Padre Júlio Lancellotti x construções hostis: por uma cidade mais humana

11 de abril de 2023

Foi aprovada e recentemente promulgada a Lei Padre Júlio Lancellotti (Lei n. 14.489/2022), que modificou o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), e introduziu no nosso ordenamento a proibição (bem como o conceito indeterminado) das “técnicas construtivas hostis”. O projeto chegou a ser alvo de veto, num dos agonizantes atos finais do mandato do Presidente Bolsonaro, que foi, felizmente, derrubado pelo Congresso[2].

Uma das razões para o veto, foi que a expressão “técnicas construtivas hostis poderia gerar insegurança jurídica, por se tratar de um conceito ainda em construção, ou seja, terminologia que ainda se encontra em processo de consolidação para sua inserção no ordenamento jurídico”[3].

Na Lei, a técnica de construção hostil é definida como aquela que tenha “como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população”. Se trata de um conceito indeterminado[4] pois, pela própria ideia do que se pretende proteger, não é possível ou útil à Lei listar antecipadamente cada ato que poderia ser considerado uma técnica de construção hostil. O uso de conceitos indeterminados é técnica comum no ordenamento jurídico, sendo seu conteúdo sendo preenchido a partir da análise de casos concretos, pela doutrina e jurisprudência. Esse ponto do veto, portanto, passa longe de ter qualquer razão jurídica.

Inclusive, já na atualidade não faltam exemplos que ajudem à correta execução do comando legislativo. Um que ganhou bastante destaque, e, inclusive, trouxe notoriedade ao Padre Júlio quando buscou destruir a construção a marretadas, foi a instalação, em 2021, pela Prefeitura de São Paulo, de paralelepípedos para impedir que pessoas em situação de rua se abrigassem sob os sob os viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, localizados na Avenida Salim Farah Maluf[5].

Alguns anos antes, prática parecida foi realizada pela Prefeitura de Salvador, em 2015, ao determinar a plantação de cactos sob viadutos, igualmente com o objetivo de afastar as pessoas em situação de rua[6]. Na própria conta do Instagram do Padre Júlio Lancellotti, diversos outros casos são denunciados de forma corriqueira, por iniciativa tanto de entes públicos como privados.

Tais práticas se enquadram naquilo que o Padre Júlio vem denunciando como atos de aporofobia. Esse termo, cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina, tem por sentido a “rejeição, aversão, temor e desprezo ao pobre, ao desamparado, que, ao menos aparentemente, não pode devolver nada de bom em troca”[7], e se encaixa perfeitamente ao se pensar na técnica de construção hostil.

Entretanto, apesar do desejo em sentido contrário de alguns, a cidade é espaço pensado para convívio e uso por todos seus cidadãos, independentemente da classe econômica. A tentativa de exclusão das populações mais economicamente carentes se dá por práticas diversas. Para além das técnicas de construção hostil, se poderia, por exemplo, apontar também a gentrificação.

Consiste a gentrificação num processo planejado de aburguesamento de áreas com grandes atrativos na cidade, seja em virtude de localização privilegiada em relação à belezas naturais ou aos equipamentos da cidade (parques, teatros, museus, cinemas, hospitais, transporte público e escolas, por exemplo), com a consequente expulsão da população local mais pobre para pontos mais periféricos.

A gentrificação, como indicado acima, não costuma ser processo orgânico, natural, de fluxo migratório dentro da cidade. É algo artificial que, conforme Smith, leva mais em conta a necessidade dos produtores de obter lucro, até mesmo do que a preferência dos consumidores das áreas gentrificadas[8].

E qual a razão para se falar da gentrificação nesse texto? É que ela e a técnica de construção hostil compartilham pontos em comum: se constituem como condutas que buscam excluir o pobre do convívio comunitário na cidade, descumprem a função social e, por conseguinte, se caracterizam como abuso de direito[9].

Em outras palavras, seja o bem público ou particular, não pode ele ser utilizado para ação que seja prejudicial aos interesses da sociedade. Sociedade essa que, não apenas inclui, mas é, num país desigual como o Brasil, majoritariamente formada por pessoas em situação de pobreza ou vulnerabilidade. Desse modo, a realização de construções hostis, para além de uma prática moralmente condenável, se constitui como um ato ilícito, agora muito claramente caracterizado graças à nova Lei Padre Júlio Lancellotti.

Não por acaso, a razão exposta no veto imposto à Lei trazia a explicação de que sua aprovação iria “ocasionar uma interferência na função de planejamento e governança local da política urbana, ao buscar definir as características e condições a serem observadas para a instalação física de equipamentos e mobiliários urbanos”. Ora, também o planejamento urbano, se feito de modo que descumpra a função social, é ato ilícito e deve ser readequado. Não deve haver espaço para escolhas direcionadas à exclusão num Estado que se pretenda republicano e democrático.

Às pessoas que se encontram em situação de rua temos um débito que não se paga por simplesmente lhes possibilitar dormir sob um viaduto. Reformas muito mais contundentes se fazem necessárias para que alcancem a dignidade da pessoa humana que constitucionalmente lhes é garantida. Esse pequeno passo de impedir as técnicas de construção hostis, entretanto, nos aproxima ao menos alguns milímetros da realização da nossa pretendida humanidade.


Maurício Requião
Doutor em Direito. Professor de Direito Civil na UFBA e na Faculdade Baiana de Direito. Advogado. Líder do grupo de pesquisa “Autonomia e Direito Civil contemporâneo”.

 

Notas
[1] Doutor em Direito. Professor de Direito Civil na UFBA e na Faculdade Baiana de Direito. Advogado. Líder do grupo de pesquisa “Autonomia e Direito Civil contemporâneo”.
[2] Votaram pela manutenção do veto apenas quatro senadores, ao passo que sessenta votaram pela sua derrubada com a consequente aprovação da Lei.
[3] UOL. “Bolsonaro veta lei que proíbe estruturas para afugentar moradores de rua”. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2022/12/13/vetada-lei-que-proibe-arquitetura-hostil-a-morador-em-situacao-de-rua.htm>. Acesso em 20 dez 2022.
[4] REQUIÃO, Maurício. Normas de textura aberta e interpretação: uma análise no adimplemento das obrigações. Salvador: Jus Podivm, 2011.
[5] O caso, inclusive, é citado na justificação do PL 488/2021 do qual se originou a Lei.
[6] RIBEIRO, Luana. “Cactos ocupam espaço sob viadutos no Canela; plantas já existem há muito tempo; diz Reis”. In: Bahia Notícias. Disponível em: <https://www.bahianoticias.com.br/noticia/174015-cactos-ocupam-espaco-sob-viadutos-no-canela-plantas-ja-existem-and039ha-muito-tempoand039-diz-reis>. Acesso em 20 dez 2022.
[7] CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia: volume 1. São Paulo, Contracorrente, 2020.
[8] SMITH, Neil. Toward a theory of gentrification. A back to the city movement by capital, not people. In:  Journal of the American Planning Association, v.45, 1979. Disponivel em: <https://macaulay.cuny.edu/eportfolios/chin15/files/2015/02/Smith-Theory-of-_Gentrification.pdf>. Acesso em 22 mai 2017.
[9] REQUIÃO, Maurício. Gentrificação como abuso de direito. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 2, 2018. Disponível em: <http://civilistica.com/gentrificacao-como-abuso-de-direito/>. Acesso em 25 set 2020.

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