A sistematização da boa-fé objetiva, de forma que seu conteúdo traduza um conjunto limitado de situações, implica a reconstrução do instituto sem se utilizar de modelações linguísticas muitas vezes inócuas ou apenas referências genéricas ou pontuais, que não se atêm, em profundidade, à sua concepção juspositiva. É verdade que seu amplo espectro axiológico levanta questionamentos atinentes à sua operabilidade no direito, em especial no que se refere a seu papel integrativo no sistema jurídico.
Esse manto axiológico que, muitas vezes, desemboca em concepções metajurídicas da boa-fé, transforma a boa-fé em abrigo para a proteção contra todas as formas de exercício inadmissível de posições jurídicas, quando, na verdade, deveria ser invocada apenas quando uma dessas posições não se enquadrasse no caso concreto. Essa superutilização da boa-fé objetiva faz com que sejam olvidados princípios outros, espraiados no ordenamento, que se harmonizam com maior perfeição ao centro gravitacional do caso em análise, cuja correta utilização evita o esvaziamento e a hipertrofia da cláusula geral em prol do emprego mais rigoroso dos institutos jurídicos postos à disposição do intérprete. Nessa linha, os limites da boa-fé objetiva conformam-se no próprio ordenamento jurídico, uma vez que outros princípios restringem o campo de atuação da boa-fé.
A boa-fé deve circunscrever-se a espaço mais preciso em virtude da autonomia que ganharam as diversas noções e conceitos jurídicos que com ela se aproximam ou em que se apoiam. Por possuírem regras específicas, não há necessidade de apelar-se constantemente à boa-fé, evitando-se, dessa forma, sua mitificação e sua utilização exacerbada. No campo material, o recorrente recurso à boa-fé transforma-a em veículo vazio de conteúdo, acarretando, no caso concreto, sua aproximação a conceitos como equidade, ética, moral ou direito natural, que dificultam sua apreensão no âmbito dogmático.
Igualmente relevante torna-se a compreensão dos princípios, dos conceitos jurídicos indeterminados e das cláusulas gerais para o exercício, pelo magistrado, do controle de conteúdo dos contratos, dando-lhes o escopo e o alcance devidos. Em especial, a boa-fé, posta sob cláusula geral, conceito jurídico indeterminado ou princípio, indica um limite imanente do poder de conformação contratual e opera como fundamento autorizador do controle de conteúdo das disposições avençadas. Se, ao analisar o conteúdo do contrato, verificar o juiz que se trata de ajuste manifestamente iníquo, privilegiando uma parte em detrimento da outra, caberá a intervenção na economia contratual para compensar o desequilíbrio e regular o poder de negociação. Utilizar-se da boa-fé objetiva para atingir esse fim significa, também, delimitar seu próprio alcance, a partir de parâmetros que não a deixem com conteúdo vazio ou demasiadamente alargado. Assim, associar a boa-fé a conceitos metajurídicos – como frequentemente acontece – corresponde a desconectá-la de suas manifestações concretas, dando-lhe cunho de generalizações abstratas.
A boa-fé objetiva atua como um bem jurídico operativo dotado de realizabilidade, no qual a confiança fornece as balizas de licitude à sua concreta eficácia como fundamento do ordenamento. Coíbe as condutas que quebrem a expectativa de confiança, tutelando as exigências de probidade e de equilíbrio na conduta das partes, reprimindo o exercício de posições jurídicas violadoras da confiança legitimamente suscitada.
Historicamente, coube à boa-fé o papel de combate ao formalismo jurídico, não se atendo a uma rígida submissão às proposições legais, que muitas vezes ignoram os objetivos perseguidos pelo sistema jurídico e as particularidades do caso em exame. A boa-fé surge, então, com funções instrumentais direcionadas a reforçar situações materiais conferidas por outras disposições, a complementar essas disposições instituindo deveres de cuidado, de proteção e de lealdade, e a concretizar essas normas. A complementação de normas, por meio dos deveres anexos, introduz no sistema jurídico a noção de justiça e de equilíbrio que devem nortear as relações jurídicas, integrando o ordenamento e gerando soluções que não seriam possíveis sem sua intervenção. Também atua conferindo ao magistrado o controle do conteúdo das cláusulas contratuais, quando estas afetem o equilíbrio das partes, promovendo uma ponderação dos interesses em jogo com o fito de, atuando como vetor material para o direcionamento de soluções, encontrar respostas em áreas que não possuem regras específicas. Pela vagueza de seu conteúdo, sua aplicabilidade se estende por zonas em que ainda existem carências de soluções dogmáticas.
Por seu caráter marcadamente cultural, a boa-fé direciona o caminhar de diversas soluções: não é um mero instrumento passivo que serve de elo entre o sistema jurídico e os casos a resolver, mas atua enriquecendo a matriz de soluções ofertada pelo ordenamento, materializando o ideal de justiça. Daí porque não se pode divisar, abstratamente, uma solução imposta pela boa-fé que sirva de molde à concreção de problemas de matizes diversos. Apenas diante de uma ordem jurídica específica e de um caso concreto posto a exame, manifestar-se-á o desfecho da questão com o recurso à boa-fé. O recurso à boa-fé objetiva, portanto, deve ser feito de modo a evitar sua utilização em contextos aos quais não se aplica diretamente, uma vez que outros institutos estão mais aptos a fornecer as respostas à solução de determinados casos concretos.
A boa-fé objetiva, como norma comportamental, longe de circunscrever-se a finalidades morais ou éticas, confere à relação jurídica a exigência de um padrão de atuação correta, leal e honesta, caracterizando-se pela multifuncionalidade, sendo, também, norma de responsabilidade, pois, em caso de violação, revela descumprimento contratual e enseja, por conseguinte, a obrigação de indenizar.
É verdade que o conteúdo da boa-fé objetiva não pode ser determinado e fixado em abstrato, mas sua concretização dar-se-á com a consideração dos valores e das diretrizes ditados pelo ordenamento jurídico que vão matizar as exigências que emanam do princípio. Essas exigências coadunam-se com as posições assumidas pelos sujeitos da relação, numa interação que gera a confiança recíproca, criando as expectativas legítimas em razão da avença. Dessa forma, a boa-fé está alinhada ao contexto em que se inserem as relações jurídicas e aos dados circunstanciais de uma dada situação.
O recurso excessivo à boa-fé objetiva e seu alargamento conceitual devem ser podados para que sua utilização se restrinja apenas àquelas situações em que outros institutos não se coadunem com as especificidades do caso concreto. Assim, evita-se seu esvaziamento e sua hipertrofia em prol do emprego mais preciso dos institutos jurídicos dispostos no ordenamento. Invocada arbitrariamente como justificativa ética ou moral para a fundamentação de decisões, a boa-fé objetiva fica carente de tratamento técnico condizente com suas funções.
Geraldo Frazão de Aquino Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Graduado e Mestre em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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