A (re)configuração dos pilares do Direito Privado na Sociedade Digital: a nova contratualidade on-line na era do acesso e compartilhamento | Coluna Direito Civil

19 de abril de 2022

Coluna Direito Civil

direito privado na sociedade digital

O Direito não tem amarras intransponíveis e não pode permanecer estático, sobretudo em cenários cada vez mais dinâmicos como os deste início de século.[1] Assim, diante da revolução digital iniciada com o advento da internet, é de crucial importância que sejam analisados os respectivos impactos ocorridos nos tradicionais pilares das relações patrimoniais privadas (propriedade e contrato), sem perder de vista que o patrimônio somente existe em função da pessoa, e esta deve ser o centro das atenções das relações no âmbito virtual, cada vez mais permeado por algoritmos e contratos de adesão.

Durante grande parte do século XX, seja em razão da industrialização, da massificação das relações e ainda da presença do poder público na vida econômica das pessoas, passou-se a observar uma erosão do modelo proprietário e contratual oitocentista, tendo em vista que os institutos jurídicos liberais e voluntaristas não conseguiam mais solucionar os problemas dos novos tempos.[2]

Esse estado de coisas acentuou a necessidade de uma maior intervenção do Estado na economia e nas relações privadas, criando uma onda de constitucionalização de direitos baseados em princípios solidaristas.[3] Nesse contexto, o contrato passou a ser visto de maneira funcionalizada, moldado por novos princípios, como boa-fé objetiva, função social e equilíbrio econômico. Da mesma forma, a propriedade, outrora exclusiva e protagonista das codificações oitocentistas, passou a ser vista de forma mais inclusiva e funcionalizada.

Mas, apesar de tais mudanças, nossa legislação não conseguiu acompanhar a velocidade da desmaterialização das relações patrimoniais geradas pelo advento da internet. O Código Civil de 2002 (CC/2002) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, foram pensados para um mundo sólido e ainda analógico, sem a elevada carga de relações virtuais da atualidade.

Analisando esse cenário disruptivo, Jeremy Rifkin afirma que “ter, guardar, acumular, em uma economia em que a mudança em si é a única constante, faz cada vez menos sentido”, tendo em vista que a propriedade seria uma instituição lenta demais para se ajustar à nova velocidade de uma cultura dinâmica, pautada mais no acesso a bens do que na propriedade sobre eles.[4]

Surgiu, assim, o modelo econômico de acesso e compartilhamento de bens, normalmente chamado de economia compartilhada, mas que ainda está longe de apresentar consensos sobre seu alcance e definição, razão pela qual adotou-se aqui a expressão preconizada por Rafael Zanatta como “economias de compartilhamento”.[5]

Nesse novo paradigma, a titularidade perpétua de bens é considerada desnecessária, ou mesmo inconveniente, diante das várias possibilidades de mera utilização temporária, que criaram uma migração das relações pautadas em obrigações de dar para outras que possuem o foco em obrigações de fazer. Assim, a compra e venda vem cedendo lugar para os serviços de compartilhamento, num fenômeno que Cláudia Lima Marques[6] chama de “servicização” dos produtos, em que o contratante não objetiva adquirir coisas, mas usá-las por meio de contratos de licenças, assinaturas, permissões de uso, hospedagens eventuais etc.

Não se pretende aqui afirmar ingenuamente que estamos vivenciando o fim da propriedade ou da compra e venda, mas não se pode deixar de observar que o fenômeno estudado cresce a passos largos e tem sido fonte de controvérsias na doutrina e jurisprudência, tendo em vista que as tradicionais categorias jurídicas e a legislação existentes nem sempre se amoldam às novidades decorrentes das relações de compartilhamento.

Dando contornos mais técnicos ao tema, Cláudia Lima Marques[7] afirma que esse novo sistema negocial ocorre quando as pessoas “alugam, usam, trocam, doam, emprestam e compartilham bem, serviços, recursos ou commodities, de propriedade sua, geralmente com a ajuda de aplicativos de tecnologia on-line”, gerando relações pautadas na confiança ou mesmo na “hiperconfiança”, por meio geralmente de contratos onerosos ou gratuitos por uso de aplicativo, com pagamento de percentual para a parte denominada como “guardião da tecnologia” (gatekeeper),[8] que muitas vezes é mais do que um simples facilitador ou intermediário tradicional de comércio físico, mas verdadeiro controlador e fornecedor do negócio.

Em linha semelhante, Eduardo Souza e Cássio Rodrigues afirmam que essa estrutura negocial é inovadora e plurilateral, formada entre a plataforma intermediária e/ou organizadora do serviço e os seus usuários, integrando uma relação triangular (usuário-consumidor, usuário-fornecedor e plataforma) incomum no direito contratual.[9]

As economias de compartilhamento, portanto, não evidenciam muito foco nos tradicionais Direitos Reais, pois miram no acesso proporcionado por contratos formados em um forte paradigma de confiança.[10] Assim, são utilizados contratos intermediados por profissionais que formatam e ditam as regras do jogo, emprestando credibilidade[11] ao negócio, tudo por meio de aplicativos na internet.

Não se pode perder de vista, como afirma Everilda Brandão, que a nossa legislação civil atual não foi elaborada para essa era do compartilhamento e, com efeito, “será o contrato o instrumento que dará segurança jurídica às relações jurídicas oriundas desse novo modo de viver”.[12] Contudo, o fenômeno deve ser respondido por uma teoria contratual atenta e renovada,[13] pois as economias de compartilhamento são possibilitadas por meio de contratos de adesão eletrônicos, os quais são bastante assimétricos, despersonalizados e com grande carga de vulnerabilidade para o contratante aderente, que não tem o devido poder de barganha diante das empresas gigantes que vêm tomando conta do setor, como Uber e Airbnb, autoproclamadas “meras intermediárias” da negociação.

Diante da inexistência tratamento específico sobre o tema em nosso Ordenamento Jurídico, devem ser inicialmente buscadas ferramentas com relativa capacidade de estabilizar as questões emergentes, como os novos princípios contratuais e a valorização da confiança como alicerce das relações jurídico-sociais. Além disso, a complexidade do fenômeno exige um enfrentamento com a perspectiva de unidade do Ordenamento Jurídico, ancorado nos princípios e valores constitucionais e oxigenado pelo diálogo entre o CC/2002, o CDC (pendente de urgente atualização pelo PL 3514/2015), o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados.

O fato é que, seja pelo ângulo da estrutura negocial, seja pelo aspecto legislativo, o fenômeno é complexo e plural, o que não significa dizer que deva ser analisado de forma fragmentada.[14] Neste último aspecto, Milena Donato adverte que “pluralidade, assim, significa diálogo, harmonização entre as diversas fontes normativas, para a máxima realização da ordem pública constitucional.[15]

Além disso, dada a pluralidade de sujeitos e modelos contratuais que vêm surgindo, o regime jurídico aplicável pode variar a depender das circunstâncias de cada caso. Bruno Miragem alega que, nos casos de atividades não profissionais ou não lucrativas, não deve prevalecer relação de consumo, ao passo que nas atividades efetuadas por meio de plataformas, existe a figura do gatekeeper, que deve ter sua exata responsabilidade aferida no exame caso a caso, a depender do modelo de negócio.[16] Cláudia Lima Marques, por sua vez, entende que a triangulação, nos casos de compartilhamento lucrativo, envolve relações de consumo, pois, mesmo que feitas por duas pessoas leigas e sem caracterização profissional, ficam “contaminadas” pela atuação do gatekeeper.[17]

Mas, independentemente do regime jurídico aplicável, Eduardo Souza e Cássio Rodrigues alertam que a atenção deve ser voltada para a tutela do contratante na medida de sua vulnerabilidade (usuário-fornecedor ou usuário-consumidor) observável no caso concreto, fazendo incidir, por exemplo, normas protetivas do aderente, do consumidor, ou do locatário, à nova realidade dos contratos de compartilhamento. O desafio reside, portanto, na identificação de parâmetros delineados “pelo legislador na tutela dos contratantes vulneráveis, em busca da construção de diretrizes gerais que possam orientar o juízo de merecimento de tutela também nesse (ainda novo) modelo negocial”.[18]

O fenômeno reclama, consequentemente, um criterioso dirigismo que vai além do contratual (sobre o teor dos contratos e com efeitos normalmente ex post), mas que deve ser também informacional (na relação pré-contratual e com eficácia ex ante)[19] empoderando os usuários previamente sobre o controle de seus dados e preservando as legítimas expectativas despertadas pela confiança nas plataformas de compartilhamento.

A intervenção heterônoma na relação contratual deve ocorrer, contudo, de forma cautelosa para que não seja inibido o caráter inovador desse ambiente negocial. Assim, não se pode desejar coercitivamente impor uma ideia de Justiça e interferir bruscamente nos novos arranjos negociais ainda em amadurecimento, mas contornar as injustiças flagrantemente decorrentes das assimetrias entre os contratantes.[20]

De fato, não basta que se afirme que existem regras para o jogo, como fazem as grandes plataformas com seus termos e condições de uso. Essas regras precisam ser claras, acessíveis e objetivas, não podendo trazer vantagens excessivas para uma das partes, com prejuízos muitas vezes inconscientes para a outra. Portanto, assim como não pode existir jogo sem regras, não faz sentido haver jogo cujos jogadores estejam em absoluta desigualdade de forças.

Com as observações acima feitas, pode ser constatado que propriedade e contrato permanecem vivos no âmbito das relações patrimoniais, mas com sensíveis mudanças de protagonismo de ambas as figuras. No cenário de acesso e compartilhamento, a propriedade exclusiva tem se deslocado do centro das atenções, e uma nova contratualidade on-line assume o papel fundamental na utilização de bens por meio de serviços.

A questão está longe de ser esgotada academicamente e se encontra em campo aberto para novas discussões. O que se pretendeu aqui foi demonstrar a importância do assunto, problematizando-o, ainda que brevemente, para demonstrar uma efetiva mudança de paradigma nas relações patrimoniais, a merecer novos estudos e respostas, as quais os próprios leitores, que chegaram até aqui, possam encontrar num futuro próximo.

Marcelo Leonardo de Melo Simplício 


Marcelo Leonardo de Melo Simplício

É advogado e professor de Direito Civil.
Mestre em Direito pelo PPGD da Universidade Federal do Piauí.
Criador e editor do site e perfil O Civilista.

 

Nota
[1] “Em essência, o ‘direito é um modo de resolver casos concretos’. O distanciamento da realidade faz mal ao jurista. Seu objeto de atenção está em permanente mutação.”. (SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 223).
[2] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10. ed. rev. e mod. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 248.
[3] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Revista de direito do estado. [s. l.], ano 1, n. 2, p. 40-42, abr./jun. 2006.
[4] RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. Revisão técnica: Equipe Makron Books de Treinamento. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2001, p. 5.
[5] ZANATTA, Rafael A. F. Economias do compartilhamento: superando um problema conceitual. In: ZANATTA, R. A. F.; PEDRO, C. B. de.; KIRA, B. (org.). Economias do compartilhamento e o direito. Curitiba: Juruá, 2017. p. 79-106.
[6] “O direito ou pretensão resultante do serviço é um crédito, que alguém faça algo, não um direito real sobre a coisa”. MARQUES, Cláudia Lima. Revisando a teoria geral dos serviços com base no código de defesa do consumidor em tempos digitais. In: MARQUES, Cláudia Lima et al. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 65 e 127.
[7] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil; Revista dos Tribunais, 2019. p. 98-99.
[8] “No direito brasileiro, estarão qualificados indistintamente como provedores de aplicações de internet, de acordo com a definição que estabeleceu o artigo 5º, VII c/c artigo 15 da Lei 12.965/2014”. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Economia do compartilhamento deve respeitar os direitos do consumidor. Consultor Jurídico. 23 dez. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-23/garantias-consumo-economia-compartilhamento-respeitar-direitos-consumidor. Acesso em: 16 out 2021.
[9] SOUZA, Eduardo Nunes de; RODRIGUES, Cássio Monteiro. Aplicativos de economia compartilhada: tutela da vulnerabilidade dos usuários diante dos “termos e condições de uso”. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 268.
[10] MARQUES, Cláudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Os guardiões do consumo na economia compartilhada: fornecedores-gatekeepers e sua responsabilidade. In: SCHWARTZ, Fábio Leonardo Garcia (coords.). Economia compartilhada: tópicos fundamentais. 1. ed. Belo Horizonte; São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 149.
[11] “A nota característica da sharing economy, assim, parece estar na busca pelo compartilhamento ou pela utilização dos bens, para a qual a construção de um forte sistema jurídico de tutela da confiança tem sido considerada essencial. O ponto de partida para a configuração dessa estrutura relacional é a criação de uma plataforma de compartilhamento, termo que costuma designar não apenas o aplicativo eletrônico, mas também a própria entidade responsável por operar”. SOUZA, Eduardo Nunes de; RODRIGUES, Cássio Monteiro. Aplicativos de economia compartilhada: tutela da vulnerabilidade dos usuários diante dos “termos e condições de uso”. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 267.
[12] GUILHERMINO, Everilda Brandão. Acesso e compartilhamento: a nova base econômica e jurídica dos contratos e da propriedade. Migalhas. 23 set. 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/311569/acesso-e-compartilhamento–a-nova-base-economica-e-juridica-dos-contratos-e-da-propriedade. Acesso em: 24 set 2021.
[13] MARQUES, Cláudia Lima. A nova noção de fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e o acesso ao consumo. In: MARQUES, Cláudia Lima et al. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 372.
[14] A exigência de transparência nas relações aparece, por exemplo, no CDC art. 4º; MCI, art. 9º, § 2º, II; e LGPD, art. 6º, VI, 9º, §1º, art. 10, §2º, art. 40, o que não demonstra antagonismo, mas uma sintonia entre as legislações e a necessidade de aplicação dialogada, quando necessário.
[15] OLIVA, Milena Donato. Desafios contemporâneos da proteção do consumidor: codificação e pluralidade de fontes normativas. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 15-33, abr./jun., 2018.
[16] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p 678-649.
[17] MARQUES, Cláudia Lima. A nova noção de fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e o acesso ao consumo. In: MARQUES, Cláudia Lima et al.. Contratos de serviços em tempos digitais: contribuição para uma nova teoria geral dos serviços e princípios de proteção dos consumidores. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 114.
[18] SOUZA, Eduardo Nunes de; RODRIGUES, Cássio Monteiro. Aplicativos de economia compartilhada: tutela da vulnerabilidade dos usuários diante dos “termos e condições de uso”. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 270-271.
[19] BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 266.
[20] ASCENSÃO, José de Oliveira. A nova teoria contratual. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 52, p. 97-126, jan. /jun. 2008, p. 109.

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