Ante a publicação do Novo Marco Legal do Saneamento, houve uma grande movimentação dos municípios, em especial, no sentido de buscar o cumprimento do dever de universalização dos serviços públicos de saneamento básico no que toca o abastecimento de água e o esgotamento sanitário. Desde o advento da Lei federal nº 14.026/2020 já ocorreram diversos leilões para a concessão desses serviços públicos, com a crescente participação de atores privados em sua prestação. Entretanto, pouco se fala do serviço público de manejo dos resíduos sólidos, com a sua adequada destinação.
Nos termos da Lei federal nº 11.445/2007 e da Norma de Referência nº 01 – ANA, o serviço de manejo de resíduos sólidos urbanos é o serviço público que compreende as atividades de coleta, transbordo, transporte, triagem para fins de reutilização ou reciclagem, tratamento e destinação final dos resíduos sólidos urbanos, englobando os:
- Resíduos domésticos;
- Resíduos originários de atividades comerciais, industriais e de serviços, em quantidade e qualidade similares às dos resíduos domésticos, que, por decisão do titular, sejam considerados resíduos sólidos urbanos, desde que não sejam de responsabilidade de seu gerador nos termos da norma legal ou administrativa, de decisão judicial ou de termo de ajustamento de conduta; e
- Resíduos originários do serviço público de limpeza urbana (SLU)
Atualmente, conforme apontado pelo Índice de Sustentabilidade Urbana (ISLU 2021), metade das cidades brasileiras descarta seu lixo de forma ambientalmente inadequada. O descarte de grande parte desses dejetos ainda é feito em lixões a céu aberto, sem técnicas apropriadas, muitas vezes consideradas de alto custo.
O ISLU 2021 aponta a correlação entre a grande quantidade de resíduos despejada irregularmente em lixões a céu aberto ou “aterros controlados” e a ausência ou insuficiência de cobrança individualizada para custear o devido tratamento e disposição final ambientalmente adequada em modernos aterros sanitários regionais.
Atualmente, cerca de 4 mil municípios não possuem cobranças para o serviço de manejo de resíduos sólidos urbanos. A ausência desses recursos faz com que os municípios tenham dificuldades em manter um aterro sanitário adequado ou encaminhar seus resíduos para um aterro em municípios vizinhos (mediante contrato ou consórcio), ante o alto custo de transporte. Assim, a destinação final acaba sendo inadequada e precária, sendo não rara a utilização de lixões ilegais, resultando em problemas diversos – notadamente sanitários, sociais e ambientais.
Paralelamente, há municípios nos quais, em que pese haja a cobrança pelo serviço, essa se mostra insuficiente para manter a prestação e a destinação adequada, não se observando o necessário equilíbrio econômico-financeiro entre os valores arrecadados e o custo dos serviços.
Estes fatores implicam em diversos prejuízos aos municípios, que ficam sujeitos a sanções administrativas e, muitas vezes, utilizam os recursos decorrentes de impostos para arcar com os custos dos serviços – recursos estes que poderiam ser direcionados para outras políticas públicas municipais.
Diante desse cenário, a legislação brasileira tem empenhado esforços para proposição de soluções no setor de resíduos sólidos urbanos. A normatividade advinda da Lei federal n°12.305/2010, o Novo Marco Legal do Saneamento (Lei federal nº 14.026/2020), a Norma de Referência n°01 da ANA, os decretos federais nº 10.936, 11.043 e 11.044, todos de 2022, representam um conjunto normativo voltado à tomada de ações dos setores que estimulem a reutilização e reciclagem dos resíduos urbanos, o sistema de logística reversa, o desenvolvimento de tecnologia limpa com o aproveitamento energético e padrões sustentáveis de produção e de consumo e a cobrança adequada pelos serviços de manejo dos resíduos sólidos urbanos.
Nos termos do artigo 35 do novo marco legal do saneamento, as taxas ou as tarifas decorrentes da prestação de serviço de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos considerarão a destinação adequada dos resíduos coletados e o nível de renda da população da área atendida, as características dos lotes e as áreas que podem ser neles edificadas, o consumo de água e a frequência de coleta.
A Norma Referencial nº 01 da ANA dispõe “sobre o regime, a estrutura e parâmetros da cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos, bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias”.
O objetivo da norma da ANA é, gradualmente, promover a extinção dos lixões no país, oferecendo respaldo regulatório para a cobrança pelos serviços de manejo de resíduos sólidos urbanos, criando um ambiente de sustentabilidade econômico-financeira na execução desses serviços. A ANA compreende a sustentabilidade econômico-financeira para a prestação do SMRSU como “a cobrança, arrecadação e efetiva disponibilização ao prestador de serviço de recursos financeiros, suficientes para fazer frente aos custos eficientes de operação e de manutenção (OPEX), de investimentos prudentes e necessários (CAPEX), bem como a remuneração adequada do capital investido para a prestação adequada do SMRSU no longo prazo”.
De acordo com a NR 01- ANA, a cobrança pelos serviços de manejo de resíduos sólidos urbanos pode se dar por meio de tarifa ou taxa – desde que estruturados de forma a garantir a receita adequada para custear o tipo de prestação. No entanto, o regime de cobrança preferencial deve ser o tarifário – conforme os estudos dirigidos realizados pela ANA as tarifas são a melhor maneira para se atingir a sustentabilidade financeira do serviço, da maneira mais justa possível.
A tarifa terá seu valor fixado por agência reguladora, por meio de critérios técnicos que possam assegurar a cobrança de valor suficiente para fazer frente a todas as despesas com a prestação do serviço e, ao mesmo tempo, garantir a modicidade do valor cobrado dos usuários.
O ato que institua a tarifa deve prever, no mínimo: i) os serviços/atividades objeto da cobrança; ii) o usuário sujeito à cobrança; iii) a política de subsídios; iv) a periodicidade da cobrança (mensal/anual) e critério de parcelamento, no caso de valor anual; v) a estrutura tarifária; vi) critérios de reajuste e revisão; vii) a forma de cobrança/arrecadação das tarifas – documento específico, carnê/guia do IPTU, conta do serviço público de abastecimento de água, ou outra forma; viii) e as infrações e penalidades a que o usuário está sujeito.
A metodologia do cálculo do valor adequado para a cobrança deve considerar a renda da população da área atendida, a destinação adequada dos resíduos coletados (perpassando pelos diferentes custos de reutilização, reciclagem, compostagem, recuperação, aproveitamento energético, dentre outros) e, ainda, o perfil do usuário, conforme a quantificação dos resíduos produzidos (mediante aplicação de determinados parâmetros, como por exemplo a característica do imóvel ocupado, peso ou volume médio coletado, consumo de água, frequência da coleta, etc.). E, sendo eleito o sistema de cobrança tarifário, tem-se que seu valor poderá ser fixado por contrato de concessão, ato administrativo do titular do serviço ou ato da entidade reguladora do serviço de manejo de resíduos sólidos urbanos. O seu reajuste deverá ser anual e seguir o procedimento previsto pela ANA, com duração máxima de 30 dias para o processo de avaliação.
Vê-se que a Norma de Referência nº 01 – ANA vem preencher um vácuo importante na gestão de resíduos sólidos urbanos que é a falta de instrumentos de cobrança que garantam a sustentabilidade econômico-financeira e a adequada prestação do serviço nos municípios brasileiros.
Visando guiar a implementação dos instrumentos de cobrança pelo SMRSU pelos titulares do serviço, a ANA desenvolveu Manual Orientativo sobre a Norma de Referência nº 01, disponível no site da agência (https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/saneamento-basico/normativos-publicados-pela-ana-para-o-saneamento-basico/resolucao-ana-no-79-2021-1/manual-orientativo-sobre-a-norma-de-referencia-no-1.pdf).
Autora: Ana Carolina Hohmann
Doutora e Mestre em Direito do Estado – USP. Advogada
Aprofunde-se sobre o tema
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Saneamento Básico uma Lei e um Marco, coordenada por Augusto Neves Dal Pozzo, Geninho Zulian
Promulgou-se, recentemente, no Brasil, a inovadora reforma do Marco Regulatório do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/20), com o fim de promover, finalmente, a universalização de serviço público fundamental ao desenvolvimento econômico e social do País.
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O novo Direito do Saneamento Básico, coordenada por Fernando Vernalha Guimarães
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