O anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil de 2002 (CC/02) trouxe, em seu bojo, diversas inserções em matéria de reprodução humana assistida (RHA), contando com uma reformulação do art. 1.597 (presunções de filiação), a inserção do art. 1.598-A (presunção de filiação em matéria de reprodução humana assistida – RHA) e a inserção de um novo Capítulo, inserido no Livro IV – Direito de Família, intitulado “Da filiação decorrente da reprodução humana assistida”, incluindo os arts. 1.629-A a 1.629-V, distribuídos em seções sobre disposições gerais, doações de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem e consentimento informado, cujos teores foram destrinchados em duas partes.
A anterior, tratou das discussões em torno de atribuição de filiação, das disposições gerais e da doação de material genético, ao passo que esta parte dedicar-se-á a analisar a cessão temporária de útero, a RHA post mortem e o consentimento informado, o que se faz em seguida.
Da cessão temporária de útero
Escolha Terminológica. Antes de adentrar nas minúcias trazidas pelo anteprojeto no tema, cumpre, inicialmente, propor uma reflexão a respeito da escolha terminológica ali feita, a qual, salvo melhor juízo, não parece ter sido a mais acertada.
Destarte, cabe destacar que a doutrina, em suas discussões a respeito da técnica ora em comento, sempre se deparou com diversos usos terminológicos, os quais, em alguma medida, tentavam sintetizar e explicar, através do nome atribuído, os efeitos por ela pretendidos, sejam eles: a) “barriga de aluguel” (terminologia que popularizou-se no meio social, sobretudo em virtude de novela homônima transmitida nos anos noventa, na tv aberta); b) “cessão de útero” (adotada no anteprojeto); c) “maternidade de substituição”; d) “mãe de substituição”; d) “gestação por substituição” (adotada pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM); f) “gestação sub-rogada”; e, g) “barriga solidária”. Diante dessa multiplicidade na nomenclatura, algumas considerações precisam ser feitas a respeito dos seus usos e sentidos.
De início, parece mais acertado afastar todas aquelas terminologias que utilizem os vocábulos “maternidade” ou “mãe”, uma vez que ambas as palavras são dotadas de valor social e jurídico, atribuído àquelas pessoas que exercerão os cuidados e deveres próprios do vínculo materno-filial. Nesse sentido, tendo em vista que o aceite da mulher para levar a termo a gravidez não inclui o desejo de ser “mãe” ou de desempenhar a “maternidade” para com aquela criança que será gerada, abarcando tão somente a aspiração de suportar aquela gravidez em favor da concretização de projeto parental alheio, as denominações “maternidade de substituição” e “mãe de substituição” mostram-se inapropriadas com a própria natureza da relação ali estabelecida.
Da mesma forma, a expressão “barrida de aluguel”, ainda que tenha ficado popularmente conhecida, não parece a melhor escolha, pois, além de possuir um caráter pejorativo, tenta aproximar essa prática de um “contrato de locação”, com o qual não se confunde, seja porque esse tipo contratual, na forma típica, pressupõe a cessão de direitos de uso e fruição de coisa infungível mediante retribuição pecuniária, seja porque não se pode dispor do útero humano de forma onerosa, pela inteligência majoritária do art. 199, §4º da Constituição Federal (CF/88) [1]. Igualmente, a terminologia “barriga solidária”, embora ressalte a solidariedade – nos termos do art. 3º, I da CF/88[2] –, evidenciando sua natureza de gratuidade e não onerosidade, não parece apropriado, dada sua conotação mais coloquial e pouco jurídica.
No tocante ao uso da terminologia eleita pelo anteprojeto, “cessão temporária de útero”, embora se compreenda a iniciativa de dar-lhe uma roupagem mais próxima de uma relação jurídica – aproximando-lhe da figura da “cessão” –, também não parece ser a melhor opção. Isso, pois, a palavra “cessão”, em termos jurídicos, estaria atrelada à ideia de transmissão de uma posição contratual, onerosa ou gratuitamente; implicando, assim, em alienação, a qual não compreende o objetivo desse procedimento, pois a mulher não está alienando seu útero para terceiros, apenas gestando em favor de outrem.
Por fim, nos parece mais acertada o emprego dos termos “gestação por substituição” – o qual já era utilizado pelo CFM – ou “gestação sub-rogada” (GS), uma vez que não confundem o ato de gestar com a maternidade, mas também porque denotam a ideia de “substituição” tão somente no processo de gestar, o qual não será levado a cabo pelo(a)(s) beneficiário(a)(s), mas pela gestante sub-rogada.
Âmbito de utilização da técnica. Estabeleceu-se que somente será permitida para os casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica (art. 1.629-L). Numa primeira leitura, pode-se fazer crer que o mencionado dispositivo esteja restringindo, em certa medida, o âmbito de uso da técnica da GS aos casos de infertilidade biológica, uma vez que se fala em “causa natural ou em casos de contraindicação médica”.
No entanto, é preciso que esse artigo seja lido em consonância com os princípios constitucionais – da Dignidade Humana, Liberdade Familiar (notadamente a liberdade no planejamento familiar), Igualdade (formal e material) e Vedação a Toda e Qualquer Forma de Discriminação – e também levando em consideração o sistema geral estabelecido pelo Código – o qual atribui possibilidade de recurso a RHA a qualquer pessoa, desde que maior de 18 (dezoito) anos e plenamente capaz –, razão pela qual não se vê impedimento a sua aplicabilidade nos casos de produção independente de filiação e de famílias homoafetivas, por exemplo[3].
Natureza jurídica do negócio. Foi estabelecida natureza de gratuidade a essas tratativas, vedada qualquer finalidade “lucrativa ou comercial” (art. 1.629-M), seguindo a inteligência majoritária de vedação à comercialização de partes do corpo, contida no art. 199, §4º da CF/88.
Preferência pelo vínculo de parentesco. Estabeleceu-se a preferência pela existência de vínculo de parentesco entre a gestante e os beneficiários (art. 1.629-N). Essa já era tendência adotada pelo CFM ao estabelecer que a gestante deveria ser parente consanguínea até 4º grau dos beneficiários, estando outros casos submetidos a parecer dos Conselhos Regionais de Medicina (CRM).
Por óbvio, o art. 1.629-N acabou por expandir a disposição do CFM, ao não fazer distinção entre parentesco consanguíneo ou socioafetivo, medida que já se impunha em função do princípio da Igualdade entres os Filhos, o qual veda qualquer forma de discriminação quanto à origem, constante do art. 227, §6º da CF/88[4] e do art. 1.596 do CC/02[5]. Ademais, indicou-se a preferência, mas não obrigatoriedade da presença desses vínculos, o que leva à compreensão de que será possível uso de GS mesmo quando não houver relação de parentesco entre beneficiários e gestante.
Por outro lado, a ausência de uma previsão específica no Anteprojeto – atualmente tratada no item IV-2.2 da resolução 2.320/2022 do CFM[6] – causa um pouco de estranhamento, uma vez que diz respeito à possibilidade de coincidência identitária entre a pessoa que irá doar o óvulo e aquela que vai gestar.
Tal situação é bastante debatida, do ponto de vista ético e também do jurídico, sobretudo em razão do ocorrido no caso Baby M, nos Estados Unidos, em meados do ano de 1985, em que o casal William e Elizabeth Stern assinou um contrato de GS com Mary Beth Whitehead, no qual esta, além de levar a termo a gravidez, também doou o óvulo a ser fecundado com o material genético do Sr. Stern, tendo ainda aberto mão dos seus direitos parentais, após o parto, para que a Sra. Stern pudesse adotar legalmente a criança. Não obstante, a Sra. Whitehead, estando arrependida, recusou-se a entregar a criança ao casal beneficiário, gerando uma disputa judicial pela guarda do bebê, a qual acabou sendo concedida ao casal Stern pela Corte do estado de Nova Jersey.[7]
Sobre o caso, Maria Rita de Holanda comenta que houve um conflito positivo de filiação, no qual a gestante, embora tenha se comprometido a entregar a criança após o parto, arrependeu-se e negou-se a fazê-lo, ensejando a que tanto a mãe intencional quanto a gestante reivindicassem a maternidade da criança.[8] Em razão disso, o fato de a gestante ser também a doadora do material genético gerou uma repercussão negativa, dada a alta probabilidade conflitiva para o estabelecimento da filiação, tornando desaconselhável essa modalidade de uso da GS, também conhecida como Gestação Sub-rodaga Tradicional ou Parcial (tradicional ou partial surogacy)[9].
Diante disso, parece ser pertinente a adição de uma disposição que inviabilize a doação de material genético pela pessoa que irá gestar, uma vez que pode gerar maiores conflitos no estabelecimento da filiação[10].
Formalidade da pactuação. O art. 1.629-O indica que a GS deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início do procedimento de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem será atribuído o vínculo de filiação.
Nessa esteira, impende comentar a respeito dos impactos que as tecnologias reprodutivas, associadas ao fortalecimento da socioafetividade nas relações familiares, geraram para o estabelecimento dos vínculos materno-paterno-filiais no direito pátrio. Destarte, é interessante destacar o posicionamento da professora Eleonora Lamm acerca do que ela chama de vontade procriacional. Segundo a autora, se antes a exclusividade da reprodução natural implicava na impossibilidade de dissociação dos liames biológicos e genéticos, hoje, com os recursos da RHA, o biológico já não compreende mais o genético e vice-versa[11]. Explica-se: na reprodução humana natural, a ininterruptibilidade do processo reprodutivo faz com que haja identidade entre os elementos biológicos e genéticos, já que a concepção da criança se dá endogenamente, com o material genético do casal em questão. Diversamente, por exemplo, quando uma mulher recorre à GS, mediante o uso dos seus próprios gametas sexuais, o biológico (gestação) não compreende o genético (óvulos), posto que oriundos de pessoas diferentes. Por outro lado, pode ser que uma pessoa contribua apenas com os gametas sexuais – a exemplo da doação de sêmen ou de óvulos –, sem intenção de constituir a parentalidade, mas a gravidez é produzida por meio da RHA, casos em que o genético (gametas sexuais) não compreende o biológico (gravidez), tendo em vista o fato de que a colaboração é meramente genética.
De tal modo, na RHA, têm-se um embate entre os fatores genético e volitivo, sendo que a vontade e a intenção de construção de um projeto parental apresenta maior preponderância quando comparada à simples identidade genética, visto que respeita melhor os interesses do menor, o qual já é esperado e amado pelos pais intencionais mesmo antes da sua concepção[12]. Por isso, defende a autora que a RHA tem gerado uma volta à verdade voluntária, atribuindo-se a filiação a partir do elemento volitivo, em detrimento do biológico e/ou genético “[…] se trata de uma filiação que se determina sobre a base do consentimento previamente prestado” (tradução nossa)[13].
Nessa toada, pode-se dizer que o anteprojeto sedimentou essa perspectiva de valorização do elemento volitivo (vontade procriacional) como critério efetivo de atribuição de filiação no contexto da RHA.
Registro dos filhos gerados na “cessão temporária de útero”. O art. 1.629-P cuidou da efetivação do registro daquelas crianças oriundas do emprego da técnica da GS, determinando que:
(a) será levado a efeito no nome dos autores do projeto parental;
(b) para tanto, deverão ser apresentados a Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou documento equivalente, o termo de consentimento informado, firmado na clínica que realizou o procedimento e o documento escrito firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação (§1º);
(c) não deverá ser publicizado, em nenhuma hipótese, o assento de nascimento ou dados dos quais se possa inferir o caráter da gestação (§2º)
Tal dispositivo mostra-se bastante pertinente, uma vez que finalmente sedimenta a facilitação do registro das crianças nascidas pelo emprego da GS, que, até então, é regulado pelo provimento nº 149/2023 do CNJ.
Da reprodução assistida post mortem
Autorização do recurso à RHA post mortem mediante consentimento expresso. No tocante à RHA post mortem – atualmente tratada no art. 1.597, III do CC/02 sem maiores cuidados com suas repercussões, especialmente no campo sucessório –, o art. 1.629-Q autoriza expressamente o uso de material genético de qualquer pessoa (espermatozoide, óvulo ou embrião) após sua morte, desde que haja expressa manifestação autorizando, em documento escrito, sendo vedada a sua coleta e a utilização no tocante àquela pessoa que não consentiu expressamente, mesmo que haja manifestação de seus familiares em sentido contrário (art. 1.629-R).
Para tanto, o documento em que consta a anuência deve indicar: (a) a quem deverá ser destinado o gameta (espermatozoide ou óvulo) e quem deverá gestar após a concepção; e, (b) a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, no caso de embrião.
Sobre esse tema, cabe aqui salientar que o dispositivo do caput do 1.629-Q faz menção apenas à “documento escrito”, sem indicar-lhe formalidade específica, o que, a princípio, parece contrastar com aquilo que já havia sido decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na matéria, a partir da análise do Recurso Especial (REsp) nº 1.918.421/SP, em que não se reconheceu legitimidade da utilização do contrato padrão de prestação de serviço das clínicas de RHA como documento hábil a atestar a vontade do falecido para uso post mortem do seu material genético no recurso às mencionadas técnicas[14].
Não obstante, é preciso que tal artigo seja lido em concomitância com aquilo que fora previsto no parágrafo único do art. 1.598-A, que estabelece forma específica para concessão de tal consentimento, sendo ela através de testamento público ou escritura pública[15]
Atribuição de efeitos à filiação póstuma. No tocante a atribuição de direitos sucessórios, fora previsto, no art. 1.798, ao estabelecer a legitimidade sucessória passiva no livro das Sucessões, que se legitimam a suceder:
(a) os nascidos ou já concebidos no momento da abertura da sucessão (caput, primeira parte); e
(b) os filhos gerados por RHA post mortem (caput, parte final), desde que: (i) gerados após a abertura da sucessão dentro do prazo de até 5 (cinco) anos contados da abertura desta, para fins de reconhecimento de seus efeitos sucessórios (§1º); e, (ii) mediante autorização expressa e inequívoca do autor da herança para uso do material crioconservado, realizado por meio de escritura pública ou testamento público (§2º), revogável a qualquer tempo (§2º)[16];
Determina-se, ainda, que, para os fins da RHA post mortem, o vínculo entre filho concebido e genitor falecido se estabelecerá para todos os efeitos jurídicos da relação paterno-filial (art. 1.629-Q, parágrafo único), mesmo que ultrapassado o limite temporal de 5 (cinco) anos previsto no §1º do art. 1.798 (art. 1.798, §6º), medida que se impõe dada a imprescritibilidade do reconhecimento do estado de filiação em sua dimensão existencial (súmula 149 do Supremo Tribunal Federal – STF[17]).
Formalização do consentimento. Desse modo, percebe-se que não é qualquer “documento escrito” que terá o condão de autorizar o uso de material genético a partir do emprego da RHA post mortem, uma vez que tal anuência deve dar-se por meio de “escritura pública ou testamento público”.
Essa formalidade, por sua vez, ao que parece, deve ser entendida enquanto requisito mínimo a autorizar o próprio emprego da técnica em momento póstumo, uma vez que a sua não verificação parece inviabilizar o reconhecimento dos direitos sucessórios em si (de natureza patrimonial), embora não possa ser levantado como impeditivo ao reconhecimento do estado de filiação (dimensão existencial).
Prazo para verificação dos direitos sucessórios. Ademais, o estabelecimento de prazo específico de 5 (cinco) anos para a verificação dos direitos sucessórios dos concebidos post mortem pareceu tentar dirimir divergência erigida pela doutrina atual quanto ao prazo para tal verificação, qual seja: (a) aqueles que defendem a aplicação analógica do prazo de 2 (dois) anos imposto à prole eventual abrangida em testamento como herdeira (art. 1.800, §4º); e (b) aqueles que defendem a utilização do prazo prescricional de 10 (dez) anos aplicável à petição de herança (art. 205)[18]. Para tanto, alegou-se, na exposição de motivos, que: “Os direitos patrimoniais sucessórios desses filhos ‘diferidos no tempo’ não podem estar atrelados às regras previstas para a petição de herança, sob pena de grave insegurança jurídica aos herdeiros já existentes e conhecidos na data de abertura da sucessão”[19].
Do consentimento informado
Obrigatoriedade do consentimento. Conforme a disposição, todo e qualquer uso das técnicas principais e auxiliares de RHA será precedido de prévio termo de consentimento informado (art. 1.629-S).
A lógica da obrigatoriedade do consentimento já se encontrava presente nas resoluções do CFM relativas à RHA, havendo, em todas elas, a necessária manifestação da vontade dos autores do planejamento familiar em relação à concordância do tratamento a partir das informações prestadas aos beneficiários.
Esclarecimentos necessários. Ao firmar o termo, deverão ser informados os riscos e benefícios do tratamento médico indicado, de modo que o paciente esteja munido das informações necessárias para dar cabo à sua tomada de decisão genuína (art. 1.629-T).
Em realidade, essa exigência se fundamenta na possibilidade de garantir a capacidade de autodeterminação da pessoa humana a partir da garantia do princípio bioético da autonomia, pensando-se na teoria principialista. Ademais, o autogoverno do sujeito, em contexto médico hospitalar, perpassa, necessariamente, pela concessão de informações necessárias para que a pessoa entenda o seu quadro clínico e possa, a partir disso, tomar a decisão que corresponda ao seu projeto de vida.
Neste momento, ressalta-se que ao médico não cumpre o papel de decidir pelo paciente, mas tão somente auxiliá-lo na tomada de decisão, reservando a este, tão somente, a objeção de consciência caso haja discordância quanto à escolha existencial do paciente.
Autorização conjugal na RHA heteróloga. O dispositivo estabelece como critério a concordância expressa do cônjuge ou companheiro, no ato de firmar o consentimento informado, quando houver a utilização do procedimento indicado e com o uso ou não de material genético de doador (RHA heteróloga) (art. 1.629-U).
Essa exigência encontra-se diretamente associada à construção doutrinária acerca da proibição de se produzir comportamento contrário após a manifestação da vontade (venire contra factum proprio), de modo a afastar, por exemplo, uma desistência do cônjuge ou companheiro após a utilização do material genético de doador[20].
Além disso, em caso de vício no consentimento, abre-se a ressalva de ser admitida a ação negatória de parentalidade, não se confundindo, portanto, com a lógica da desistência. Por fim, admite-se a manutenção da relação parental caso haja comprovada socioafetividade.
Destinação do material genético crioconservado. O termo de consentimento deverá prever o destino do material biológico crioconservado em caso de: (a) dissolução conjugal; (b) doença grave; (c) falecimento; ou (d) desistência do tratamento (art. 1.629-V).
A tendência de se exigir a manifestação da vontade dos autores do planejamento familiar, no momento de contratação do serviço, já existia em todas as resoluções do CFM. Todavia, ressalta-se que, a qualquer tempo, devido à natureza do termo tratar-se de bens da personalidade, isto é, a livre disposição do corpo, poder-se-á revogar o que fora pactuado. Este entendimento é acompanhado pela jurisprudência nacional[21].
A exemplo, em recente julgamento do STJ, em 2021, por meio do REsp 1.918.421, consolidou-se o entendimento de que o mero consentimento em contrato padrão de prestação de serviço de RHA, por si só, é insuficiente para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários. Seria necessário, assim, a manifestação de vontade expressa e específica em testamento ou documento análogo.[22] [23]
No parágrafo único, o suporte fático do dispositivo ratifica, também, a possibilidade de destinação para pesquisa ou entrega para projeto parental alheio, em conformidade com as diretrizes da Lei de Biossegurança. A reflexão em torno da entrega do material biológico para projeto parental alheio, no Brasil, merece maiores reflexões para que haja regulamentação, sendo uma iniciativa louvável no anteprojeto.
Por fim, na parte final do parágrafo único, o anteprojeto solidifica explicitamente a lógica de que o material crioconservado não poderá ser descartado. Ao trazer essa previsão, parece desconsiderar a liberdade dos autores do projeto parental em desejarem o descarte fundamentado, sendo esta uma dúvida no estágio atual do direito. Haveria, de fato, liberdade plena sobre a descarte embrionário?
A resposta dessa reflexão suscita, ainda, o debate em torno da natureza jurídica do embrião crioconservado, que permanece em indefinição. Isso, pois na ADI 3.510, julgada em 2008, o STF não se posicionou quanto à natureza dos embriões crioconservados, mas confirmou a constitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105/05, quanto à destinação para pesquisa[24].
Notas
[1] Constituição Federal de 1988: “Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. […] § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.
[2] Constituição Federal de 1988: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […] I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; […]”
[3] Cf. SILVA NETTO, Manuel Camelo Netto. Planejamento Familiar nas Famílias LGBT: desafios sociais e jurídicos do recurso à reprodução humana assistida no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
[4] Constituição Federal de 1988: “6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
[5] Código Civil de 2002: “Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
[6] Resolução 2.320/2022: “2.2. A doadora de óvulos ou embriões não pode ser a cedente temporária do útero”.
[7] GRAZIUSO, Bruna Kern. Gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: regulamentações e práticas de casos nacionais e transnacionais. 2017. 225 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade La Salle, 2017, p. 16-18. Disponível em: http://svr-net20.unilasalle.edu.br/handle/11690/838. Acesso em: 17 maio 2024.
[8] HOLANDA, Maria Rita de. Parentalidade: entre a realidade social e o Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
[9] Fala-se também na Gestação Sub-rogada Gestacional ou Total (gestational ou total surrogacy), aquela em que o material genético fecundante é totalmente pertencente ao casal beneficiário ou oriundo da doação por terceiros, não sendo utilizados os óvulos da gestante sub-rogada (Cf. FINKELSTEIN, Alex; MAC DOUGALL, Sarah; KINTOMINAS, Angela; OLSEN, Anya. Surrogacy law policy in the U.S.: a national conversation informed by global lawmaking. Columbia Law School Sexuality & Gender Law Clinic, 2016, p. 5. Disponível em: https://web.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/gender-sexuality/files/columbia_sexuality_and_gender_law_clinic_-_surrogacy_law_and_policy_report_-_june_2016.pdf). Acesso em: 17 maio 2024.
[10] Embora não se ignore a possibilidade de reconhecimento de multiparentalidade – reconhecida pelo STF no julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 622 e mencionada em diversos dispositivos do anteprojeto, a exemplo dos arts. 1.617-B, 1.617-C, §2º, 1.619, §3º, 1.694, §2º e 1.696, parágrafo único –, sabe-se que, a priori, o conflito positivo de filiação não é o esperado pelos autores do projeto parental na sua gênese, de modo que a melhor opção de técnica legislativa parece ser aquela que tendo, ao máximo, evitá-lo no campo hipotético.
[11] LAMM, Eleonora. La importância de la voluntad procreacional em la nueva categoria de filiación derivada de las técnicas de reproducción assistida. Revista de Bioética y Derecho. Barcelona, n. 24, p. 76-91, 2012, p. 80. Disponível em: http://revistes.ub.edu/index.php/RBD/article/view/7610/9516. Acesso em 24 maio 2024.
[12] LAMM, Eleonora. Op. cit., 2012, p. 80-81.
[13] LAMM, Eleonora. Op. cit., 2012, p. 81.
[14] Nessa oportunidade, decidiu a 4ª Turma do STJ que, para os fins do uso de material genético em RHA post mortem: “A declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, haverá de ser efetivada por testamento ou por documento análogo” (grifo nosso) (Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.918.421/SP. Relator (para o acórdão): Ministro Luis Felipe Salomão. Publicado em: 26/08/2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202100242516&dt_publicacao=26/08/2021). Acesso em: 24 abr. 2024.
[15] Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil (grifo nosso): “Art. 1.598-A […] “Parágrafo único. A autorização para o uso, após a morte, do próprio material genético, em técnica de reprodução humana assistida, dar-se-á́ por manifestação inequívoca de vontade, por escritura pública ou testamento público, respeitado o disposto no art. 1.629-Q deste Código”.
[16] O art. 1.798 trata ainda: (i) da possibilidade de nomeação pelo juiz de curador para o concepturo em caso de ausência de genitor supérstite ou conflito de interesses com o inventariante ou com os demais herdeiros, para resguardar os interesses sucessórios daquele, até o seu nascimento com vida (§4º); e (ii) que o curador ou genitor sobrevivente podem requerer a reserva do quinhão hereditário pelo prazo de 5 (cinco) anos previsto do §1º (§5º).
[17] Súmula 149 do STF: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”.
[18] Para maior aprofundamento no tema, ver GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Herança legítima ad tempus: tutela sucessória no âmbito da filiação resultante de reprodução assistida póstuma. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
[19] BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/3f08b888-b1e7-472c-850e-45cdda6b7494. Acesso em: 24 abr. 2024.
[20] LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 235.
[21] Consultar DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
[22] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.918.421/SP. Relator (para o acórdão): Ministro Luis Felipe Salomão. Publicado em: 26/08/2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202100242516&dt_publicacao=26/08/2021. Acesso em: 24 abr. 2024.
[23] Sobre o tema, ver FRANCESCONI, Paula Moura; ALMEIDA, Vitor. Os desafios da reprodução assistida post mortem e o alcance do testamento genético: ampliando as formas de disposição do próprio corpo após a morte. In: TEIXEIRA, Daniela Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório: Tomo III. Editora Fórum, Belo Horizonte, 2022.
[24] Conferir DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 145-155.
Referências
BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/3f08b888-b1e7-472c-850e-45cdda6b7494. Acesso em: 24 abr. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.918.421/SP. Relator (para o acórdão): Ministro Luis Felipe Salomão. Publicado em: 26/08/2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202100242516&dt_publicacao=26/08/2021. Acesso em: 24 abr. 2024.
DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
FINKELSTEIN, Alex; MAC DOUGALL, Sarah; KINTOMINAS, Angela; OLSEN, Anya. Surrogacy law policy in the U.S.: a national conversation informed by global lawmaking. Columbia Law School Sexuality & Gender Law Clinic, 2016. Disponível em: https://web.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/gender-sexuality/files/columbia_sexuality_and_gender_law_clinic_-_surrogacy_law_and_policy_report_-_june_2016.pdf. Acesso em: 17 maio 2024.
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Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero (CDSG) e da comissão de Direito de Família (CDF) da OAB/PE, advogado, mediador humanista e pesquisador nas áreas de Direito das Famílias, Sucessões, Biodireito e Direitos LGBTQIAP+.
Carlos Henrique Félix Dantas
Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da comissão de Direito de Família (CDF) da OAB/PE, advogado e pesquisador nas áreas de Direito das Famílias, Sucessões e Biodireito.