Breves notas sobre a sucessão contratual no Direito brasileiro: o instrumento da partilha em vida

16 de abril de 2024

A temática do planejamento sucessório assume importante pauta para o direito e traz consigo uma necessária rediscussão acerca de diversos institutos do direito das sucessões. Ele é um instrumento de democratização das relações sucessórias. A uma, porque ele não se dá apenas por intermédio da realização de testamento. A duas, porque o tema tem aproximado consideravelmente a preocupação com a sucessão causa mortis de uma parcela da população que antes não tinha acesso ou mesmo conhecimento das vantagens desse tipo de delineamento patrimonial. Exemplos não faltam e, a despeito de questões complexas, o simples custo que a decisão por tal ou qual ato jurídico praticar, por vezes é determinante para pessoas que possuem um único bem ou até mesmo um patrimônio razoável.

Entre os inúmeros instrumentos que podem ser utilizados num planejamento sucessório encontra-se o instituto da partilha em vida. Ao autor da herança que deseja antecipar em vida a partilha de seu patrimônio, o Código Civil reservou o art. 2.018, permitindo a sua realização desde que respeitada a legítima dos herdeiros necessários.

 Desde o início da disciplina legislativa sobre o tema, não havia claro consenso entre os doutrinadores acerca da utilidade da inclusão do referido instituto na codificação civil pátria. Independentemente das críticas e do intenso debate sobre sua utilidade e, especialmente, sobre a sua natureza jurídica, o instituto passou a integrar o rol de possibilidades disponíveis ao autor da herança que desejasse, no pleno exercício de sua autonomia privada, disciplinar o destino de seus bens.

A partilha em vida pode ser realizada por testamento (negócio jurídico unilateral), por doação (negócio jurídico bilateral) ou por negócio jurídico plurilateral, a que Paulo Lôbo denomina de “partilha inter vivos”, representando, segundo ele e como afirmado anteriormente, a genuína partilha em vida[1].

Tal instituto não deve ser confundido com a doação, pois, ao contrário dela, não admite a possibilidade de revogação, uma vez que não deve ser considerada uma liberalidade do titular dos bens, mas uma renúncia de sua titularidade em benefício de seus sucessores. Estes, no momento da abertura da sucessão, estão dispensados da colação, já que o quinhão por eles recebido não se consubstancia em antecipação, mas sim na própria partilha dos bens.  

Importante anotar que não se trata de partilha no sentido de fase final do processo de inventário, tampouco poderia ser considerada uma divisão amigável, pois, como ensinam Francisco Cahali e Giselda Hironaka, “não são os herdeiros que assim se compõem, mas o de cujos, que, em vida, assim impõe”, o que permite “que se promova a transferência antecipada do patrimônio aos futuros sucessores, evitando-se, assim, o processo de inventário ou arrolamento, definindo se as eventuais diferenças entre o valor dos quinhões serão objeto de colação ou não entre os herdeiros necessários”[2].

A desnecessidade de abertura de processo de inventário, apontada por Francisco Cahali e Giselda Hironaka no parágrafo anterior[3], não é pacífica, especialmente quando se considera que, no caso concreto, é possível que existam bens adquiridos em momento posterior à realização do ato de destinação dos bens aos sucessores, que ficarão sujeitos às regras gerais da sucessão legítima ab intestato.

Não nos parece necessário exigir a abertura de inventário quando se verificar disposição integral dos bens aos sucessores em vida, ou ainda quando basta assegurar o cumprimento do testamento para garantir a disposição sobre a integralidade dos bens que compõem o espólio. Neste ponto reside a crítica quanto à localização do art. 2.018 do Código Civil no título dedicado ao procedimento de inventário. Acontece que, a depender dos desdobramentos fáticos ocorridos após o ato de destinação dos bens, é possível a realização do procedimento do inventário, motivo pelo qual a resposta para tal situação depende da análise das circunstâncias do caso concreto.

Importante ressaltar a possibilidade de realizar a partilha em vida por mais de um modo. Desde que respeitados os limites da herança legítima, a pessoa pode partilhar seus bens na forma testamentária[4], indicando, na forma do art. 2.014 do Código Civil, os bens, valores e direitos que devem compor a parte de cada herdeiro legítimo ou testamentário. Pela adoção do testamento como instrumento da partilha, esta somente produzirá seus efeitos com a abertura da sucessão. Necessário é também que o testador não modifique o seu patrimônio após expressar suas disposições de última vontade[5].

Se o ato de disposição dos bens for parcial, ou novos bens ingressarem no patrimônio do autor da herança após a realização da partilha em vida, necessária será a partilha judicial ou extrajudicial após a morte do titular do patrimônio. O que é imprescindível para caracterizar a partilha em vida, seja em que modalidade for, é a determinação ou individualização dos bens destinados a cada herdeiro[6].

Não se pode perder de vista que é possível que ocorra o nascimento de herdeiros necessários após a realização da partilha em vida. Nessa hipótese, aplica-se o mesmo tratamento dispensado aos casos em que a partilha foi feita sem a presença de algum dos herdeiros necessários: “a transmissão dos bens será tida como adiantamento de legítima[7], com o consequente dever de colação (não produzindo efeitos em relação ao herdeiro que dela não participou)”[8].

Imperioso também destacar que, não obstante a redação do dispositivo legal (art. 2.018, CC), o qual menciona expressamente a classe dos ascendentes, não há impedimento à efetivação da partilha em vida por qualquer pessoa, observadas as regras próprias[9].

Importante destacar ressalva formulada por Zeno Veloso[10], de que embora a partilha em vida não possa ferir direitos dos herdeiros necessários, não obsta a “distribuição de quinhões diferentes, seguindo a regra geral de liberdade de disposição da parte [disponível] não compreendida pela legítima”[11].

A decisão do titular dos bens de realizar a partilha em vida deve ser tomada após sopesar todos os pontos acima apontados, evitando que o instrumento do planejamento sucessório seja comprometido por sua inadequação às circunstâncias do caso concreto. Desde que preenchidos todos os requisitos para a concretização do suporte fático suficiente à garantia da eficácia do ato, a partilha em vida se consubstancia como mais um dos instrumentos à disposição do titular dos bens que deseja exercer de modo pleno a sua autonomia privada patrimonial.


[1] LÔBO, Paulo. Direito civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 324. Ao comentar o disposto no art. 2.018, José Fernando Simão assim sintetiza: “A partilha em vida, quer seja por doação (negócio jurídico bilateral que produz efeitos imediatos), quer seja por testamento (negócio jurídico unilateral que só produz efeitos após a morte do testador), quer seja por acordo entre todos os herdeiros e o proprietário dos bens (negócio jurídico plurilateral, pois terá a vontade do titular dos bens e de seus futuros herdeiros), é admitida pelo sistema” (SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luiz.Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1.696).

[2] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 483.

[3] Neste sentido, Giselda Hironaka e Francisco Cahali citam decisão do TJSP (RT 662/83), ainda durante a vigência do CC/16, que considera injustificada qualquer providência de colação de bens diante da realização de partilha em vida (vide o revogado art. 1.776 da codificação anterior), com distribuição equânime dos bens entre os herdeiros, chegando os julgadores, no caso concreto, a considerar desnecessária a expressão dispensa da coleção, pelo doador, no ato da liberalidade. (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 483, nota de rodapé 36).

[4] Para Sílvio Rodrigues, “esse tipo de partilha só devia ser permitido quando efetuado por testamento. Aí, com as formalidades garantidoras de sua autenticidade e da liberdade do testador, é facultado a este declaração como devem seus bens ser partilhados”. (FRANÇA, Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 57. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 207).

[5] LÔBO, Paulo. Direito civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 323.

[6] LÔBO, Paulo. Direito civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 325.

[7] No mesmo sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Todo ato de liberalidade, inclusive doação, feito a descendente e/ou herdeiro necessário nada mais é que adiantamento de legítima, impondo, portanto, o dever de trazer à colação, sendo irrelevante a condição dos demais herdeiros: se supervenientes ao ato de liberalidade, se irmãos germanos ou unilaterais. É necessária a expressa aceitação de todos os herdeiros e a consideração de quinhão de herdeira necessária, de modo que a inexistência da formalidade que o negócio jurídico exige não o caracteriza como partilha em vida. A dispensa do dever de colação só se opera por expressa e formal manifestação do doador, determinando que a doação ou ato de liberalidade recaia sobre a parcela disponível de seu patrimônio. Recurso especial não conhecido”. (REsp 730.483/MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/5/2005, DJ 20/6/2005, p. 287).

[8] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 2.037.

[9] ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Código Civil Comentado. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 2.037.

[10] Comentário ao Código Civil. v.21. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 437.

[11] FARIAS, Cristiano Chaves de; Figueiredo, Luciano L.; Ehrhardt Jr., Marcos; Dias, Wagner Inácio Freitas. Código Civil para Concursos, 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 1.800.


Marcos Ehrhardt Junior

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.

Gustavo Henrique Baptista Andrade

Pós-doutorado em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP) UFPE-CNPq. Procurador do Município do Recife. Advogado. E-mail: gustavo@gustavoandrade.adv.br.

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *