As breves reflexões ora expostas tiveram como base o artigo intitulado
“Os Impactos da Inteligência Artificial na Telemedicina”, que está no prelo.
A área da saúde tem sofrido fortemente os impactos dos avanços biotecnológicos, da tecnologia, da informática, da inteligência artificial e dos novos meios de comunicação. Com isso, a prestação de serviço médico e a interação entre médicos e pacientes ganham novos formatos.[1] Transmuda-se o atendimento médico presencial para a consulta virtual, com o uso da Telemedicina,[2] [3] sem, contudo, eliminá-lo, até porque ele ainda é considerado o padrão ouro de referência para a Medicina.[4]
Na era da inteligência artificial, presente em aplicativos de celular, smartphones, softwares, robôs capazes de processar dados clínicos permitidos pelo Big Data, modificam-se os processos de conclusão de diagnósticos, tornando possível a predição de doenças, o monitoramento dos pacientes em tempo real, o auxílio nos processos decisórios de internação, na definição da dosagem de medicamentos, pesquisas clínicas e na maior precisão dos tratamentos médicos. Tudo em prol de um cuidado eficaz e eficiente da saúde humana.[5]
A pandemia da Covid-19 propiciou a ampliação da Telemedicina,[6] em razão da necessidade de manter o atendimento médico, a preservação e a promoção da saúde em meio a medidas adotadas pelos governos de distanciamento e isolamento social, a fim de evitar o deslocamento, a superlotação de hospitais e, com isso, o colapso do sistema de saúde diante do alto grau de contágio da doença decorrente da transmissibilidade do coronavírus.
A inteligência artificial foi um instrumento que facilitou a realização do diagnóstico de Covid-19, permitiu o controle dos pacientes em suas residências, e ajudou a decidir se os que estavam hospitalizados seriam encaminhados para a internação em unidade de terapia intensiva (UTI),[7] verificando os riscos de necessidade de ventilação mecânica e risco de morte por meio de uma análise algorítmica.[8] Na Telemedicina, ela permitiu, ainda, a vigilância de saúde pública, o controle e o monitoramento em tempo real dos surtos epidêmicos, suas projeções e previsão de tendências, instruções e atualizações regulares da situação de instituições públicas e informações de utilização de unidades de saúde,[9] o uso de aplicativos em ambiente móvel/web, como o chatbot, com o objetivo de orientar e informar, de forma automática, o cidadão com dúvidas relacionadas à COVID-19 e/ou avaliar seu estado de saúde.[10] Foram avanços importantes que só tendem a aumentar cada vez mais, em um processo de desenvolvimento e aprimoramento constantes, mostrando uma nova Telemedicina, e que podemos chamar de “Telemedicina Inteligente”, com o aumento de cientistas da computação e profissionais da saúde que desenvolvem programas de pesquisas e estudos em uma nova área chamada Inteligência Artificial em Medicina (IAM).
Todavia, apesar do desenvolvimento de novas ferramentas de comunicação entre médicos e pacientes, o auxílio da inteligência artificial, as normas deontológicas sempre foram restritas quanto ao uso da Telemedicina, além de não haver lei específica sobre o tema.
A existência de um vácuo normativo e da falta de regulação direta da Telemedicina[11] e até mesmo quanto às novas ferramentas, como a inteligência artificial,[12] geram muitas incertezas para os profissionais que não sabem quais são os limites de sua atuação e os casos que podem acarretar responsabilidade ética, administrativa, civil e, quiçá, criminal. O mesmo ocorre com os pacientes, que precisam compreender esse novo formato, os seus direitos e a maneira de garantir a segurança dos seus dados, imagem e confiança no diagnóstico, muitas vezes delegados à inteligência artificial.
A primeira lei que tratou da Telemedicina no Brasil, a Lei n.º 13.989/2020, foi editada em meio à pandemia da Covid-19 e de forma transitória, com aplicação enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), e, após esse período, restou estabelecido que caberá ao Conselho Federal de Medicina (CFM) regular o tema (art. 6º).[13] [14] Após longa fase de discussão pela Comissão Especial do CFM, foi editada Resolução n.º 2.314/2022, do CFM, que define e regulamenta a Telemedicina como forma de serviços médicos por tecnologias de comunicação. Tanto a Lei n.º 13.989/2020, quanto a Resolução n.º 2.314/2022, do CFM, foram posteriores à expedição de alguns regulamentos que se fizeram necessários para melhor orientar os agentes de saúde em meio à pandemia, tal como o Ofício CFM n.º 1.756/2020,[15] que permitiu, de forma restrita e enquanto durar o combate ao contágio da COVID-19, algumas modalidades de serviço médico à distância, tais como a teleorientação, o telemonitoramento e a teleinterconsulta. Em seguida, a Portaria n.º 467, de 20 de março de 2020,[16] emitida pelo Ministério da Saúde, que previu, em caráter excepcional e temporário, a interação à distância por meio de atendimento pré-clínico, suporte assistencial, consulta, monitoramento e diagnóstico pelo uso de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do SUS, bem como na saúde suplementar e privada.[17] Posteriormente, os Conselhos Regionais de Medicina passaram a editar suas próprias resoluções, como ocorreu, a título de exemplo, com a publicação, em março de 2020, da Resolução CRM-DF n.º 453/2020,[18] e da Resolução CREMERJ n.º 305/2020.[19]
A Resolução n.º 2.314/2022, do CFM, traz um conceito de Telemedicina atrelado ao uso de tecnologia digital, informação e comunicação para assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde (art. 1º) em território nacional, que pode ocorrer de forma real on-line (síncrona) ou off-line (assíncrona) e elenca sete modalidades: Teleconsulta; Teleinterconsulta; Telediagnóstico; Telecirurgia;[20] Telemonitoramento ou Televigilância; Teletriagem; e Teleconsultoria, todas definidas, respectivamente nos arts. 6º, 7º, 8º, 9º, 10, 11, 12.
A norma deontológica visa assegurar os direitos dos pacientes que ficam mais expostos em razão dos riscos do atendimento à distância, das tecnologias de comunicação e dos meios digitais. Destacam-se os direitos referentes aos cuidados de sua saúde, física e psíquica; o direito à integridade das informações; à proteção de seus dados pessoais e sensíveis, clínicos, imagem; ao sigilo e confidencialidade; à privacidade; a solicitar e receber cópia em mídia digital e/ou impressa dos dados de seu registro; a optar pela interrupção do atendimento à distância, assim como pela consulta presencial.
Da mesma forma, garante os direitos dos médicos, aos quais são assegurados a liberdade profissional e o pleno exercício da autonomia, podendo optar por quaisquer das formas de atendimento, desde que observe os princípios bioéticos, inclusive, os da beneficência e não maleficência para realizar a escolha pelo atendimento virtual, podendo interromper o atendimento à distância (arts. 4º, 3º, parágrafo 8º), e o direito de receber os honorários pelo atendimento prestado (art. 16, parágrafo único). Quanto ao médico assistente, é assegurado o acesso aos dados do paciente. Ganha relevo na Resolução n.º 2.314/2022, do CFM, as orientações acerca das instruções de segurança, manejo, armazenamento dos dados dos pacientes (pessoais, clínicos, anamnese, propedêuticos, resultados de exames etc.) com registro no prontuário físico ou pelo uso de Sistema de Registro Eletrônico de Saúde – SRES, com a possibilidade de ocorrer a interoperabilidade, intercambialidade entre sistemas, desde que haja a garantia de confidencialidade, privacidade e integridade dos dados, observado o Nível de Garantia de Segurança 2 para os prontuários;[21] e o padrão de infraestrutura de Chaves-públicas para assinatura digital qualificada ou outro permitido em lei. Ademais, deve o médico obter o consentimento livre e esclarecido do paciente ou representante legal, seja quanto ao ato médico, à modalidade de Telemedicina e suas particularidades (Lei n.º 12.842/2013 e Resolução n.º 1.627/2001), seja quanto ao tratamento dos dados pessoais e sensíveis, como transmissão de dados e imagem, observado o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/2018), o que pode se dar por meios eletrônicos ou de gravação de leitura, fazendo parte do SRES do paciente (art. 15).
A responsabilidade pelos dados que o médico responsável pelo atendimento em consultório próprio ou que o diretor responsável técnico da empresa ou instituição possui, até por deter a guarda, pode ser compartilhada com terceiros contratados para arquivamento (artigo 3º, parágrafos 2º e 3º).
A Resolução n.º 2.314/2022, do CFM, dissipa algumas dúvidas decorrentes da ausência de previsão expressa e até divergências entre resoluções dos Conselhos Regionais de Medicina como, por exemplo, a possibilidade de a primeira consulta ser virtual (Resolução n.º 305/2020, do CREMERJ),[22] observadas as condições técnicas e físicas, ressalvando o prosseguimento na forma presencial. Além disso, determina o uso de mecanismos, protocolos rígidos e instrumentos necessários para registrar dados, informações em prontuários e agir com segurança no manejo, armazenamento e eliminação de dados dos pacientes na era digital. Por fim, cabe ressaltar o disposto no art. 17, que estabelece que as pessoas jurídicas que prestam serviços de Telemedicina, inclusive as plataformas de comunicação e arquivamento de dados, deverão ser estabelecidas em território nacional e estar inscritas no Conselho Regional de Medicina do Estado em que estão sediadas, com o médico responsável técnico também inscrito no mesmo conselho, a fim de propiciar a fiscalização.
A Telemedicina Inteligente, apesar de trazer consigo diversas vantagens na assistência à saúde, também apresenta riscos que podem colocar em xeque direitos humanos fundamentais, tais como a saúde, a integridade psicofísica, a privacidade, a proteção de dados pessoais, a autonomia existencial corporal e informacional, entre outros, nessa era cibernética.
A Telemedicina e todos os seus desdobramentos éticos e jurídicos devem ser interpretados à luz do ordenamento jurídico, da legalidade constitucional e de todo o arcabouço normativo envolvido, princípios bioéticos e constitucionais, guias de boas práticas e toda a legislação aplicável, que parte desde o Código Civil que regula os direitos da personalidade, os negócios jurídicos, o instituto da responsabilidade civil, como o Código de Defesa do Consumidor,[23] a Lei n.º 12.965/2014 (marco civil internet), a Lei n.º 13.709/2018 (LGPD), e regras específicas como a Lei n.º 12.842/2013 (exercício da Medicina), a Lei n.º 12.842/2013 (ato médico), a Lei n.º 13.787/2018 (prontuário) etc.
Caberá ao operador do Direito a difícil tarefa de melhor conduzir a hermenêutica em prol da tutela da pessoa humana, dos pacientes e médicos, principais atores dessa nova situação jurídica existencial virtual.
Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira
Doutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Advocacia Pública pela PGE-CEPED-UERJ. Especialista em Direito Médico pela Universidade de Coimbra-PT. Pós-graduanda em Direito da Medicina e Pós-graduanda em Direito da Farmácia e do Medicamento pela Universidade de Coimbra-PT. Professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Membro da Comissão da OAB-RJ de Órfãos e Sucessões. Coordenadora Adjunta de Direito Civil da ESA-RJ. Advogada.