Desde a década de 1990 vivenciamos um período de crescente desmaterialização das relações contratuais. Há muito, não é mais suficiente distinguir a contratação entre ausentes e/ou presentes realizada por carta ou telefone. Em 1995 ingressamos efetivamente no debate sobre contratos “telemáticos” ou virtuais. Discutiam-se os limites e possibilidades de uma contratação, cujo momento de formação ocorria remotamente, por intermédio de meios digitais. Prevaleceu entre nós a expressão “contrato eletrônico”, tipo de acordo de vontades cujo ciclo de vida (celebração, execução e extinção) ocorre sem existir fisicamente.
Não me parece possível confundir contrato “eletrônico” com contrato “inteligente”. Sem uma definição adequada, não conseguiremos avançar na busca da definição de um regime jurídico a ser aplicável. Infelizmente, no atual estado da arte, não parece existir consenso.
É preciso iniciar estas reflexões traçando um rumo: afinal, ao estudarmos os smart contracts, nós estaríamos diante de um novo tipo negocial, vale dizer, um “substantivo”, colocando-o ao lado de espécies como doação, compra e venda, prestação de serviços ou locação, ou apenas diante de uma nova aplicação tecnológica a espécies negociais já existentes?
A expressão em análise, smart contracts, não teve origem em trabalhos jurídicos sobre o tema. Parece apontar para a intenção de ressaltar possibilidades técnicas de um “protocolo computadorizado”, que teria por finalidade executar os termos de um contrato. Nos poucos trabalhos produzidos em nosso país sobre o tema, costuma-se destacar as vantagens da adoção dos contratos inteligentes fazendo referência à mitigação dos riscos de inadimplemento e a redução dos custos de transação, vale dizer, através de ferramentas técnicas que asseguram autoexecutoriedade (self-enforcement) destinadas a uma melhor gestão do risco contratual.
Dito de outro modo, os entusiastas da utilização de aplicações algorítmicas aos contratos destacam o aumento da confiança na contratação com o emprego de uma linguagem universal (matemática), sem que as partes necessitem recorrer ao judiciário para garantir a execução de suas avenças.
Entre o assombro de alguns e o encantamento de outros pelas novas possibilidades, não podemos perder de vista que qualquer forma de inovação gera novos desafios que precisam ser sopesados à luz da legalidade constitucional.
Considerando todas as possibilidades que se descortinam pelo emprego de ferramentas tecnológicas à atividade negocial, o Direito, enquanto ciência e técnica de adaptação social, vem sendo convocado para ajudar a estabelecer e definir as “regras do jogo”. Resta saber se nós, operadores jurídicos, damos conta da tarefa. Um ponto sensível que merece reflexão é o problema da tradução de nossa linguagem natural para a linguagem do código computacional. No atual estágio do desenvolvimento das aplicações tecnológicas aos contratos, não nos parece adequado o pensamento dos entusiastas de que “code is law”, pois, independentemente da espécie negocial, existem limites à autonomia privada e o código computacional não está acima dos códigos legislativos em seus diversos microssistemas.
Além disso, na busca por se garantir autoexecutoriedade, criam-se códigos que exprimem cláusulas negociais inflexíveis, inexistindo ferramentas adequadas para lidar com o surgimento de contingências, especialmente alteração das circunstâncias fáticas existentes ao tempo da contratação ou de sua execução. Sem mencionar que nossa vulnerabilidade, ou até mesmo incapacidade técnica para escrever códigos computacionais, ou mesmo compreender sua sintaxe, cria uma dependência de profissionais de outras áreas (programadores, por exemplo) e de serviços externos (os denominados “oráculos”), sem os quais os ditos smart contracts podem ficar impossibilitados de produzir os efeitos esperados.
Importante também ressaltar os problemas na identificação segura dos figurantes do contrato, uma vez que, para os sistemas computacionais nos quais serão inseridas as cláusulas negociais, a identificação dos contratantes ocorrerá mediante utilização de chaves criptografadas, sendo possível afirmar que comumente quem detém a chave é considerado titular dos direitos relacionados ao negócio, sem que seja possível verificação de sua capacidade negocial. Em alguns casos, pode-se, inclusive, realizar contratações em total anonimato, o que por si só gera inúmeros tópicos de preocupação e pontos de tensão com a legislação que trata do combate a atividades ilícitas relacionadas a sonegação fiscal e lavagem de ativos financeiros.
Se atualmente a maioria dos contratantes não tem conhecimento técnico suficiente para realizar a programação de tais contratos, e nem sempre compreende a infraestrutura necessária para sua execução, seria adequado abraçar uma forma de contratação que pode criar uma dependência absoluta à plataforma na qual o contrato foi construído?
É tempo de questionar: quem já viu um “smart contract” já viu todos?
É muito difícil opinar sobre vários dos pontos apontados quando, em geral, no máximo, tivemos contato com tais contratos apenas como usuários de serviços massificados.
E para você que pensa que está a salvo deste tipo de contratação e que, por isso, não tem nada a temer no momento, talvez seja importante ressaltar que desde as já clássicas máquinas de venda de refrigerantes, passando por serviços de streaming, atualmente temos infinitas possibilidades de utilização dessa tecnologia em nosso cotidiano. Estamos tratando do tempo presente e não mais do futuro.
É preciso destacar que toda aplicação tecnológica é uma construção humana e não está imune a falhas: desde erros de programação até delay, vale dizer, atraso na execução de comandos autoexecutáveis por problemas na infraestrutura, passando pela interferência indevida de terceiros (hackers).
Como proceder diante do imprevisto, especialmente quando se verifica que atualmente, pelo modo como a programação é concebida, não é possível impedir a execução de certas cláusulas, mesmo quando constatada a alteração nas circunstâncias?
Uma simples consulta a serviços especializados vai permitir constatar que nem todo contrato dito inteligente depende da utilização de tecnologia blockchain ou de aplicações de inteligência artificial para existir. O grande número de possibilidades de utilização torna significativamente difícil discutir os contornos de um único regime jurídico sem conhecer a realidade concreta dos figurantes da avença negocial.
E a (r)evolução no universo contratual não para por aqui. Ainda é preciso distinguir os contratos “smart” (inteligentes) dos self-driving contracts, vale dizer, dos contratos algorítmicos. Mas isso será assunto para uma próxima oportunidade, afinal os impactos da tecnologia não ocorrem da mesma forma para todos nós ao mesmo tempo. Mas será que podemos nos dar ao luxo de negligenciar ou até mesmo ignorar tais possibilidades?
Estamos nos primeiros passos de uma maratona, na qual a única certeza é de uma mudança evolutiva da tecnologia. Enquanto ainda estamos tentando consolidar as conquistas da repersonalização das relações privadas promovidas pelo advento da CF/88, não podemos deixar de refletir sobre o alto preço da adoção de tais ferramentas tecnológicas para as relações entre particulares.
Marcos Ehrhardt Jr
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.
Referência:
Texto extraído do Editorial do número 32 da Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 12, n. 32, p. 7-11, jan./abr. 2023.
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