O novo regime jurídico dos bens reversíveis no setor de saneamento | Coluna Direito da Infraestrutura

26 de setembro de 2022

A Lei n°14.026/2020 (Novo Marco Regulatório do Saneamento – “NMRS”) é uma lei que veicula obrigações de investimentos e de desempenho para títulos habilitantes de longo prazo (contratos de programa, contratos de concessão de serviços públicos comuns e contratos de parceria público-privadas). Malgrado a lei não seja o móvel mais adequado para veiculação de obrigações em contratos de infraestrutura – em razão de sua incompletude intrínseca –, fato é que o atraso ancestral (e vergonhoso) da universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário justificou uma estratégia regulatória Top-down. Tal se se deu, dentre os fatores, pela ausência de um sistema endocontratual de incentivos, no âmbito das “concessões-delegação” interfederativas, consubstanciadas, em contratos de programa, celebrados entre os Titularidades (Municípios) e os operadores históricos (CESBs).

Razão pela qual se alvitrou substituir a exploração monopólica pública por um modelo de concorrência pelo mercado. Nesse quadrante, fomenta-se a realização de um leilão (franchise bidding), modalidade de regulação de entrada, por intermédio da qual se pretende, em um ambiente de pressão competitiva, simular o ambiente concorrencial da exploração de uma infraestrutura ainda qualificada como um monopólio natural. Isto porque, por intermédio da realização de leilões, a partir da instauração de uma competição, ex ante, sugere-se que seriam alcançados melhores preços, ex post[1].

Em setores de infraestrutura, as rupturas predicam segurança jurídica. O cerne da regulação, a partir de um viés prospectivo (forward looking), é a adaptação ponderada dos efeitos dos câmbios normativos e dos entendimentos jurídicos deles decorrentes. Daí a necessidade do estabelecimento de um regime de transição, nos moldes do que trata o art. 23 da LINDB.

O NMRS não desconsiderou tal racional. Mais que isso, tenho para mim que o novo marco instituiu um novel “regime jurídico de transição para os bens reversíveis dos operadores históricos no setor saneamento”, por assim dizer. Nesse sentido, o art. 42, § 5°, da Lei n°11.445/2007 (com redação dada pela Lei n°14.026/2020) prescreve que “A transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, facultado ao titular atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento”. No mesmo sentido, o art. 4°-A, § 5°, do Decreto n°10.588/2020 (incluído pelo Decreto n°11.030/2022) dispõe que, no âmbito dos títulos habilitantes irregulares, que não conseguiram comprovar a capacidade econômico-financeira para o atendimento das metas de universalização (previstas no art. 11-B), quando os regimes de transição “incluírem indenizações por investimentos em bens reversíveis não amortizados ou depreciados, as indenizações serão apuradas pelas agências reguladoras competentes e, quando a lei exigir, serão pagas até a data da transferência definitiva da prestação dos serviços, podendo esta responsabilidade ser alocada no escopo de novos contratos de concessão” (Grifos postos).

O tema trará desafios jurídico-econômicos relevantes, dentre os quais, os que envolvem dar cabo dos seguintes questionamentos: quais bens, no setor de saneamento, devem ser vertidos à posse (e não, necessariamente, à propriedade) do Poder Concedente? Qual seria a metodologia indenizatória adequada para remunerar os investimentos em bens reversíveis não amortizados ou depreciados pelos operadores (nos casos de extinção antecipada)?

De forma ampla, já tratei do tema, em outra oportunidade, para onde remeto o leitor[2]. Para os fins da presente coluna, focarei, no essencial e nas peculiaridades do setor de saneamento.

Tenho para mim que tal regime de “transição indenizatório” não deve desconsiderar alguns quadrantes essenciais.

O primeiro deles é a adoção da tradicional concepção funcional de reversibilidade, amparada pela melhor doutrina[3] e consagrada na jurisprudência pátria[4], segundo a qual, ao cabo da concessão, devem verter ao patrimônio público os bens afetados à prestação dos serviços de produção de água e esgotamento sanitário, interditando-se soluções de continuidade. O que retorna para o titular é o serviço público, e não o patrimônio privado. Me valendo de uma lógica privatística, o acessório segue o principal. No setor de saneamento, estão afetados às cadeias do serviço público, por exemplo, as Estações de Tratamento de Água e Esgoto, as infraestruturas dutoviárias necessárias à disponibilização e manutenção de instalações operacionais necessárias ao abastecimento público de água potável e à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final adequados dos esgotos sanitários. De outro lado, escritórios administrativos, móveis, imóveis e outros bens de propriedade dos operadores privados, que não sejam necessários à manutenção da continuidade dos serviços públicos, não serão revertidos ao poder público.

Quanto à metodologia indenizatória, o tema não comportará uma solução uniforme (one size fits all). O estabelecimento de uma adequada metodologia indenizatória decorre da necessidade de se forjar um sistema de incentivos que, de um lado, seja relevador de informações, por parte do operador privado (evitando-se o moral hazard)[5], e que, de outro, evite práticas oportunistas do Poder Público decorrentes da especificidade de ativos[6] (efeito Hold-Up)[7]. Nesse sentido, previsão no sentido de que os operadores privados deverão amortizar os investimentos em bens reversíveis, no âmbito do prazo de vigência do contrato, deverá carregar uma presunção relativa (juris tantum). É que, por exemplo, caso tais investimentos sejam realizados em razão de um evento desequilibrante, que esteja alocado, contratualmente, como um risco do Poder Público, não se pode desconsiderar a necessidade de considerar os efeitos do desequilíbrio econômico-financeiro no montante indenizatório.

Para além disso, a metodologia indenizatória deve ser influenciada pelo tipo de Regulação incidente sobre o ativo (Discricionária ou Contratual). Caso se trate de uma Regulação Discricionária (destacadamente, utilizada, no âmbito de contratos de programa), a ausência de capacidade institucional da entidade reguladora sugere a inadequação da metodologia do Custo Histórico (utilizada no setor de concessão de rodovias), assim considerada como a aferição da indenização com lastro no valor do bem, ou do investimento, que é extraído da contabilidade da concessionária. No âmbito de uma Regulação contratual ou em um ambiente no qual tenha lugar um regulador estruturado (com maturidade institucional e insulado de influências políticas episódicas), é possível se sugerir a adoção da Metodologia de Valor Novo de Reposição do Ativo, (usualmente, utilizada no Setor de Energia Elétrica), por intermédio do qual se estipule um valor que sirva à substituição do bem que será vertido ao patrimônio do poder público, com as mesmas características, a partir de uma análise do seu valor de mercado.

O importante é que se respeitem os atos jurídicos perfeitos, no âmbito dos quais já exista metodologia contratada entre o poder concedente e o concessionário. A fixação de tetos indenizatórios, a posteriori, que não foram pactuados entre as partes, violam a segurança jurídica. O ideal seria aferir, concretamente, o desempenho econômico-financeiro do ativo (retrospectivamente), e valorar, com lastro em dados concretos do projeto (CAPEX e OPEX), um valor que seja compatível com as projeções realistas da concessão, trazidas a um valor presente.

O longo prazo dos contratos de concessão impõe a gestão eficiente da assimetria de informações entre as partes. Em momentos de transição de regimes jurídicos (a exemplo do que se passa no setor de saneamento), serão produzidos eventos qualificados como “incertezas”, para todas as partes (titulares, operadores e usuários). Nesse necessário, a maximização dos interesses individuais das partes pode gerar ineficiências coletivas em prejuízo da alvitrada (e tardia) universalização. Posturas adversariais não agregarão. Disputas sobre “valores históricos” e de “mercado”, “quedas de braço” público-privadas, em um ambiente de aguda assimetria de informações, sugere a produção de falhas regulatórias de coordenação, em prejuízo das partes e da sociedade. A extração de informações da realidade e os experimentos podem importar no surgimento de metodologias indenizatórias mais justas, realistas e eficientes. O consenso será chave para a redução dos custos de transação.

 

Rafael Véras
é coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura.
Professor do LLM em Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

 

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Notas:
[1] PHILLIPS JR., C. F. The regulation of public utilities: theory and practice. Arlington, VA: Public Utilities Report Inc., 1993. DEMSETZ, H. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, n. 11,v. 1, p. 55-65, 1968.
[2] FREITAS, Rafael Véras de. A reversão nos contratos de concessão e seu regime jurídico-econômico. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, ano 18, n. 70, p. página inicial-página final, abr./ jun. 2020.
[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens Reversíveis nas Concessões do Setor de Telecomunicações. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, n. 8, ano 2, out./dez. 2004.
[4] O Superior Tribunal de Justiça (STJ), na mesma direção, ao apreciar o regime jurídico de imóvel que fora alienado, pela Brasil Telecom, deixou assentado que “A tese de que o bem alienado continua como bem reversível, ainda que fora de uso, não se harmoniza com o conceito de bens reversíveis. O que está desativado e fora de uso não é essencial à prestação de qualquer serviço. (STJ, AgRg no REsp 971.851, Segunda Turma, relator: Min. Castro Meira, julgado em 08/09/2008.
[5] O ponto já foi objeto de atenção do Tribunal de Contas da União – TCU, oportunidade em que restou assentado que “ACORDAM os ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pela relatora, e com fundamento nos arts. 250, V, e 276, caput, § 3o, do Regimento Interno, em: 9.1. determinar, cautelarmente, à Agência Nacional de Transportes Terrestres que suspenda os efeitos da Deliberação 329/2020, abstendo-se de assinar o termo aditivo ao contrato de concessão da BR-040/DF/GO/MG – Via040 ou praticar outros atos no sentido de dar prosseguimento ao processo de relicitação da concessão até que: 9.1.1. a metodologia de pagamento das indenizações pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados contemple as normas contábeis aplicáveis à espécie – contidas no ICPC01 – que preveem serão os bens reversíveis apurados por meio do ativo intangível da concessionária; 9.1.2. a metodologia de pagamento das indenizações pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados considere um teto ao valor das indenizações, a exemplo do valor dos ativos obtidos a partir do modelo econômico-financeiro dos Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA). (TCU – TC 008.508/2020-8 – ACÓRDÃO No 2611/2020 – Plenário. Relatora: Ana Arraes. Data da Sessão: 30/9/2020 –).
[6] WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism. New York: The Free Press, 1985, p. 46.
[7] WORLD BANK. Guidance on PPP Contractual Provisions, 2019. Disponível em: <https://consultations.worldbank.org/consultation/guidance-ppp-contractual-provisionshttps://consultations.worldbank.org/consultation/guidance-ppp-contractual-provisions>. Acesso em: 20 setembro. 2022.

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