O sistema econômico capitalista é bastante talentoso na arte de enredar corpos e mentes[1] de consumidores que, antes de sê-lo, são seres demasiadamente humanos. Ele aproveita-se, para tanto, de aspectos como as muitas lacunas que se espraiam pelos campos da razão[2]. Quantas não foram às vezes nas quais ao agir como Circe, transmutou aqueles com quem tem contato ou, ainda, as ocasiões nas quais agiu, sutilmente, buscando moldar vidas que, de outro modo, teriam sido vividas de outro modo[3]. O Endymion, de John Keats, melhor que quaisquer lições teóricas, ajuda a compreender a metáfora trazida ao texto:
Não lamento a coroa que perdi.
A falange que outrora comandei.
E a esposa, ora viúva, que deixei.
Não lamento, saudoso, minha vida.
Filhos e filhas, na mansão querida.
Tudo isso esqueci, as alegrias
terrenas olvidei dos velhos dias.
Outro desejo vem, muito mais forte.
Só aspiro, só peço a própria morte.
Livrai-me deste corpo abominável.
Libertai-me da vida miserável.
Piedade, Circe! Morrer e tão-somente!
Sede, deusa gentil, sede clemente![4]
Caso a poesia recortada seja incapaz de estimular o leitor a refletir sobre como o Mercado usa as mais diversas formas de comunicação que tem ao seu alcance para modular os desejos e anseios dos consumidores, talvez a poesia de Homero possa despertar lembranças, resgatar ou mesmo construir memórias que remetam à transformação dos homens de Ulisses em sua jornada rumo à mítica Ítaca.
Como festejam cães o meigo dono
Que lhes traz do banquete algum bocado;
Mas, a tal vista, ao pórtico,
medrosos retiveram-se os Gregos.
Dentro ouviam cantar suave a crinipulcra Circe,
teia a correr brilhante, que só deusas
lavram tão fina e bela.
Eis diz Polites, chefe que eu mais prezava:
“No alto, amigos, mulher ou deusa tece; o pavimento
Ressoa todo ao cântico: falemos”.
Gritam; Circe aparece, e abrindo as portas resplendentes,
convida esses incautos;
Só, receoso, Euríloco repugna.
Senta-os a deusa em tronos e camilhas;
escândea e queijo
com paneio vinho mistura e fresco mel, poção lhe ajunta.
Que deslembra da pátria. Mal a engolem,
toca-os de vara, na pocilga os fecha.
Porcos sendo no som, no vulto e cerdas,
a inteligência embora conservassem.
Tristes grunhindo, a maga lhes atira
glande, azinha e cornisolo, sustento
próprio desses rasteiros foçadores[5].
É evidente que não pretendo aqui desrespeitar nenhum consumidor, cuja causa abracei há mais de uma década. Quero, ao contrário, de modo muito ligeiro, chamar a atenção para as estratégias adotadas pelo mercado e para a exploração de nossas fragilidades humanas.
Por isso, ênfase há de ser dada – creio eu, por ser algo bem mais real que Circe, a deusa da lua nova, da feitiçaria e do amor físico – ao fato de que o sistema econômico capitalista, em seu modelo atual, como ensinam Dardot e Laval, precisa ser compreendido a partir “da história de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam [e] das estratégias que o renova”[6]. Esta constatação não nos permite ignorar a onipotente presença do neoliberalismo que o informa, tampouco, “a mutilação que ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele”[7].
Não nos enganemos: “o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida[8].
Um sistema que, em inúmeras ocasiões, induz a perceber como legítimos movimentos canalizados não para informar consumidores inexoravelmente vulneráveis[9] – a fim de que estas pessoas possam exercer liberdades que possam ser qualificadas como racionais –, mas para propagar sedutora aura de encantamento por meio do recurso a técnicas publicitárias tão díspares quanto cativantes.
E para seguir com Homero, pede-se permissão ao leitor para conduzi-lo até a passagem vivenciada pelos homens de Ulisses, na Ilha dos Lotófagos, buscando, paradoxalmente, lembrar sobre a desconstrução notadamente em curso no Brasil, de garantias individuais, coletivas e sistêmicas erigidas com incomensuráveis sacrifícios impostos ao nosso povo, ou, pelo menos, a boa parte dele.
No dezeno aos Lotófagos arribo,
Que apascenta uma planta e flor cheirosa.
Jantamos, feita aguada; envio arauto,
com mais dois a inquirir de pão que gente lá se nutria.
Aos três em nada ofendem,
Mas lhes ofertam loto; o mel provando,
Os nossos o recado e a pátria esquecem,
Querem permanecer para o gostarem.
Constrangidos e em lágrimas os trago e amarro aos bancos;
apressado os outros sócios recolho, a fim que do regresso
A doçura falaz os não deslembre.
Em fila, a salsa espuma a remos ferem,
e dali pesarosos nos partimos.
Abordo a infanda plaga do Ciclopes,
Que, à fiúza dos deuses, nem semeiam.
Lavram nem plantam; sem cultivo e relha.
Cresce o trigo e a cevada, os bagos de uvas
lhes engrossa o imbrífero Satúrnio.
De conselho e assembleia e lei privados,
Cada varão, de montes em cavernas,
Rege absoluto filhos e mulheres,
Vizinhos olvidando[10].
Nunca é demais lembrar, nesta data em que deveríamos celebrar efusivamente o dia do consumidor, que o direito consumerista surgiu tardiamente. Seu intuito era limitar as sístoles e diástoles que alimentam o pantagruélico apetite do sistema econômico capitalista, buscando, portanto, tutelar pessoas que podem ser estereotipadas de muitas formas, exceto como as pessoas que conseguiram escapar das armadilhas de Circe. É igualmente oportuno ter em mente que referida proteção ocorre em perspectiva mínima e, salvo louváveis exceções, não é suficiente como revela qualquer leitura crítica da law in movement no Brasil.
Urge, portanto, pensar de forma sistêmica, orgânica, a tutela dos consumidores no Brasil, fazendo-a, com a seriedade necessária, desde os comandos normativos presentes na Constituição. De acordo com a carta magna, o Direito do Consumidor é qualificado como (a) direito fundamental e legitima pelo menos uma dezena de ações declaratórias de inconstitucionalidade em face do atual desgoverno e, ainda, (b) como limite identificador da (i)licitude no âmbito livre iniciativa. Este ponto deve ser sempre enaltecido, pois, não são poucos os que ignoram a normatividade que emana para além do caput do artigo 170 da Constituição. E pensá-lo, obviamente, desde um viés que não se deixe influenciar pelo utilitarismo que tão mal faz ao Direito, afinal, como disse outrora Mario Quintana.
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora,
a presença distante das estrelas!
Marcos Catalan é doutor summa cum laude pela Faculdade do Largo do São Francisco, Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Universidade LaSalle. Estágio pós-doutoral no Mediterranea International Center for Human Rights Research (2020-2021). Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho de la Universidad de la Republica, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidad de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidad de Córdoba, Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Diretor do Brasilcon (2020-2021). Advogado parecerista.
Notas:
[1] MALDONADO, Natalia Ortiz. Embrujos y contraembrujos. In: STENGERS, Isabelle; PIGNARRE, Philippe. La brujería capitalista. Trad. Victor Goldstein. Buenos Aires: Hekht, 2017. p. 18.
[2] Vide: BURNETT, Dean. O cérebro que não sabia de nada: o que a neurociência explica sobre o misterioso, inquieto e totalmente falível cérebro humano. Trad. Eliana Rocha. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. THALER, Richard. Misbehaving: a construção da economia comportamental. Trad. George Schlsinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019. THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge: o empurrão para a escolha certa. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Washington, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[4] KEATS, John apud BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 26ª ed. Trad. David Jardim Júnior, Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
[5] HOMERO, Odisseia. Trad. Manoel Odorico Mendes. São Paulo: E-book Brasil, 2009. l. X, v. 166-188.
[6] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 07.
[7] Id. p. 07.
[8] Id. p. 07.
[9] CATALAN, Marcos. Uma ligeira reflexão acerca da hipervulnerabilidade dos consumidores no Brasil. In: Ricardo Sebastián Danuzzo. (Org.). Derecho de daños y contratos: desafíos frente a las problemáticas del siglo XXI. Resistencia: Contexto, 2019.
[10] HOMERO, Odisseia. Trad. Manoel Odorico Mendes. São Paulo: E-book Brasil, 2009. l. IX, v. 65-86.
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