A função social além da propriedade

9 de maio de 2023

Falar em função social por muitas vezes parece vago ou até mesmo indeterminado, mas a sua compreensão vai além da vontade do legislador em estabelecer os ditames do exercício dos direitos reais, mas buscar como estes se relacionam com o meio social. De plano a função social não é palpável, como o próprio direito de propriedade, pois o simples fato de ser possuidor não se transmuta em função social.

A função social não é mero instituto jurídico que permite ao legislador de intervir no direito real de propriedade, mas sim como uma defesa de direitos difusos, a de exemplo a preocupação do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988 de que o direito de propriedade deve ser exercido sob os limites da função social para não violar direitos coletivos, inclusive relacionando a função social com a garantia do artigo 225 da CF/88 em que todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, seja esta geração ou a futura.

O legislador reservou diversas menções no ordenamento jurídico sobre a função social da propriedade, prevendo inclusive a desapropriação daquelas que não cumprirem com a função social, achando-se em mais três momentos do texto constitucional: no artigo 170º, que trata da “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”; no artigo 182º seguido pelo artigo 183º, 184 e 186 da Constituição Federal de 1988.

Quanto a função social da propriedade é importante destacar a diferenciações entre a sua aplicabilidade e reconhecimento aos diferentes tipos de propriedade. Quando se tratar de propriedade imóvel urbana a função social será definida pelo Estatuto da Cidade e pelo Plano diretor da cidade, sendo este segundo próprio de cada município, enquanto o Estatuto tem caráter de norma geral. Quando a propriedade for sobre imóvel rural a função social é estabelecida pelo Estatuto da Terra, onde destaca-se que a função social é exercida quando a propriedade rural é explorada de forma sustentável; utiliza adequadamente os recursos naturais; e respeita a legislação trabalhista.

Quando pensamos em um bem com múltiplos proprietários será que é possível pensar em exercício de função social? Não só é possível, como é desejável, vejamos as palavras da professora Everilda Brandão, promove:

[…] o cumprimento da função social. À medida que esses novos arranjos contratuais afastam a ociosidade dos bens e permitem um melhor uso do espaço urbano, permitem que a propriedade cumpra a missão que sempre se esperou dela desde a criação do estado social, a solidariedade social. (GUILHERMINO, 2019)

Podemos tomar como exemplo de espaços que já estão entranhados no cotidiano brasileiro quando falamos de multipropriedade os próprios condomínios fechados, definindo-se como:

Multipropriedade de forma genérica é a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua. (VENOSA, 2021, p. 366).

O conceito foi incorporado pela legislação brasileira por meio da lei Lei nº13.777, de 20 de dezembro de 2018, incluiu os artigos 1.358-B ao 1.358-U no Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, modificando também a Lei de Registros Públicos nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973, nos seus artigos 176, incluindo nº6, no inciso II do §1º, e parágrafos 10, 11 e 12, e artigo 178, incluiu o inciso III.

A multipropriedade chega para acelerar e aumentar esta mesma conquista da função social do imóvel, adicionando-lhe a questão do tempo compartilhado em turnos, satisfazendo e proporcionando um número maior de proprietários do mesmo solo ou imóvel. Isto significa um efeito multiplicador no que concerne ao bem estar, desenvolvimento, justiça social e valorização do trabalho. Sociabiliza-se, assim, o imóvel com muitos proprietários utilizando a mesma base material em variados turnos de tempo. (RODRIGUES; MARQUES, 2010, p. 420).

O modelo de propriedade trazido no Código Civil Brasileiro de 2002, acaba que não contempla os diversos modelos proprietários, e que não podem ser tratados de uma única ou mesma forma, uma vez que o Código “sempre priorizou os bens imóveis e centrou-se exclusivamente no conteúdo do direito de propriedade de usar, fruir e gozar.” (VIANNA. EHRHARDT JR, 2023, p. 933)

Pensar em função social não é mais somente pensar em um proprietário, mas sim na destinação e no acesso deste bem por toda uma coletividade, demonstrando que é preciso superar o modelo de propriedade burguês que ainda é resguardado pelo Código Civil Brasileiro de 2002.

 A necessidade da superação da dicotomia entre propriedade pública e propriedade privada

A função social, como vimos, o legislador resguardou suas determinações, bem como a doutrina e os Tribunais ao aplicar a função social não apenas ao proprietário, mas ao possuidor da propriedade.

Por muitos anos, e quando falamos em anos, estes são muitos a propriedade privada foi vista pela sociedade como uma forma de ascensão social, de garantia de status, visto como uma extensão do homem, daquilo que ele é e daquilo que ele representa enquanto ser social.

As necessidades da sociedade evoluíram e busca por direitos e acesso a direitos fundamentais estabeleceu certos limites a direitos anteriormente incorporados. Pois bem, neste sentido os bens devem ser analisados sob o prisma da finalidade exercida e não mais exclusivamente sob a sua titularidade, pois assim consegue-se salvaguardar direito coletivos e difusos, uma vez que o acento não está mais posto sobre o sujeito proprietário, mas sim sobre a função que um bem deve desempenhar na sociedade”. (RODOTÀ, 2012)

Descontruir o mito da “tragédia dos bens comuns” é necessário, vez que conforme leciona Tepedino referindo-se ao estudo de Elinor Ostrom “a comprovação empírica de que a gestão comum de bens escassos não necessariamente leva à degradação e ao esgotamento” (TEPEDINO, 2019, p. 21)

Mas o que viriam a ser os bens comuns, ou também chamados de Commons, consideram-se como um conjuntura de bens essenciais a vida humana e que por isso mesmo devem ter o seu acesso assegurado para todos, pouco importando a existência de título de propriedade, vez que sua análise deve se dar pela primazia da efetivação de direitos fundamentais.

A compreensão do acesso independente do título de propriedade rompe com a lógica de que para o acesso como único instrumento apto a garantir o uso dos bens, em prol da efetivação dos direitos fundamentais, veja-se que pouco importa se o bem pertence a ente público ou privado.

Sobre a ligação de bens comuns com direitos fundamentais destacamos:

Os bens comuns são um instrumento político e constitucional para a satisfação direta das necessidades e dos direitos fundamentais. Se é na Constituição que o sistema político coloca as escolhas de longo prazo, de maneira a retirar as escolhas arbitrárias de governos (é o caso dos direitos fundamentais), é nela que devem ter lugar os bens comuns, instrumentos funcionais da realização de tais direitos. (CORTIANO JUNIOR; KANAYAMA, 2016, p. 487).

Por sua estrita relação com a efetivação de direitos fundamentais que os bens comuns recebem essa qualificação por conseguirem “satisfazer as necessidades dos membros de uma dada sociedade”, os quais podem ser classificados em três grandes nichos: “presentes da natureza, criações materiais e criações intangíveis.” (TEPEDINO; PEÇANHA; DANA, 2021, p.432)

O nosso Código Civil de 2002, não traz definição dos bens comuns, mas resguarda definição dos bens públicos, que de certa maneira abarcam também os bens comuns, em seu artigo 99 o CC/02, define bens de uso comum do povo como: rios, mares, estradas, ruas e praças, mas ainda assim carregam a noção de propriedade, ainda que de propriedade pública, por isso não podem ser equivalentes ao Commons, pois além de não se dirigirem à efetividade dos direitos fundamentais, não superam “rígida dicotomia entre o público e o privado, preconizando a noção de acesso a toda a coletividade” (TEPEDINO, 2019, pp. 17-32).

Dentro do enfrentamento desta dicotomia, falar sobre função social é muito mais do que o estrito cumprimento do preceito por parte do dono, vez que a titularidade é irrelevante, importando muitos mais o acesso, vejamos:

No âmbito do desenvolvimento da função social da propriedade, nota-se que a ‘revolução dos bens comuns’ parte da propriedade funcionalizada para alcançar o ‘oposto da propriedade’. Em percurso evolutivo, a função social, concebida inicialmente como mero conjunto de limites externos ao exercício do poder proprietário, passou a ser compreendida como instrumento para a própria definição do conteúdo do direito de propriedade, circunscrevendo internamente as faculdades exercitáveis pelo proprietário. Na renovada abordagem dos bens comuns, propõe-se, nessa perspectiva, que a função social permita configurar o poder de uma multiplicidade de sujeitos de participar nas decisões relacionadas a certas categorias de bens. (TEPEDINO, 2018, pp. 477-506.)

Deste a modo a função social não se relaciona mais como limite do poder de proprietário, mas a amplitude de decisões sobre determinado bem comum por uma coletividade, neste sentido José Robson da Silva faz uma ressalva de grande relevância sobre o pertencimento da titularidade da propriedade, ao considerar que:

A questão de fundo que se apresenta ao deslinde não é estabelecer a quem efetivamente pertence a titularidade sobre os bens públicos, especificamente os bens ambientais. A questão central refere-se aos mecanismos de acesso a estes bens. (SILVA, 2002. P.117)

Quanto ao tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico e judiciário quanto da proteção destes bens comuns pela via judicial, a jurisprudência atribui alguns aspectos de funcionalidade dos bens públicos e a possibilidade de serem abarcados pela afetação e desafetação.

O Superior Tribunal de Justiça ao analisar a desafetação de um bem de uso comum do povo, de determinada praça no estado do Rio Grande do Sul, para bem dominical (Bem dominical pode ser transformado em propriedade privada), sob a justificativa de que o local não era utilizado pela população. O STJ então julgou que, ainda que não houvesse a efetiva utilização do bem, não enseja a desafetação, pois a finalidade dos bens públicos se manifestaria, no caso posto, como a simples disponibilização do espaço à coletividade do presente e do futuro. (STJ, 2ª T., REsp 1.135.807/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 15.4.2010)

Cinco anos depois o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a alteração da finalidade de certa área iria de encontro com a função socioecológica insculpida na Constituição Federal, e assim o estado deveria assumir a postura de conservação e manutenção deste, vez que é o gestor da coisa pública.

No Brasil, a doutrina elege como bens comuns:

[…] no país a noção de bens comuns tem sido relacionada ao conjunto de bens essenciais e intrinsecamente ligados à efetividade dos direitos fundamentais, de forma que o acesso deve ser a todos garantidos, independentemente do título proprietário, superando-se, assim, a lógica da apropriação. (VIANNA. EHRHARDT JR, 2023. p. 938)

Deste modo, compreendem-se como bens comuns aqueles que são aptos a satisfazer toda uma coletividade, tendo uma utilização geral e que assim possa essa coletividade exercer seus direitos fundamentais por meio do acesso a esses bens.

Os bens comuns não necessariamente precisam ser palpáveis, como a água, o meio ambiente, o ar, mas podem ser a própria internet ou a produção de conteúdo, de modo que “supera-se a lógica da apropriação exclusiva, seja essa privada ou pública, tendo em vista que os bens comuns podem ser por todos acessados.” (VIANNA. EHRHARDT JR, 2023, p. 940)

A discussão sobre os Commons é necessária e urgente, inclusive para melhor compreensão e utilização dos institutos da afetação e da desafetação dos bens públicos, mas sobre tudo para compreender que a função social ela não se limita ao exercício da propriedade, mas para garantir o cumprimento da mesma.

Demonstra-se que nos dias atuais é “preciso analisar o direito de propriedade de forma funcionalizada.” (VIANNA. EHRHARDT JR, 2023, p. 934), e assim superar o individualismo proprietário, vez que com a proximidade de alguns bens aos direitos fundamentais, o amplo acesso deve ser garantido e a sua destinação, superando a dicotomia propriedade privada e propriedade pública, pois, a função social se relaciona muito mais com a destinação do bem e o seu acesso do que com a sua titularidade, podendo ser exercida, a propriedade, por uma coletividade de modo a garantir o pleno exercício da função social.

O direito de acesso rompe com o modelo tradicional de propriedade, redefine a própria lógica de mercado, mas é preciso regulamentação no mundo jurídico, pois garantir o acesso não é permitir um acesso ilimitado, uma vez que, assim como o direito de propriedade deve respeitar a função social, o direito de acesso deve ser compatível os ditames sociais e ecológicos, aplicando-se os mesmos critérios da função social.

 

Jasmin De-Taddeo
Mestranda em Direito Público, do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Direito de Alagoas.
E-mail: jasmindeta@hotmail.com

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 abr. 2023.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 18 abr. 2023.
BRASIL. Lei n. 13.777, de 20 de dezembro de 2018. Altera as Leis n º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), para dispor sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13777.htm. Acesso em: 18 abr. 2023.
CORTIANO JR., Eroulths; KANAYAMA, Rodrigo Luís. Notas para um estudo sobre os bens comuns, p. 487. In: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, vol. 15, n. 15, jul./dez. 2016.
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SILVA, José Robson da. Paradigma Biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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2 comentários em “A função social além da propriedade

  1. MARCOS FILIPE MEDEIROS GAMA disse:

    A Função Social da Propriedade foi um Artigo muito pertinente (fundamentado e atual).

    Parabéns à Escritora: Dr Jasmin De-Taddeo.

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