Dogmaticamente, a figura do contrato é caracterizada como um negócio jurídico bilateral com objeto e sujeitos definidos, pelo menos formado de duas manifestações de vontade, proposta e aceitação, as quais convergem em um denominador comum, produzindo efeitos jurídicos. Reflexo das codificações oitocentistas, é regido pela máxima pacta sunt servanda, de modo que, observados os requisitos legais de validade, tem o condão de fazer lei entre as partes, vinculando-as a partir de sua celebração até sua conclusão. É, por excelência, expoente do direito privado moderno, no qual vigora a proteção da propriedade e a supremacia da autonomia privada.
Essa acepção de contrato, estritamente jurídica e cerrada, em que pese muito presente em manuais, mostra-se insuficiente diante das intensas e constantes transformações socioeconômicas, das quais surgem as mais variadas e complexas relações negociais, consequentemente demandando renovadas respostas jurídicas. Com efeito, a confiança, como pressuposto da ordem jurídica, bem como a boa-fé objetiva, em todas suas roupagens normativas, tornaram-se elementos fundamentais de um novo paradigma contratual, o qual, a partir de uma visão holística e sistêmica, considera o contrato como um processo. Nessa linha, o contrato não mais se restringe à relação jurídica estabelecida a partir do consenso entre proposta e aceitação, o que, a bem da verdade, passa a ser apenas uma de suas etapas, sendo precedida pela fase pré-contratual e sucedida pela pós-contratual, as quais se complementam. Trata-se, aliás, de interpretação ancorada no artigo 422 do Código Civil (CC), o qual dispõe que “[o]s contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Entretanto, pela literalidade de tal dispositivo legal, nota-se que não está albergada a fase preparatória, a despeito de sua inquestionável importância no processo contratual, haja vista ser esse o momento em que se desenvolvem as tratativas, acordam-se condições e termos e, sobretudo, criam-se expectativas acerca do negócio a ser firmado. Nesse sentido, busca-se responder no presente artigo, a partir da confiança como pressuposto da ordem jurídica, bem como da sua concretização a partir da boa-fé objetiva, quais são os fundamentos jurídicos que justificam o surgimento da obrigação pré-contratual, a despeito da ausência de previsão normativa expressa.
Boa-fé objetiva pré-contratual
Situar a boa-fé no direito, tal como a confiança, é trabalho complexo. Sabe-se, quase de forma clarividente, que se trata de conduta esperada do homem comum no viver em sociedade, em que pese esta noção carregue alto grau de abstração. Assim, cabe ao operador do direito explorá-la, a fim de mitigar os subjetivismos que a permeiam e, assim, garantir segurança jurídica quando é invocada no caso concreto.
Em uma qualificação que melhor se aproxima de uma definição, para MARTINS-COSTA, boa-fé seria um “modelo jurídico complexo e prescritivo”[1], contemplando diversas estruturas normativas no ordenamento. Todavia, concepções meramente estruturais se revelam dogmaticamente insuficientes para conceber, em sua plenitude, institutos jurídicos no contexto socioeconômico atual. Por essa razão, percebeu-se um movimento que passou a conceber o direito além de sua estrutura, também a partir de sua função na sociedade. Instaurou-se, assim, uma dupla perspectiva dos institutos jurídicos, a estrutural e a funcional, as quais, complementarmente, garantem plena concepção de um direito em permanente construção[2].
In casu, a boa-fé, sintetizada na estrutura “aja de boa-fé”, é igualmente classificada pela perspectiva funcional, consagrada pela referência no tema, MARTINS-COSTA, em função hermenêutica, integrativa e corretora[3]. No que se refere à vertente hermenêutica, é possível tomar a boa-fé como regra interpretativa dos negócios jurídicos, a qual prescreve um mandamento de conduta, especialmente prevista no art. 113, caput, reforçada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), a qual inseriu a tal dispositivo o § 1º, inciso III. Serve, portanto, “[…] como critério para auxiliar a determinação do significado que a operação contratual revela segundo uma valoração conduzida à luz da conduta conforma a boa-fé […]”[4]. Já em sua dimensão corretora, a qual pode ser visualizada por duas percepções, tem o condão de nortear comportamentos, servindo como efetivo instrumento de controle de abuso de direitos (vide art. 187 do CC), bem como de ajustar o conteúdo do contrato, afastando, exemplificativamente, cláusulas leoninas. Essa função, que pode ser vislumbrada durante todo o iter da relação obrigacional, tem grande relevância, haja vista que resguarda o equilíbrio contratual, a depender da natureza do instrumento contratual. Por fim, a função integrativa, apreendida do art. 422, do CC, manifesta-se como fonte de deveres anexos e de proteção que orbitam a relação jurídica principal, na tarefa de suprimir lacunas textuais e/ou axiológicas que obstam a finalidade da obrigação, a qual, retoma-se, é seu adimplemento satisfatório[5]. Nesse sentido, sob a égide da teoria da obrigação como processo, cabe classificar essas espécies de deveres, a fim de localizar suas gêneses e seus papéis na relação obrigacional.
De forma pormenorizada, os deveres de prestação compõem o elemento principal da relação obrigacional, materializados em uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, os quais originam-se “[…] da manifestação negocial ou da pontual fixação legislativa”[6]. Já os deveres anexos, também denominados instrumentais, são aqueles que, devidos tanto pelo devedor, quanto pelo credor, caminham com os deveres de prestação na busca pelo adimplemento pleno da obrigação. Não nascem da manifestação da vontade, mas, sim, da boa-fé, o que lhes confere autonomia à relação principal, produzindo efeitos próprios, podendo ser examinados “[…] durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal […]”[7]. São exemplos os deveres de informação, cooperação, assistência e lealdade, os quais, sendo atendidos, alimentam expectativas, resguardando, portanto, a confiança estabelecida entre os sujeitos.
Já os deveres de proteção, caracterizados como sendo “[t]odos aqueles deveres decorrentes do fato jurígeno obrigacional cujo escopo não seja, diretamente, a realização ou a substituição da prestação”[8], por seu turno, não guardam qualquer vínculo com a obrigação principal, mas, a bem da verdade, estão voltados para proteger as partes de eventuais danos que lhe sejam decorrentes — são aqueles igualmente advindos da confiança. Tem, portanto, função auxiliar.
Tanto os deveres anexos quanto os deveres de proteção estão presentes desde o início da relação jurídica obrigacional, inclusive e especialmente na fase pré-contratual, momento em que se iniciam as tratativas, expõem-se interesses e expectativas, todos tutelados não por um instrumento contratual, mas sim pela boa-fé. Analiticamente, esta fase é formada por vários atos jurídicos autônomos que caminham para o mesmo fim[9], a celebração de um contrato, os quais, um a um, contribuem progressivamente para a formação da relação jurídica contratual, perpassando, desde às negociações propriamente ditas, em que há a manifestação de interesse e troca de informações relevantes, a proposta, a aceitação e, caso necessário, o contrato preliminar — tudo para que se alcance a aquiescência entre as partes e, finalmente, instrumentalize-se o contrato[10].
Nesse sentido, a despeito de haver autores que defendam uma mudança legislativa do referido artigo 422 do CC[11], o qual, por sua omissão, é criticado pela doutrina por não abordar expressamente a etapa das negociações[12], todavia entendemos que nosso sistema jurídico como é — repleto de técnicas legislativas, tal como as cláusulas gerais — já vincula, em um exercício hermenêutico sistemático, a obrigação pré-contratual. E sem elevar a boa-fé à panaceia, haja vista o risco de se ultrapassar a linha tênue que guarda com a autonomia privada[13], igualmente invocada nessa fase das negociações como elemento também indissociável, é certo que o momento pré-contratual, ainda que não esteja protegido pelo vínculo jurídico contratual[14], já se encontra tutelado pela boa-fé objetiva sob todas as suas dimensões funcionais, as quais devem ser observadas sob pena de responsabilização. Afinal, nas palavras de FRITZ, as negociações possuem “[…] normatividade na medida que impõem aos envolvidos a necessidade de observar diversos deveres de conduta decorrentes diretamente do princípio da boa-fé objetiva […][15].
Referências
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 774, p. 11-17, mai/2000.
EHRHARDT JR, Marcos. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
FACHIN, Luiz Edson. O aggiornamento do direito civil brasileiro e a confiança negocial. Scientia iuris: revista do curso de mestrado em direito negocial da UEL, Londrina, v. 2/3, p-14-40, 1998.
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual: a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Juruá: Curitiba, 2008.
GRECCO, Renato. O momento da formação do contrato: das negociações preliminares ao vínculo contratual. São Paulo: Almedina, 2019.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critério para a sua aplicação. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
MORAIS, Ezequiel. A boa-fé objetiva pré-contratual: deveres anexos de conduta. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil. 4.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de: Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Almedina: Coimbra, 2021.
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. 1964. Reimpressão, Rio de Janeiro: FGV, 2006.
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 10.ed. Coimbra: Almedina, 2009.
Notas
[1] Vide noda de rodapé 30.
[2] “O fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve)”. Pietro Perlingieri, O direito civil na legalidade constitucional, p. 642.
[3] “Conquanto impossível – tecnicamente – definir a boa-fé objetiva, pode-se, contudo, indicar, relacionalmente, as condutas que lhe são conformes […], bem como discernir funcionalmente a sua atuação e a eficácia como (i) fonte geradora de deveres jurídicos de cooperação, informação, proteção e consideração às legítimas expectativas do alter, copartícipe da relação obrigacional; (ii) baliza do modo de exercício de posições jurídicas, servindo como via de correção do conteúdo contratual, em certos casos, e como correção ao próprio exercício contratual; e (iii) como cânone hermenêutico dos negócios jurídicos obrigacionais”. Judith Martins-Costa, A boa-fé no direito privado, p. 45.
[4] Judith Martins Costa, A boa-fé no direito privado, p. 490.
[5] “Apenas com o cumprimento das prestações principais e acessórias e a observância dos deveres de proteção, informação e cooperação haveria adimplemento, no sentido pleno do termo”. Marcos Ehrhardt Jr, Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé, p. 175.
[6] Judith Martins-Costa, A boa-fé no direito privado, p. 240.
[7] Clóvis do Couto e Silva, A obrigação como processo, p. 93.
[8] Jorge Cesa Ferreira da Silva, A boa-fé e a violação positiva do contrato, p. 75.
[9] “[d]entro dessa fase, os atos realizados são de diversas naturezas, todos ligados por um elemento comum: a instrumentalidade no desenvolvimento da relação contratual”. Renato Grecco, O momento da formação do contrato, p. 29.
[10] “[…] as partes discutem termos e condições do negócio, para procurar um ponto de equilíbrio entre as respectivas posições de interesses e depois para atingir a formulação de um regulamento contratual que satisfaça as exigências de ambas, e por ambas possa ser aceite. Se se consegue chegar a um tal ponto de equilíbrio, a uma tal conjugação dos interesses contrapostos, as negociações conduzem à conclusão do contrato; outras vezes, as negociações falham, e o negócio não se faz, o contrato não se conclui”. Enzo Roppo, O contrato, p. 105.
[11] MORAIS é um dos que sugere uma reforma legislativa do artigo 422 do CC, a qual, nas suas palavras, “[…] possibilita a expressa e ampla proteção, na legislação civil, como cláusula geral, dos deveres anexos ou laterais de conduta, de modo a fazer prevalecer a eticização jurídica. Substituímos ‘contratantes’ por partes, ampliando a incidência do dispositivo, e acrescentamos a referência, expressa, aos deveres anexos (de conduta ou de consideração) […]”. Ezequiel Morais, A boa-fé objetiva pré-contratual, p. 193.
[12] “[…] o artigo 422 se limita ao período que vai da conclusão do contrato até sua execução. Sempre digo que o contrato é um ‘processo’, no qual há o começo, meio e fim. Temos fases contratuais – fase pré-contratual, contratual propriamente dita e pós-contratual”. Antônio Junqueira de Azevedo, Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos, Revista dos Tribunais, v. 774, p. 1-2.
[13] “[…] os contratos estão sujeitos a três princípios de ordem pública, que se autodelimitam reciprocamente, para manterem uma relação de difícil equilíbrio, em permanente tensão: autonomia privada, boa-fé e justiça contratual”. Fernando Noronha, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais, p. 15.
[14] “[…] não é imprescindível, para uma ‘condenação’ por violação de dever de conduta, nessa seara, o reconhecimento da existência de vínculo contratual. Esse é o ponto nuclear: não se trata de configurar, dogmaticamente e com refinamento, o universo conceitual, e sim de tutelar as pessoas concretamente envolvidas, tenha ou não o vínculo efeito contratual nos moldes clássicos”. Luiz Edson Fachin, O aggiornamento do direito civil brasileiro e a confiança negocial. Scientia iuris: revista do curso de mestrado em direito negocial da UEL, v. 2/3, p. 24.
[15] Karina Nunes Fritz, Boa-fé objetiva na fase pré-contratual, p. 248.
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Eroulths Cortiano Junior
Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Torino e pela Università “Mediterranea” di Reggio Calabria. Líder do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil Constitucional Grupo Virada de Copérnico. Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Advogado. E-mail: ecortiano@cpc.adv.br.
Vivian Carla da Costa
Mestranda em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil Constitucional Grupo Virada de Copérnico. Coordenadora do Grupo de Discussão Permanente sobre Dano Moral da Comissão de Responsabilidade Civil da OAB/PR. Associada do Instituto Brasileiro Contratual (IBDCONT). Sócia do Costa & Costa Advogados em Curitiba/PR. E-mail: vivian@costaecostaadvocacia.com.br.
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