As técnicas de reprodução assistida representaram uma profunda revolução no campo da biotecnologia e da medicina. Como toda revolução, o desenvolvimento de técnicas de engenharia reprodutiva que possibilitaram a reprodução sem sexo rompeu paradigmas anteriormente firmados e exigiu uma atualização de institutos e conceitos clássicos do Direito romano.
Os efeitos práticos da utilização das técnicas de RHA relacionados à produção de embriões extranumerários e os conflitos ocasionados em razão da mudança da vontade de procriar de um ou de ambos os genitores envolvem questionamentos de ordem da bioética e do biodireito, que requerem o estabelecimento prévio de critérios jurídicos que determinem quais sujeitos são legitimados para decidir sobre o destino daqueles embriões e quais os tipos de decisões juridicamente admitidas.[1]
A Lei espanhola sobre técnicas de reprodução humana assistida, de 26 de maio de 2006 (Ley n.º 14/2006), definiu como pré-embrião o embrião constituído in vitro que resulta da divisão progressiva do óvulo fecundado até o 14º dia.[2]
De pronto, percebe-se que o ordenamento jurídico espanhol atribuiu nomenclatura específica para o embrião produzido a partir da utilização de técnicas de reprodução assistida que se desenvolveu até o 14º dia, enquanto no Direito brasileiro se consolidou tratar como embrião o material genético obtido a partir da fecundação do óvulo com o espermatozoide até o 14º dia de seu desenvolvimento, independentemente do local de sua constituição, seja no útero, seja in vitro, sem fazer nenhuma referência distintiva pelo decurso de tempo de seu desenvolvimento.
Importa ressaltar que a primeira Resolução do Conselho Federal de Medicina de 1992, ao prever normas éticas sobre a RHA no Brasil, adotou como referência o Informe Warnock sobre Fertilização e Embriologia, publicado no Reino Unido em 1984, que distinguia a figura do embrião da do pré-embrião.[3]
A regulação jurídica da matéria disposta na legislação espanhola é bastante completa, tendo sofrido sua última atualização em 2015. Desse modo, a Lei n.º 14/2006 além de prever os tipos de destinação que podem ser dados aos embriões crioconservados, resultantes do emprego de técnicas de RHA, também estabeleceu um lapso temporal limite para o prolongamento do estado de congelamento do material genético, que está atrelado a critérios medicamente atestados de elegibilidade de sua receptora para a realização dos procedimentos de reprodução assistida.
Tal previsão impede que se forme uma superpopulação de embriões nas clínicas de reprodução assistida e obsta que estes embriões permaneçam ad aeternum no limbo jurídico em face da ausência de decisão.[4]
Importa registrar também que a legislação espanhola previu que os atos de disposição sobre os embriões, quais sejam: (i) utilização própria para fins reprodutivos; (ii) doação para fins reprodutivos; (iii) doação para pesquisa; e (iv) descarte depois de esgotado o prazo máximo sem que tenha sido optado por qualquer outra das destinações previstas, devem ser precedidos de consentimento dos autores do projeto parental previamente à sua produção.[5]
Na França, a Lei n.º 2021-1017, de 2 de agosto de 2021, garante a casais heterossexuais, casais homossexuais lésbicos e a mulheres solteiras o acesso à reprodução assistida com a finalidade de construção de um projeto parental. Admite também o procedimento de crioconservação de embriões excedentes, não utilizados no primeiro ciclo de FIV. A legislação, no entanto, veda a gestação por substituição e a fertilização post mortem.[6]
A lei francesa exige que as clínicas de reprodução humana assistida consultem anualmente ambos os membros do casal acerca da manutenção da vontade individual de persecução do projeto parental, recolhendo, assim, manifestação escrita referente à perpetuação do estado de congelamento dos embriões.
Em caso de não subsistir vontade para a persecução do projeto parental, ambos os membros do casal devem consignar por escrito a destinação que pretendem dar aos embriões crioconservados, admitindo-se a doação para outro casal ou mulher solteira e a doação para pesquisa ou descarte.
A Lei n.º 2021-1017 ainda prevê, em seu art. L. 2141-4, inciso IV, que se dará fim à conservação dos embriões excedentários para os casos em que: (i) o casal se mantiver silente após consulta formal, feita ao menos duas vezes ao ano, sobre sua intenção de prosseguir com o projeto parental, tendo transcorrido no mínimo cinco anos desde o congelamento dos embriões; (ii) quando houver divergência entre os membros do casal sobre a manutenção do projeto parental ou sobre a destinação dos embriões crioconservados; (iii) quando houver a revogação de consentimento anterior para a doação dos embriões à pesquisa; e, por fim, (iv) após ter o casal consentido com a doação a terceiro ou para a pesquisa e, dentro do período de cinco anos, os embriões não tiverem sido doados para os fins consentidos.
A legislação francesa estabeleceu período máximo de cinco anos para a manutenção do congelamento dos embriões excedentários. Previu, ainda, que qualquer discordância do casal acerca da continuação do projeto parental implicará o descarte do material genético.
Já nos Estados Unidos não há uma legislação uniforme sobre a matéria. Os estados norte-americanos que possuem alguma disposição normativa sobre a reprodução assistida estipulam que as eventuais divergências decorrentes da destinação dos embriões excedentes sejam prévia e contratualmente previstas, o que gera bastante discussão nos tribunais.[7]
A partir da análise das decisões das cortes americanas acerca dos imbróglios que envolvem a destinação dos embriões excedentários quando houver dissenso entre o casal, Glenn Cohen e Eli Y Adashi propuseram cinco parâmetros jurídicos para solucionar tais conflitos:
(i) Diferenciação precisa entre o Termo de Consentimento Informado Livre e Esclarecido para a realização da FIV e o Contrato de Disposição de Embriões Excedentários: comumente, as clínicas de RHA submetem aos pacientes um único documento padronizado que mistura as disposições concernentes à autorização médica para a realização do procedimento de fertilização in vitro com as regras de vinculação contratual entre a clínica e os pacientes quanto ao poder decisório de disposição dos embriões congelados;
(ii) Estabelecimento de acordos prévios à criopreservação dos embriões entre as partes interessadas (pacientes e clínicas de RHA): tais contratos devem prever cláusulas sobre a disposição dos embriões excedentários diante da dissolução da sociedade conjugal, morte de um ou de ambos os membros do casal e superveniência de doença grave;
(iii) Vinculação obrigatória das partes às previsões contratuais anteriormente firmadas;
(iv) Impossibilidade de imposição de parentalidade obrigatória: os contratos que versam sobre a destinação dos embriões criopreservados não devem impor a qualquer das partes a qualidade de ser pai ou mãe;
(v) Previsão de cláusula contratual específica sobre a perda superveniente de fertilidade: não seria qualquer perda de fertilidade que autorizaria a imposição de uma parentalidade genética a qualquer das partes (desde que anteriormente autorizada), estando excluídas desta hipótese a infertilidade superveniente em razão do envelhecimento e a infertilidade superveniente, porém previsível à época da assinatura do contrato. Nestes casos, recomenda-se que o contrato de disposição de embriões excedentários preveja cláusula específica que abranja casos para além do divórcio do casal, admitindo o uso dos embriões pela parte que se tornou infértil, por exemplo.[8]
Como se sabe, a estrutura de governo dos Estados Unidos é federalista, marcada pela interdependência institucional e autonomia entre os Estados, o que reflete diretamente em seu sistema jurídico do common law, no qual as decisões proferidas nos tribunais fazem o Direito, inexistindo uma legislação uniforme anterior aplicável a toda a nação, como é o caso do Brasil, país que adota o sistema jurídico romano-germânico (civil law).
É fato notório, no entanto, que os valores e as ideologias dominantes nos Estados Unidos são tradicionalmente liberais, o que torna usual o tratamento contratual patrimonialista conferido às situações que envolvem o emprego de técnicas de reprodução humana assistida.
No Brasil, uma lei específica deveria prever os parâmetros balizadores das relações sociojurídicas decorrentes do emprego de técnicas de RHA, deixando pouco espaço à livre manifestação da autonomia da vontade dos particulares, de modo que o exercício do poder decisório se limitasse à moldura previamente estabelecida pelo Estado.
A omissão legislativa concernente à regulação da matéria perdura por quarenta anos, sem que haja consenso político para fazer cessar a situação atual de insegurança jurídica. Os parâmetros jurídicos elencados por Glenn Cohen e Eli Y Adashi admitem aplicação ao ordenamento vigente, tendo em vista que se alinham aos princípios e preceitos constitucionais relacionados ao direito fundamental, ao planejamento familiar e aos deveres de exercício da parentalidade responsável.
É notável a divergência existente acerca do tema. Contudo, na busca por possíveis soluções, verifica-se que as posições mais razoáveis, e que têm sido adotadas pelos ordenamentos jurídicos de outros países, apontam para a necessidade de formalização prévia à realização do procedimento de fertilização in vitro de um contrato minucioso que anteveja as possíveis situações conflitantes e antecipe a vontade dos contratantes, de modo a diminuir os conflitos.
Notas
[1] CANCINO, Emilssen González de. Problemas de la fecundación extracorpórea. Revista de Derecho Privado, n. 21, julio-diciembre de 2011, p. 196. Disponível em: <https://revistas.uexternado.edu.co/index.php/derpri/article/view/2987/2631>. Acesso em: 7 jun. 2024.
[2] Ley 14/2006, de 26 de mayo de 2006. Boletín Oficial del Estado nº 126: “Artículo 1. Objeto y ámbito de aplicación de la Ley (…). 2. A los efectos de esta Ley se entiende por preembrión el embrión in vitro constituido por el grupo de células resultantes de la división progresiva del ovocito desde que es fecundado hasta 14 días más tarde.”. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2006-9292>. Acesso em: 7 jun. 2024.
[3] KRELL, Olga Jubert Gouveia. Reprodução Humana Assistida e Filiação Civil: Princípios Éticos e Jurídicos. Curitiba: Juruá, 200. p. 125.
[4] “(…) 3. Los preembriones sobrantes de la aplicación de las técnicas de fecundación in vitro que no sean transferidos a la mujer en un ciclo reproductivo podrán ser crioconservados en los bancos autorizados para ello. La crioconservación de los ovocitos, del tejido ovárico y de los preembriones sobrantes se podrá prolongar hasta el momento en que se considere por los responsables médicos, con el dictamen favorable de especialistas independientes y ajenos al centro correspondiente, que la receptora no reúne los requisitos clínicamente adecuados para la práctica de la técnica de reproducción asistida. 4. Los diferentes destinos posibles que podrán darse a los preembriones crioconservados, así como, en los casos que proceda, al semen, ovocitos y tejido ovárico crioconservados, son: a) Su utilización por la propia mujer o su cónyuge. b) La donación con fines reproductivos.
c) La donación con fines de investigación. d) El cese de su conservación sin otra utilización. En el caso de los preembriones y los ovocitos crioconservados, esta última opción sólo será aplicable una vez finalizado el plazo máximo de conservación establecido en esta Ley sin que se haya optado por alguno de los destinos mencionados en los apartados anteriores. (…) Ley 14/2006, de 26 de mayo de 2006. Boletín Oficial del Estado nº 126. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2006-929>. Acesso em: 7 jun. 2024.
[5] Ley 14/2006, de 26 de mayo de 2006. Boletín Oficial del Estado nº 126: “5. La utilización de los preembriones o, en su caso, del semen, los ovocitos o el tejido ovárico crioconservados, para cualquiera de los fines citados, requerirá del consentimiento informado correspondiente debidamente acreditado. En el caso de los preembriones, el consentimiento deberá haber sido prestado por la mujer o, en el caso de la mujer casada con un hombre, también por el marido, con anterioridad a la generación de los preembriones.” Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2006-929>. Acesso em: 7 jun. 2024.
[6] Lei n.° 2021-1017, 2 de agosto de 2021, relativa à bioética. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000043884384/>. Acesso em: 7 jun. 2024.
[7] DEFILIPPIS, Jaime Claire. Frozen in custody battles: Thawing out a uniform solution for the disposition of frozen embryos at the time of divorce. Family Court Rev. 2022 60(3), 560–574. p. 563-564. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/fcre.12659>. Acesso em: 15 jun. 2024.
[8] ADASHI, Eli Y ; COHEN, Glenn. Embryo Disposition Disputes: Controversies and Case Law. Hastings Center Report 46, n. 5 July-August (2016): 13-19. p. 16-18. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/hast.600>. Acesso em: 11 jun. 2024.
Referências
ADASHI, Eli Y ; COHEN, Glenn. Embryo Disposition Disputes: Controversies and Case Law. Hastings Center Report 46, n. 5 July-August (2016): 13-19. p. 13-19. Disponível em: < https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/hast.600 >. Acesso em: 11 jun. 2024.
CANCINO, Emilssen González de. Problemas de la fecundación extracorpórea. Revista de Derecho Privado, n. 21, julio-diciembre de 2011, p. 193-204. Disponível em: < https://revistas.uexternado.edu.co/index.php/derpri/article/view/2987/2631 >. Acesso em 07 jun. 2024.
DEFILIPPIS, Jaime Claire. Frozen in custody battles: Thawing out a uniform solution for the disposition of frozen embryos at the time of divorce. Family Court Rev. 2022 60(3), p. 560–574. Disponível em: < https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/fcre.12659 >. Acesso em: 15 jun. 2024.
KRELL, Olga Jubert Gouveia. Reprodução Humana Assistida e Filiação Civil: Princípios Éticos e Jurídicos. Curitiba: Juruá, 2006.
ESPANHA. Lei nº14, de 26 de maio de 2006. Boletín Oficial del Estado nº 126. Disponível em: < https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2006-9292 >. Acesso em 07 jun. 2024.
FRANÇA. Lei n° 2021-1017, de 02 de agosto de 2021, relativa à bioética. Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000043884384/ >. Acesso em 07 jun. 2024.
Deborah Leão Dias
Mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito de Alagoas – FDA. Pós-graduada em Licitações e Contratos Administrativos pela Faculdade Baiana de Direito. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Advogada. https://orcid.org/0009-0003-8891-2943