado atos de violência e negligência, que motivaram o poder estatal a removê-las das famílias de origem. Também existem as situações de abandono, como, por exemplo, nos casos de crianças e adolescentes que são expulsos de casa por LGBTIfobia.
A segunda dessas características consiste no fato de que essas pessoas podem, em algumas situações, ter a sua condição invisibilizada (ignorada, invalidada ou mascarada) por outras pessoas ou por si mesmas. Existem ainda as situações de desconhecimento, como, por exemplo, nos casos de autistas que não têm um diagnóstico para confirmar tal condição. Algumas pessoas recebem o devido acompanhamento apenas na idade adulta, às vezes por falta de informação ou por dificuldade de acesso a serviços de saúde.
Dentro do grupo de pessoas com deficiência, estão incluídas as pessoas autistas, conforme a Lei da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (também conhecida como Lei Berenice Piana). Em seu art. 1º, § 2º, determina-se que “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais” (BRASIL, 2012). Assim, leis como o Estatuto da Pessoa com Deficiência são aplicáveis para as pessoas autistas.
Os incisos I e II, do § 1º do art. 1º da Lei Berenice Piana apontam características de uma pessoa autista, condição confirmada por avaliação com equipe de profissionais da saúde: dificuldades da comunicação, dificuldades da interação social, comportamentos motores ou verbais repetitivos, comportamentos sensoriais incomuns e padrões restritos de interesses e atividades (BRASIL, 2012).
No que se refere ao crime de discriminação contra a pessoa com deficiência, o art. 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência o define como o ato de praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência, com pena de reclusão, de 1 a 3 anos, e multa – sendo a pena aumentada em 1/3 se a vítima encontrar-se sob cuidado e responsabilidade do agente e tendo pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa, se o crime for cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza (BRASIL, 2015).
Em relação ao combate à discriminação contra pessoas LGBTI+, um grupo de doze entidades da Organização das Nações Unidas (ONU) lançou, em 2015, uma declaração conjunta muito breve, com duas páginas, chamando os Estados para esse combate. Nesse documento, é declarado que o fato de um Estado não proteger pessoas LGBTI+ contra práticas discriminatórias configura uma grave violação das normas internacionais de direitos humanos e tem um impacto significativo sobre a sociedade, gerando exclusão social e econômica. Em relação a essa situação, medidas urgentes devem ser tomadas por governos, parlamentos, poderes judiciais e instituições nacionais de direitos humanos, com apoio de líderes políticos, religiosos e comunitários, organizações de trabalhadores, profissionais de saúde, organizações da sociedade civil, setor privado e meios de comunicação (UN, 2015, p. 1).
A declaração ressalta, ainda, que pessoas LGBTI+ enfrentam discriminação e exclusão em todos os âmbitos, incluindo formas múltiplas de discriminação com base em fatores como sexo, raça, etnia, idade, religião, pobreza, migração, deficiência e estado de saúde. As crianças enfrentam bullying, discriminação ou expulsão de escolas por sua orientação sexual e identidade de gênero, real ou percebida, ou pela de seus pais. A juventude LGBTI+ rejeitada pelas famílias vivenciam índices alarmantes de suicídio, falta de moradia e insegurança alimentar. Os Estados devem respeitar as normas internacionais de direitos humanos em matéria de não discriminação, aplicando, entre outras, medidas de combate à discriminação contra pessoas LGBTI+ mediante o diálogo, a educação e treinamentos públicos. E também garantindo que as pessoas LGBTI+ sejam consultadas e participem da elaboração, implementação e monitoramento de leis, políticas e programas que lhes afetem, incluindo iniciativas de desenvolvimento (UN, 2015, p. 2).
O alvo da opressão que as pessoas LGBTI+ sofrem consiste na não conformidade aos padrões cisheteronormativos, ou seja, aqueles padrões que afirmam o grupo cisgênero e heterossexual como a norma social. Por seguir a norma imposta por ele próprio, esse grupo dominante se considera como normal e persegue o que ele classifica como o grupo transviado, chamado assim por desviar da linha reta apontada como a única rota certa.
Segundo os dados do SNA, citados anteriormente, adolescentes (acima de 12 anos) compõem quase metade (48%) do total que está disponível para adoção, de modo que essa é uma característica cuja prevalência é conhecida. Porém, diante da ausência de dados sobre autistas e LGBTI+ no sistema de adoção, desconhece-se a prevalência dessas condições no contexto desse conjunto de crianças e adolescentes à espera de adoção.
Considerando a ausência de dados supracitada, é possível fazer a proposição de uma hipótese – a ser investigada em futuras pesquisas – referente à ideia de que a rejeição decorrente de discriminação contra autistas e LGBTI+ pode contribuir para que algumas crianças e adolescentes tenham dificuldade para sair do sistema de adoção. Ainda nessa hipótese, isso pode ter contribuído para sua entrada no sistema por meio de entrega para adoção, abandono (às vezes, expulsão de casa), ou situação de negligência, violência e maus tratos (a ponto de serem removidas de casa pelo Estado).
A condição de autista e a condição de LGBTI+ poderiam ser consideradas como categorias invisibilizadas entre aquelas de “difícil colocação” para adoção. Por não serem vistas, não se traz informação sobre tais condições na preparação de pretendentes à adoção. Nessa preparação, falta incentivo à adoção de autistas e LGBTI+, e também falta o enfrentamento a estigmas relacionados a esses grupos sociais. Com isso, o sistema de adoção discrimina autistas e LGBTI+ ao não reconhecer suas condições marginalizadas e não enfrentar barreiras no acesso ao direito de pessoas autistas e pessoas LGBTI+ de serem acolhidas por uma família. Portanto, é preciso que sejam realizados mais estudos sobre o combate à discriminação de autistas e LGBTI+ à espera de adoção.
Tendo em vista a identificação das questões de autistas e LGBTI+ à espera de adoção, uma solução jurídica possível seria a busca ativa de pais para adoções relativas a essas vulnerabilidades em específico. Em abril de 2022, o CNJ instituiu a busca ativa no SNA por meio da Portaria CNJ n. 114/2022. De acordo com o seu art. 2º, a finalidade da busca ativa nacional é “[…] promover o encontro entre pretendentes habilitados e crianças e adolescentes aptos à adoção que tiverem esgotadas todas as possibilidades de buscas nacionais e internacionais de pretendentes compatíveis com seu perfil no SNA” (CNJ, 2022). E no § 1º do art. 2º, a portaria define que os pretendentes habilitados poderão acessar algumas informações das crianças e adolescentes, como prenome, idade, estado, fotografia e vídeo curto com depoimento pessoal (CNJ, 2022).
A busca ativa nacional une-se aos esforços já lançados por alguns tribunais utilizando a tecnologia para facilitar o encontro entre as famílias que pretendem adotar e as crianças e adolescentes que esperam por essas famílias. No caso de autistas e LGBTI+, a busca ativa poderia funcionar como uma ferramenta para terem visibilidade em relação a essas condições, que são invisibilizadas em alguns contextos sociais e jurídicos.
A invisibilização de autistas e LGBTI+ no sistema de adoção é só uma entre as formas pelas quais têm sua condição ignorada. Assim, o combate à invisibilização no contexto de busca por uma família adotiva, por si só, não é capaz de enfrentar todos os momentos de invisibilização de autistas e LGBTI+. Porém, é um bom passo, pois o apoio familiar pode ser a fonte de força para muitas outras batalhas contra a discriminação.
[1] Versão resumida do nosso artigo “Combate à discriminação de autistas e LGBTI+ à espera de adoção”, publicado na Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (REBEH), v. 6, n. 20, p. 235-259, 2023. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/15201
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 abr. 2024.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 1990. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 19 abr. 2024.
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BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: Diário Oficial da União, 2015. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 19 abr. 2024.
CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Portaria CNJ n. 114 de 05/04/2022. Institui a ferramenta de busca ativa no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), e regulamenta os projetos de estímulo às adoções tardias, entre outras providências. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4472. Acesso em: 19 abr. 2024.
SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento). Relatórios Estatísticos Nacionais. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao. Acesso em: 19 abr. 2024.
SUFIAN, Sandra Marlene. Familial fitness: disability, adoption, and family in modern America. Chicago: The University of Chicago Press, 2022.
UN (United Nations). Joint UN statement on ending violence and discrimination against LGBTI people. 29 Sep. 2015. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Discrimination/Joint_LGBTI_Statement_eng.pdf. Acesso em: 19 abr. 2024.
Ana Carla Harmatiuk Matos
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía. Tutora in Diritto na Universidade di Pisa-Italia. Professora Titular em Direito Civil da Universidade Federal do Paraná. Vice-Presidente do IBDCivil. Diretora Regional-Sul do IBDFAM. Advogada militante em Curitiba. Conselheira Estadual da OAB-PR. Membro Consultora da Comissão Especial de Direito das Sucessões do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. E-mail: adv@anacarlamatos.com.br.
Honácio Braga de Araújo
Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná, com bolsa CAPES/PROEX. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com bolsa CNPq. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Membro do Núcleo de Direitos Humanos e Vulnerabilidades da UFPR. Membro do Coletivo Autista da UFPR (Coletivo Stim). E-mail: honacio@gmail.com.