Presença digital após a morte, temos o direito de sermos deixados em paz? | Coluna Direito Civil

6 de junho de 2023

 

Uma das poucas certezas que os seres humanos possuem em vida é a da inevitabilidade do seu fim. É típico da natureza humana, assim como de todos os seres vivos, um ciclo de vida que envolva nascimento, crescimento e que invariavelmente caminhe para o seu fim. Mas e se fosse possível quebrar essa regra? E se fosse possível mantermos uma presença nesse mundo, e assim interagir com amigos e familiares, mesmo após a morte de nosso corpo físico?

Por mais assustadora que essa ideia possa parecer e por mais que ela pareça ter sido retirada de um filme ou de uma obra de ficção científica, é justamente essa a promessa que algumas ferramentas que empregam inteligência artificial têm buscado, e essa busca está muito próxima de se tornar realidade.

A gigante de tecnologia Amazon já testa uma nova funcionalidade para sua assistente pessoal virtual Alexa[1] que lhe permite imitar a voz de qualquer pessoa, inclusive a de falecidas. Para isso, bastaria que a assistente tivesse acesso a um áudio, de pouco mais de um minuto, com a voz da pessoa que se deseja emular.

Dessa forma, por exemplo, um garoto poderá pedir à Alexa que conte uma história infantil utilizando a voz de sua falecida avó, tornando, assim, esse momento muito mais íntimo e representativo[2].

Outras ferramentas, a exemplo da HereAfter[3], vão além na promessa de preservarem a memória de entes falecidos. Ao permitirem a criação de um avatar, uma espécie de representação do indivíduo no mundo digital, com o emprego da voz e imagem de pessoas. Esse avatar seria capaz de responder perguntas, reagir a fotografias, lembrar de fatos e eventos reais, compartilhar experiências e emoções e transmiti-las aos seus amigos e familiares.

Com o aumento do poder de processamento computacional e do paradigma do Big Data, ferramentas de inteligência artificial que buscam eternizar nossa presença nesse mundo, ainda que somente no virtual, tendem a se tornar cada vez mais acessíveis e comuns e, acima de tudo, mais fiéis e próximos das experiências vivenciadas no mundo físico.

Se de fato caminharmos para essa direção nos anos que estão por vir, passaremos a morrer de modo menos definitivo, parafraseando o professor Sergio Branco[4], ao mantermos uma presença permanente nesse mundo mesmo após a morte de nosso corpo material.

Essas ferramentas computacionais são criadas, alegadamente, com o nobre intuito de preservar a memória de pessoas e proporcionar que familiares e amigos tenham a oportunidade de continuar a conviver com aqueles que já nos deixaram.

Contudo, o emprego de tais ferramentas levantam profundas questões éticas e filosóficas, além de trazerem consigo implicações legais, em especial para o Direito Civil e para o Direito Constitucional, acerca da presença e da preservação da identidade de pessoas físicas, mesmo após o fim de sua personalidade civil como hoje conhecemos (Art. 6 do Código Civil)[5].

Será que temos o direito de sermos deixados em paz[6] e de sermos esquecidos[7] após a morte, ou a nossa presença no mundo virtual pode e invariavelmente será eternizada? O que acontece com os nossos bens digitais[8], em especial os que possuem ligação direta com nossa personalidade? Quem seria o responsável por deles cuidar? Eles são passíveis de sucessão testamentária ou legítima? O consentimento em vida do falecido permitiria a transferência de bens digitais de natureza existencial, ou seja, aqueles que não possuem, ao menos diretamente, um conteúdo econômico imediato?

Essas inquietações são parte dos novos desafios e problemas que a doutrina e jurisprudência têm enfrentado nos últimos anos e que ainda estão longe de serem respondidos de forma definitiva. Seja pela complexidade de tais questões, seja pela velocidade com a qual novas ferramentas tecnológicas são criadas, as respostas para tais questões ainda estão sendo construídas.

Ainda assim, já se mostra possível enxergar alguns progressos e a formação de consenso para alguns desses questionamentos. Como destacam os professores Pablo Malheiros e João Aguirre[9], há certo consenso na doutrina quanto a natureza de herança, e portanto, da possibilidade de serem transmitidos aos seus sucessores, de bens imateriais de natureza patrimonial, ou seja, aqueles que tenham ou possam ter caráter econômico a exemplo de livros digitais, contas bancárias, blogs, colunas e sítios eletrônicos.

Para esses bens de cunho patrimonial, entende-se que as regras que dispõem acerca da sucessão testamentária ou legítima, ora já previstas na Constituição Federal e no Código Civil, seriam suficientes para resolver conflitos que eventualmente possam surgir entre os sucessores e desses com terceiros.

Mas o mesmo consenso não se encontra quando se está diante de bens imateriais de natureza existencial, aqueles inerentes e diretamente ligados à personalidade do indivíduo, ou seja, decorrentes da sua própria essência. Os quais, segundo o regramento previsto em nosso ordenamento atual, se extinguiriam com a própria personalidade do indivíduo quando de sua morte, a exemplo da identidade do indivíduo, da intimidade, da privacidade, da proteção de seus dados pessoais, do sigilo de suas comunicações, dentre tantos outros.

Hoje, há duas grandes correntes acerca da sucessão de bens digitais de natureza existencial[10]. A primeira, encabeçada pelos professores Gabriel Honorato, Livia Teixeira e Paulo Lôbo, defende que esses bens não seriam passíveis de serem objeto de sucessão, vez que são diretamente ligados a própria essência e individualidade do sujeito, e, portanto, seriam intransmissíveis, irrenunciáveis e indisponíveis (Art. 11 do Código Civil[11]).

Segundo as lições do professor Paulo Lôbo[12], a renúncia a qualquer direito da personalidade significaria renunciar a si mesmo, convertendo-se de sujeito em objeto. Por essa razão, não seria possível alvitrar a sucessão de direitos da personalidade, pois quem herda sucede os bens e não a pessoa que já faleceu.

Convém destacar que as hipóteses previstas nos parágrafos únicos dos artigos 12º e 20º do Código Civil[13],  que preveem que alguns direitos da personalidade do falecido continuam produzindo efeitos mesmo após sua morte, não devem ser confundidas com a herança. Estar-se-ia, na verdade, diante de uma legitimação dos familiares para requerer medidas de proteção dos direitos da personalidade do falecido, sem que isso caracterize a transmissão desse direito aos seus sucessores. A pessoa que falece mantém a titularidade dos seus direitos, ao familiar compete a legitimidade de proteger tais direitos.

Os principais argumentos dos defensores dessa primeira corrente seriam: i) a preservação da privacidade e intimidade tanto do falecido como de quem tenha com ele se relacionado; ii) a possibilidade de colisão de interesses entre o de cujus e seus herdeiros e iii) a violação à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações;[14]

A segunda corrente compreende que todos os bens digitais, inclusive os de natureza existencial, seriam passíveis de compor a herança, salvo disposição expressa em vida do titular em sentido contrário. Ou seja, posicionam-se pela transmissibilidade plena de todos os bens digitais do falecido, da qual seriam defensoras as professoras Laura Schertel Mendes e Karina Nunes Fritz[15].

Segundo as autoras seria incoerente permitir a transmissão de cartas, diários, fotografias e informações confidenciais presentes no mundo físico, mas proibir a transmissão daquelas armazenadas que se encontram em nuvens e/ou nos servidores de plataformas digitais.

Trata-se de uma discussão que possui argumentos razoáveis e justificáveis em ambas as correntes, contudo, não nos parece razoável e compatível com o tratamento, do que nosso ordenamento confere aos direitos fundamentais à intimidade e vida privada a possibilidade de todo e qualquer bem digital, notadamente aqueles que possuem natureza existencial, serem passíveis de livre disposição e transmissibilidade.

Como bem destacado pela corrente que defende a intransmissibilidade absoluta, aceitar a possibilidade de que todo e qualquer bem digital seja passível de livre transmissão e disponibilidade pelos sucessores, independe de anuência do falecido, configura um grave risco à identidade e personalidade do indivíduo, e certamente desencadearia uma série de conflitos entre os interesses do de cujus e o de seus herdeiros, em especial quando estamos falando de casos em que esses ativos são passíveis de gerar ativos financeiros, a exemplo do controle de uma conta comercial de uma pessoa física no Instagram.

Da mesma forma, não nos parece razoável imaginar ser absoluta a intransmissibilidade de alguns desses bens digitais de natureza existencial. Pode-se entender que, abstratamente, eles representam a essência dos sujeitos e que, portanto, dela fazem parte.

Contudo, pensando de maneira mais pragmática, não nos parece razoável essa proibição de transferência quando já se debate a faculdade ou o direito a uma extimidade, ou seja, aquilo que é contrário a intimidade. Entendida como a possibilidade de projetar para fora, para a esfera pública, informações que nos são privadas. A exemplo do que já ocorre hoje com os nossos dados pessoais e com nossa imagem.

Fazemos isso hoje de forma voluntária em nossas redes sociais, ao compartilhar nossa imagem e nossas experiências na rede para amigos, familiares e por vezes para estranhos. Escolhemos, ainda que seja possível discutir se esse comportamento seria resultado de nossa autonomia da vontade ou fruto de um condicionamento, compartilhar parte daquilo que nos torna únicos, por essa razão, não nos parece adequado se posicionar pela intransmissibilidade absoluta.

Uma solução para tentar compatibilizar esses pensamentos antagônicos talvez seja uma espécie de transmissibilidade parcial, na qual adote-se como regra a intransmissibilidade de bens de natureza existencial, contudo, caso haja o expresso e inequívoco consentimento do falecido em vida, autorizando que todos os seus ativos digitais sejam usados e acessados mesmo após a sua morte, essa regra poderia ser flexibilizada.

Dessa forma, competiria ao indivíduo livremente dispor o destino de seus bens digitais e sobre sua presença digital nas redes sociais, escolhendo se suas conversas privadas em um aplicativo de mensagem podem ou não serem acessadas por seus sucessores. Seria, em certa medida, um resgate da premissa clássica do direito de ser deixado em paz (em inglês, the right to bel et alone) de Warren e Brandeis[16].

Que outrora serviu como remédio para combater os abusos da imprensa e dos tabloides no final do século XIX e que inaugurou a ideia de que competiria ao indivíduo a liberdade de determinar até que ponto seus pensamentos, sentimentos e emoções devem ser compartilhados com a esfera pública, devendo o Estado e terceiros se absterem de tentar invadir a sua esfera privada sem o seu consentimento.

Essa solução, no nosso sentir, compatibilizaria a premissa transcendental de que esses bens existenciais seriam a essência do indivíduo e, portanto, dele faria parte. Mas, ao mesmo tempo, autorizaria a esse mesmo indivíduo, desde que plenamente capaz e fazendo o uso de sua autonomia da vontade, escolher e consentir, de forma inequívoca e expressa, quantos, quais e se esses bens digitais podem, ou não, serem transferidos, acessados e passíveis de disposição por seus sucessores.

Registre-se que isso não configuraria, necessariamente, uma ofensa à irrenunciabilidade e indisponibilidade dos direitos inerentes à personalidade, seja porque com a morte esses deixariam de existir, seja porque, como já dito anteriormente, já se debate a ideia de uma faculdade ou direito de livremente dispor de parte dessa essência do indivíduo ao se falar em extimidade.

Portanto, respondendo ao questionamento inicialmente feito, sim, temos o direito de sermos deixados em paz e assim não sermos molestados ou invadidos em nossa vida privada sem o nosso consentimento, direito esse, que se estende para a nossos bens digitais existenciais e nossa presença virtual post mortem. Assim como temos a liberdade de escolher se e qual parte de nossa vida privada pode ser partilhada e acessada por terceiros.

 


Rafael Oliveira Soares

Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (FDA/UFAL). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (2010). Pós-graduado (2012-2013) em Direito Administrativo e Constitucional pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió – CESMAC. Master of Law – LLM em Direito Empresarial (2019 a 2020) pela Fundação Getúlio Vargas.

 


Referências:
[1] Alexa poderá imitar a voz de qualquer pessoa, anuncia Amazon em conferência. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/alexa-podera-imitar-a-voz-de-qualquer-pessoa-anuncia-amazon-em-conferencia/. Acesso em 30 de maio de 2023.
[2] Amazon re: MARS 2022 – Day 2 – Keynote. 2022. Pagina AWS Events do Youtube, minutagem 01:02:40.  Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=22cb24-sGhg&t=3795s. Acesso em 30 de maio de 2023.
[3] Here Afeter. 2023. Página Inicial. Disponível em https://www.hereafter.ai/. Acesso em 30 de maio de 2023.
[4] BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélogo, 2017. P. 103.
[5] Art. 6 A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. BRASIL. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.html.  Acesso em 30 de maio de 2023.
[6] BRANDEIS, Louis D.; WARREN, Samuel D. The right to privacy. Havard Law Review, v. 4, n. 5, dec. 15, 1890.
[7] BRANCO, Sérgio. O direito ao Esquecimento e herança digital. In TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. LEAL, Livia Teixeira. (COORD.) Herança digital: controvérsias e alternativas – Tomo I. Indaiatuba, SP. Editora Foco, 2022. p. 305-318.
[8] Termo derivado das expressões em inglês digital assets (em tradução livre ativos digitais) e digital property (em tradução livre propriedade digital) empregado pela professora Cíntia Burille e que abarca os bens digitais  que possuem conteúdo nitidamente econômico, de caráter patrimonial, bem como os bens ligados inteiramente aos direitos da personalidade, de natureza existencial. Haveria ainda, uma terceira espécie: os híbridos, bens que a um só tempo possuem ambos os aspectos. Essa classificação também é adotada pelos professores Bruno Zampier, Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder dentre outros. In BURILLE, Cíntia. Herança Digital – Limites e possibilidades da Sucessão Causa Mortis dos Bens Digitais. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023. p. 126 e 131.
[9] FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. AGUIRRE, João. Acervo digital e sua transmissão sucessória no Brasil: Análise a partir da Literatura jurídica e dos projetos de lei sobre o tema. In TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. LEAL, Livia Teixeira. (COORD.) Herança digital: controvérsias e alternativas – Tomo II. Indaiatuba, SP. Editora Foco, 2022. p. 80-82.
[10] TRERRA, Aline de Miranda Valverde. OLIVA, Milena Donato. MEDON, Felipe. Acervo Digital: Controvérsias à sucessão causa mortis. In TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. LEAL, Livia Teixeira. (COORD.) Herança digital: controvérsias e alternativas – Tomo II. Indaiatuba, SP. Editora Foco, 2022. p. 67.
[11] Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. BRASIL. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.html.  Acesso em 30 de maio de 2023.
[12] LÔBO. Paulo. Direito Civil: Parte Geral v.1. 12 ed. São Paulo: Saraivajur, 2023. p. 134.
[13] Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.  BRASIL. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.html.  Acesso em 30 de maio de 2023.
[14] TRERRA, Aline de Miranda Valverde. OLIVA, Milena Donato. MEDON, Felipe.  Op cit. p. 67.
[15] MENDES, Laura Schertel Ferreira. FRITZ, Karina Nunes. Apud TRERRA, Aline de Miranda Valverde. OLIVA, Milena Donato. MEDON, Felipe.  Op cit. p. 68.
[16] BRANDEIS, Louis D.; WARREN, SamuTodas as páginasel D. The right to privacy. Havard Law Review, v. 4, n. 5, dec. 15, 1890.

 

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