O direito das concessionárias ao reajuste das tarifas de água e esgoto é constantemente violado por Agências Reguladoras. Em várias oportunidades, as concessionárias dos serviços procuram o Judiciário para que o direito ao reajuste seja garantido. No entanto, vem sendo comum que o Judiciário encontre pretextos para não determinar a aplicação do reajuste. Tal situação coloca em risco a sustentabilidade econômico-financeira dos contratos de concessão de água e esgoto e, em um sentido mais profundo, inviabiliza a própria noção de concessão dos serviços.
O regime econômico-financeiro dos contratos de concessão é regido pelo princípio da manutenção das condições efetivas da proposta, nos termos do art. 37, XXI, da Constituição da República. Isso significa que aquele que assume uma concessão de serviços públicos tem direito a uma certa remuneração definida no contrato pela prestação dos serviços e pela realização dos investimentos de universalização dos serviços. Assim, a tarifa cobrada pelos serviços tem que gerar recursos suficientes para que exista uma sobra após a dedução dos custos operacionais e não operacionais de prestação dos serviços e com a amortização e custo do capital necessário para realização dos investimentos contratados. Tal “sobra” é a remuneração da Concessionária.
Dentro de uma lógica econômica capitalística, essa remuneração é o único motivo pelo qual a Concessionária e seus acionistas se dispõem a prestar os serviços. Assim, aquele que dispõe de capital próprio ou de terceiros e de capacidade administrativa e técnica para prestação dos serviços se dispõe assumir a concessão, tomando o risco respectivo, para ao final receber a remuneração contratada.
Em uma economia globalizada, esses recursos podem, em tese, ser aplicados em qualquer atividade ou lugar. Dessa forma, o Poder Público tem que garantir uma certa atratividade adicional para aquele disposto a assumir o risco de um contrato de concessão de longo prazo, do contrário a atitude mais racional seria aplicar os mesmos recursos em investimentos mais seguros. Ou seja, só existe sentido em aplicar recursos em um investimento mais arriscado se a remuneração adicional desse investimento for suficiente para compensar a assunção do risco. Caso essa condição não se satisfaça, qualquer ator racional aplicaria os recursos na atividade de menor risco.
Isso quer dizer que o Poder Público afasta investimentos privados quando toma medidas que aumentam o risco assumido por aqueles que se dispõem a prestar um serviço público mediante concessão. O problema é que o Poder Público precisa de tais investimentos para garantir que os serviços sejam prestados de maneira adequada (no sentido do art. 6º, parágrafo único, da Lei 8.987/95). Em outras palavras, a garantia dos direitos fundamentais da população depende da prestação de serviços públicos adequados e o Poder Público não tem recursos suficientes para prestar todos os serviços públicos de maneira adequada.
Dessa forma, dada a dependência de capital privado, a forma mais barata de prestar os serviços é criar condições nas quais os investimentos feitos na prestação dos serviços demandem o menor retorno possível. A forma de garantir isso é tomar todas as medidas para reduzir o risco tomado pelo investidor privado que resolva aplicar seu capital na prestação de um serviço público.
Sendo assim, dadas as mesmas condições de prestação dos serviços, quanto menor o risco tanto menor será a remuneração exigida pelo investidor privado para aplicar seu capital na prestação de um serviço público e, por consequência, menor a tarifa cobrada pela prestação dos serviços.
Essa relação entre risco e remuneração exigida para aplicação de capital privado em finalidades públicas explica por que a legislação relevante atribuiu ao Poder Público o risco de variação ordinária dos preços dos insumos de prestação dos serviços, de fatores imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis ou mesmo de alterações nas condições de prestação dos serviços decorrentes de atos estatais (art. 23, IV, Lei 8.987/95 c/c art. 65 da Lei 8.666/93).
Desse modo, a legislação nacional define que aquele agente privado contratado para prestar um serviço público não está assumindo os riscos relativos a tais fatores que possam afetar os custos operacionais e de capital relevantes. E o faz dessa forma, para reduzir a remuneração que o investidor privado exige para contratar com o Estado.
O reajuste é a forma como é colocado em prática a alocação do risco inflacionário ao Concedente. O art. 6º da Lei 14.133/21 define reajuste como sendo a “forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contrato consistente na aplicação do índice de correção monetária previsto no contrato, que deve retratar a variação efetiva do custo de produção, admitida a adoção de índices específicos ou setoriais” e o art. 37 da Lei 11.445/07 estabelece que “os reajustes de tarifas de serviços públicos de saneamento básico serão realizados observando-se o intervalo mínimo de 12 (doze) meses, de acordo com as normas legais, regulamentares e contratuais.” Em todos os casos, os critérios do reajuste devem ser fixados pelo contrato (art. 40, XI, da Lei 8.666/93, art. 92, V, da Lei 14.133/21, art. 23, IV, da Lei 8.987/95 e art. 11, § 2º, IV, b, da Lei 11.445/07).
Nesse contexto, o concessionário dos serviços públicos está protegido do risco de variação inflacionária na forma do contrato relevante e essa proteção permite que o investidor privado exclua da sua proposta a incerteza relacionada à variação ordinária dos custos dos seus insumos. Com isso, o investidor privado se dispõe a investir seu capital na prestação de um serviço público por uma remuneração menor, o que implica uma tarifa menor para o usuário dos serviços.
No entanto, toda essa alocação de risco é frustrada quando a Agência Reguladora, responsável por homologar o reajuste (art. 23, IV, da Lei 11.445/07), ignora os critérios estabelecidos no contrato e se nega a conceder o reajuste (ou pretende concedê-lo de forma diferente da definida no contrato). Normalmente, tal negativa se dá com base em argumentos que se relacionam abstratamente com a modicidade da tarifa.
A questão é que a modicidade da tarifa é justamente o motivo para que o reajuste seja concedido na forma do contrato. A modicidade da tarifa justifica a aplicação do reajuste, nos termos definidos no contrato, tanto de um ponto vista mais concreto quanto por uma perspectiva mais abstrata.
Concretamente, a negativa de aplicação dos critérios definidos no contrato para definição do reajuste cria um desequilíbrio contratual. Isso porque as regras contratuais sobre reajuste compõem a equação econômico-financeira do contrato de concessão. Dessa forma, o fluxo de caixa projetado para a concessão, que assegura que as tarifas cobradas dos usuários serão suficientes para arcar com os custos de prestação dos serviços, amortizar os investimentos contratados e remunerar a concessionária, pressupõe o reajuste da tarifa.
Com isso, o montante decorrente da diferença entre o percentual concedido e aquele que seria devido em razão do contrato passa a ser tratado como uma dívida do sistema da concessão com a Concessionária. O problema aqui é que o principal dessa dívida cresce mês a mês, uma vez que a cada ciclo de faturamento a Concessionária está recebendo menos do que o contrato estabelece que ela deveria estar recebendo.
Além disso, essa dívida é remunerada por uma taxa de juros própria. Desse modo, passa a existir uma operação de crédito por meio da qual a Concessionária está emprestando ao sistema da concessão a parte do reajuste que não foi concedido. Essa dívida acabará sendo sanada em um processo de revisão futuro. Todavia, o custo para zerá-la acabará resultando, de uma forma ou de outra, no pagamento de uma tarifa maior do que aquela que seria paga caso o reajuste houvesse sido concedido.
Com efeito, a medida de reequilíbrio mais simples é a concessão de um aumento da tarifa suficiente para gerar um fluxo de caixa adicional até o final do contrato que compense as perdas com a negativa do reajuste, e esse aumento da tarifa tem que compensar tanto a perda de receitas efetivas, quanto os juros incidentes sobre tal perda. Ou seja, no final das contas, a tarifa acaba ficando muito maior do que seria o caso se o reajuste houvesse sido concedido.
Mesmo que se adote outras medidas para reequilíbrio do contrato tais como prorrogação do prazo contratual ou do prazo para cumprimento das metas de investimento, também há prejuízo à modicidade tarifária. No caso de prorrogação do contrato, os usuários dos serviços ficarão obrigados a pagar por mais tempo uma tarifa que inclui uma parcela de amortização de investimentos de expansão dos sistemas de água e esgoto, quando poderiam estar pagando uma nova tarifa menor, sem tal parcela. Por sua vez, no caso de prorrogação de metas de investimento, o usuário estará pagando por um serviço de qualidade e/ou abrangência inferior àquela que poderia ter pelo mesmo preço, caso o reajuste tivesse sido concedido tempestivamente.
O problema é que a inflação não deixa de existir porque não foi concedido o reajuste em um dado ano. No próximo ano, a Concessionária terá direito a novo reajuste e o problema apenas se tornará mais profundo caso novamente o reajuste não for concedido na forma do contrato. Assim, a reiteração dessa situação levará inexoravelmente à inviabilidade da prestação dos serviços, uma vez que, em um contrato de longo prazo, a variação inflacionária pode ser suficiente não apenas para que os valores recebidos em função da tarifa deixem de ser suficientes para remunerar a concessionária, depois para amortizar os investimentos feitos e, por fim, para arcar com os custos de prestação dos serviços.
Nesse ponto, não há mais como falar em concessão dos serviços porque o reequilíbrio se torna inviável na prática. O desequilíbrio passa a ser tal que deixa de ser possível operar a concessão e fica apenas uma dívida enorme para o Poder Público pagar a título de indenização dos danos emergentes e lucros cessantes da concessionária. Ocorre que o sistema constitucional brasileiro dá brechas para que essa dívida não tenha um prazo certo para pagamento, dado o sistema de precatórios do art. 100 da Constituição.
Nesse contexto, o risco de celebrar um contrato de concessão para prestação de serviços públicos cresceria a tal ponto que a remuneração pretendida pelo investidor privado se tornaria incompatível com a própria capacidade de pagamento dos usuários dos serviços. Consequentemente, não há mais como se falar em concessão dos serviços e, consequentemente, as condições de saneamento básico permanecerão tão precárias quanto são e não haverá perspectiva de universalização dos serviços.
Portanto, para além do pacta sunt servanda e dos interesses do capital privado na remuneração do investimento feito para prestação dos serviços, a garantia de aplicação das regras contratuais de reajuste é condição indispensável para manutenção da modicidade da tarifa e para universalização dos serviços. Assim, quanto mais enfática e ágil for a defesa dessas regras tanto mais restará reduzido o risco de investimento privado em saneamento básico e quanto menor o risco, menor a tarifa.
Ocorre que o Judiciário é o único que pode proteger verdadeiramente a modicidade tarifária quando a agência reguladora do contrato se dobra às pressões políticas-eleitorais do Executivo e do Legislativo e se recusa a conceder o reajuste nos termos contratados.
E tal proteção não depende de balanceamentos complicados de princípios, mas apenas da aplicação das regras legais e contratuais relevantes, que definem os critérios de reajuste exaustivamente. Não há aqui interferência em questão política, nem tampouco no mérito de atividade administrativa discricionária. O que há é um simples controle de legalidade de um ato administrativo vinculado, com o Judiciário exercendo aquela que é talvez a sua função mais básica, garantir que as obrigações assumidas contratualmente serão cumpridas.
Essa atividade simples de aplicar as leis e garantir a natureza vinculante das regras contratuais não pode ceder diante de considerações principiológicas despropositadas relativas à modicidade da tarifa. Essas considerações principiológicas são inconsistentes porque a proteção da legalidade e do pacta sunt servanda é condição indispensável para garantia da modicidade da tarifa. Ou seja, só há como manter a modicidade da tarifa com a preservação judicial da natureza vinculante das regras legais e contratuais de reajuste.
Logo, o Judiciário inviabiliza própria noção de concessão, de contrato e de Estado de Direito quando coaduna com a negativa de aplicação das regras legais e contratuais sobre reajuste com base em alegações abstratas de modicidade tarifária, sacrificando os próprios objetivos que esse princípio pretende preservar.
Breno Vaz de Mello Ribeiro
Mestre em Direito pela UFMG, LL.M pela New York University School of Law,
advogado especialista em contencioso de questões de infraestrutura no Fialho Salles Advogados.
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