Uma agenda para as interações entre o direito civil e as novas tecnologias em 2023

31 de janeiro de 2023

Coluna Direito Civil

Estamos chegando ao final do primeiro mês de 2023. É hora de pensar sobre o que o ano judiciário e uma nova legislatura nos apresentarão no campo das intrincadas relações entre o Direito Privado brasileiro e a utilização de novas tecnologias para os próximos meses. Se a mudança é uma constante em nossas vidas, o início de um novo ciclo apresenta diversas oportunidades. Mas antes de propor temas que poderiam integrar uma agenda para 2023, devemos iniciar esta Coluna pensando naqueles que conseguiram se desconectar do cenário jurídico e permaneceram off-line nas últimas semanas. Os tópicos abaixo ajudarão, sob a perspectiva de atualização legislativa:

I) Nova Lei sobre o Mercado de Câmbio

Se janeiro de 2023 marca os vinte anos de vigência do nosso Código Civil, é preciso ficar atento para a entrada em vigor de novos diplomas legislativos, entre os quais podemos citar a Lei nº 14.286, de 29 de dezembro de 2021, que dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, pois a previsão de vacatio legis de um ano, estabelecida em seu artigo 29, fez com que o início da vigência se verificasse na primeira semana de 2023, permitindo-se a estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional nas obrigações cujo credor ou devedor seja não residente (exceto nos contratos de locação de imóveis situados no território nacional), bem como nos contratos e nos títulos referentes ao comércio exterior de bens e serviços, ao seu financiamento e às suas garantias. A norma fomenta as atividades relacionadas ao e-commerce e certamente repercutirá sobre o setor dos criptoativos.

II) Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp)

A Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, que instituiu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), ficou conhecida pelas alterações que promoveu na Lei de Registros Públicos, especialmente pela possibilidade extrajudicial de alteração imotivada do prenome da pessoa natural, bem como pela possibilidade de alteração de sobrenomes após a dissolução da sociedade conjugal ou alteração das relações de filiação, independentemente de autorização judicial. No entanto, há de se ressaltar que seus principais objetivos ainda não foram atingidos, entre os quais o de viabilizar o registro público eletrônico dos atos e negócios jurídicos, com interoperabilidade das bases de dados e interconexão das serventias por todo o país, o que possibilitará o atendimento remoto aos usuários de todas as serventias dos registros públicos, por meio da internet, através da recepção e do envio de documentos e títulos, da expedição de certidões e da prestação de informações.

O cronograma de implantação do Serp e do registro público eletrônico dos atos jurídicos em todo o País é de responsabilidade da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, que deverá apresentá-lo até 31 de janeiro de 2023[1].

III) Número de Identificação único baseado no CPF

Em 11 de janeiro de 2023, a Lei nº 14.534 estabeleceu o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) como número único e suficiente para a identificação do cidadão nos bancos de dados de serviços públicos. Desse modo, o número de identificação de novos documentos emitidos ou reemitidos por órgãos públicos ou por conselhos profissionais será o número de inscrição no CPF[2]. Tais órgãos e entidades terão 12 (doze) meses para realizar a adequação de seus sistemas e procedimentos de atendimento aos cidadãos.

Para quem está pensando na praticidade e facilidade da unificação dos mecanismos de identificação utilizando-se de um mesmo critério, resta lembrar os potenciais danos para pessoas vítimas de fraude e usurpação de identidade, que podem ser potencializados se salvaguardas não foram estabelecidas pelas plataformas que se basearem no DNI (documento nacional de identificação).

IV) Política Nacional de Educação Digital

Também é preciso registrar a instituição da Política Nacional de Educação Digital (PNED), através da Lei nº 14.533, de 11 de janeiro de 2023, que tem por objetivo potencializar os padrões e incrementar os resultados das políticas públicas relacionadas ao acesso da população brasileira a recursos, ferramentas e práticas digitais, com prioridade para as populações mais vulneráveis, em especial crianças e adolescentes.

Espera-se a inserção da educação digital nos ambientes escolares, em todos os níveis e modalidades, englobando aprendizagem destinada à participação consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que pressupõe a compreensão dos impactos da revolução digital e seus avanços na sociedade, a construção de atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais, e os diferentes usos das tecnologias e dos conteúdos disponibilizados. Além disso, a PNED envolve a conscientização a respeito dos direitos sobre o uso e o tratamento de dados pessoais, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Com uma nova composição no Congresso Nacional, fica a expectativa sobre como será apreciado o trabalho concluído no início de dezembro de 2022 pela Comissão de Juristas instituída pelo Senado para subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo[3], a fim de instruir a apreciação dos Projetos de Lei nºs 5.051, de 2019, 21, de 2020, e 872, de 2021, que têm como objetivo estabelecer princípios, regras, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil, especialmente sobre o modelo regulatório a ser adotado, quando considerada a multiplicidade de usos da IA, que impacta em diferentes níveis de risco e danos aos usuários e à população em geral.

Os temas relacionados ao impacto das novas tecnologias nas relações privadas continuarão ocupando grande espaço, porquanto apresentam ramificações em todas as áreas do direito civil, desde as discussões sobre atribuição de personalidade jurídica eletrônica para a IA e a (des)regulamentação da utilização da internet das coisas (IOT) em nosso país, passando pela consolidação do entendimento jurisprudencial sobre a necessidade de prova para a responsabilização dos agentes de tratamento pela violação, vale dizer, vazamento de dados pessoais, até as questões atinentes à regulamentação dos ativos digitais, em especial a administração e a transmissibilidade da herança digital.

Tais assuntos apresentam diferentes estágios de discussão, regulamentação e apreciação pelo Poder Judiciário e pela doutrina nacional. Sobre o tema da responsabilização extrapatrimonial por violação de dados pessoais pelos agentes de tratamento, por exemplo,  há de se aguardar qual será o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de configuração de dano in re ipsa, quando os titulares forem informados pelos agentes de tratamento acerca de incidentes de segurança que permitiram o acesso não autorizado de dados pessoais, sem que tal fato tenha gerado repercussões econômicas negativas imediatas, especialmente após a inclusão, pela EC 115/2022, do inciso LXXIX no art. 5º da CF/88, assegurando, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.

No âmbito das cortes estaduais, a diversidade de entendimentos exigirá uma uniformização da compreensão sobre o tema, em nome da segurança jurídica. Para este tópico em particular, existe norma jurídica a ser aplicada, devendo a solução ser construída a partir de um diálogo prospectivo entre LGPD, CC e CDC, na direção da efetivação do já citado inciso LXXIX do art. 5º de nossa Carta Fundamental.

Quem sabe antes da pacificação da discussão acima apresentada, tenhamos um posicionamento de nosso Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (Tema 987), excluído do calendário de julgamento em maio de 2022. O ponto central é a análise da necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.

Mas outros assuntos precisam ser mais debatidos, em especial sobre suas consequências na vida dos cidadãos, entre os quais a implementação dos Sistemas Informatizados para a Resolução de Conflitos por meio da Conciliação e da Mediação (SIRECs) pelos tribunais brasileiros, regida pela Resolução nº 358/2020/CNJ, sob o prisma de expansão das soluções de inteligência artificial e de proteção aos usuários.

Pouco tem se discutido sobre a responsabilidade civil relacionada a novos meios e soluções de pagamento eletrônico, bem como sobre a natureza jurídica e requisitos de segurança relacionados aos serviços de certificação digital e assinatura eletrônica disponibilizados para negócios entre particulares. Há ainda os diversos serviços que propõem a “digitalização” da propriedade de bens imóveis ou a comercialização de ativos digitais exclusivos que oferecem supostas vantagens que nem sempre estão amparadas na legislação em vigor.

Por fim, ainda temos que registrar o impacto da utilização de novas aplicações de inteligência artificial como o ChatGPT (“Chat Generative Pre-Trained Transformer”), um modelo de linguagem que demonstra o significativo potencial de utilização da IA nos mais diversos segmentos de nossas vidas. Apesar das limitações da versão atual, fica mais do que evidente a necessidade de se refletir sobre as implicações ético-jurídicas de ferramentas que podem alterar o modo como atualmente pesquisamos informações na internet ou realizamos atividades repetitivas. Mas essa é uma conversa para uma outra coluna.

Que logremos enfrentar com ânimo e disposição o desafio de nos mantermos atualizados quanto às inovações, e vigilantes quanto à proteção dos direitos assegurados em nossa legislação, para que possamos conviver com os avanços da ciência, extraindo de sua utilização aspectos positivos para um desenvolvimento consciente, ético e sustentável da tecnologia.

 

Marcos Ehrhardt Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).

 

Notas:
[1] Deve-se ainda ressaltar que vários dispositivos vetados pela Presidência da República foram derrubados pelo Congresso Nacional, entre os quais merece destaque o art. 216-B da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), que passa a vigorar desde 5 de janeiro de 2023, permitindo a adjudicação compulsória extrajudicial de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel.
[2] Nos termos da nova lei, o número de inscrição no CPF deverá constar dos cadastros e dos documentos de órgãos públicos, do registro civil de pessoas naturais ou dos conselhos profissionais, em especial nos seguintes documentos: I – certidão de nascimento; II – certidão de casamento; III – certidão de óbito; IV – Documento Nacional de Identificação (DNI); V – Número de Identificação do Trabalhador (NIT); VI – registro no Programa de Integração Social (PIS) ou no Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep); VII – Cartão Nacional de Saúde; VIII – título de eleitor; IX – Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); X – número da Permissão para Dirigir ou Carteira Nacional de Habilitação (CNH); XI – certificado militar; XII – carteira profissional expedida pelos conselhos de fiscalização de profissão regulamentada; e XIII – outros certificados de registro e números de inscrição existentes em bases de dados públicas federais, estaduais, distritais e municipais.
[3] Disponível em https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2504&tp=4 Acesso em: 28.1.23.

 

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