Na obra Teogonia, do poeta Hesíodo, datada de 750 a.C. que narra a origem dos deuses na mitologia grega, vemos o Titã Cronos (Tempo) emascular seu pai, Urano e devorar seus filhos ao nascerem, temendo ser destronado por eles (HESÍODO, 2021, p 46).
Os gregos enxergavam e explicavam a criação do mundo através dos mitos e agora, por que não aproximar a versão mitológica, de tantos pais contemporâneos que devoram seus filhos e as mães de seus filhos, ao se eximirem de responsabilidades para manter seu poder, na liberdade pessoal e profissional autorizada por uma sociedade que, culturalmente, retira de seus ombros os deveres de cuidado com a prole?
Por outro lado, não obstante termos uma legislação que impõe a igualdade no exercício da parentalidade, na prática, a maternidade é, de longe, muito mais densa que a paternidade, o que levou a doutrina brasileira a adjetivar a igualdade como formal e material.
As parentalidades pela filiação natural e social podem caminhar dissociadas e isso está bem representado na distinção entre maternidade e maternagem. Contudo, na prática jurídica ainda se atribui muito da função materna à condição natural do feminino, não obstante o crescimento da teoria da socioafetividade, onerando, sobremaneira, a mulher nas obrigações parentais.
Por essa razão, é missão difícil para o direito – ciência cultural atrelada à moral e aos costumes de uma sociedade – tornar eficaz a previsão de direitos e deveres enquanto condutas que devem ser assumidas tanto pelo homem/pai como pela mulher/mãe.
O primeiro passo no direito brasileiro, ainda inserido em uma sociedade patriarcal, foi alcançar, ao menos, a chamada igualdade formal. O art. 5º da Constituição Federal de 1988 não deixa dúvidas de que ninguém poderá ser tratado de forma desigual em razão de desigualdades naturais e culturais. Sem a igualdade formal, não há como se buscar uma boa e efetiva igualdade material.
A literalidade das regras familiares até 2002 estava totalmente condicionada à ideia de “condição natural” do homem e da mulher e é importante que se constate e se reconheça a força motriz da natureza em muitas elaborações sociais. A intenção codificada a partir de então foi promover essa mudança, mas o projeto do ano de 1975 expressou muitos dos valores de uma família dos anos 70. Para uma efetiva mudança, é importante e necessária uma terapia social e maior celeridade na aplicabilidade dinâmica dos Princípios Constitucionais que foram eleitos dentro dos preceitos de uma sociedade democrática, justa e solidária. O povo brasileiro elegeu essa premissa para as suas regulações e isso as condiciona a parâmetros humanistas.
Uma das terapias sociais necessárias seria amadurecer o significado e sentido da maternidade. Dissociar a função materna da condição de gênero foi e é importante para o alcance de uma igualdade para além da forma, mas não é suficiente para libertar socialmente a mulher da condição impregnada, supostamente, pelo seu reino natural.
O IBGE registra forte declínio nas taxas de fecundidade, no número de filhos nascidos vivos por mulher, que em 2010 foi de 1,86, quando no Censo de 2000 era 2,38 filhos. No Nordeste a diminuição foi de 25,2%, mais do que nas demais regiões. Hoje essa taxa de fecundidade estaria 1,64% segundo o Censo de 2013 (IBGE, 2013). Este dado quantitativo sinaliza o quanto a maternidade e a maternagem afetam as rotinas cotidianas, os destinos e as histórias de vida das mulheres brasileiras. Há fatores individuais e subjetivos, mas há também influências socioculturais e econômicas (COLLIER DE MENDONÇA, 2021).
Na compensação civilizatória o indivíduo terminou por coroar o homem no reino social, já que na natureza humana, a condição familiar e materna seria “prerrogativa” da mulher. Tal “prerrogativa” terminou por se transformar em um ônus exclusivo que surge a partir da gestação, fenômeno responsável pelo desenvolvimento do primeiro dos agrupamentos.
A cultura contribuiu para uma ressignificação de gênero desatrelada a uma condição física do feminino e isso deveria impactar diretamente na ressignificação da maternidade, mas o período de gestação natural aprisiona a mulher, também socialmente.
São sinais desse aprisionamento a partir da gestação, a tipificação do aborto como crime, a imputação dos deveres parentais de sustento material e representação do nascituro, e a atribuição automática da maternidade à gestação.
Não obstante o homem reprodutor possa reconhecer juridicamente o nascituro como filho parente, na realidade brasileira não é incomum que mesmo após o nascimento ele possa se valer da natureza de não haver gestado para uma fuga facilitada de suas responsabilidades, o que hoje denomina-se de aborto paterno.
A partir dessas considerações e sem rigor com a antropologia, fica mais fácil tentar entender o privilégio gerado para os homens no reino cultural, que terminou por gerar tratamentos desiguais injustificáveis assim como o sistema do patriarcado enquanto poder apenas deles e para todas e todos.
Na história do direito familiar no Brasil as evidências são inúmeras. Desde a condução conjugal no ritual matrimonial para levar a mulher do poder paternal ao poder marital à atribuição automática e presumida da maternidade à gestante. A submissão a esses poderes e o encargo intransferível da natureza tornaram a mulher um alimento indispensável a um modelo cultural que precisa ser superado, pois se fixa em um exacerbado biologismo e subserviência para a perpetuação da espécie.
Foi nessa condição que a sociedade como um todo, homens e mulheres, passaram a considerar a mulher: força motriz da natureza e ferramenta para a consagração de um domínio valorado como indispensável e bom para o desenvolvimento do indivíduo. Como alimento a essa engrenagem, as mulheres e mães sentem-se e tornam-se culpadas quando não exercem as funções para as quais foram destinadas, além de serem penalizadas pela força e pelo sistema.
De geração a geração a mulher torna-se mãe dos filhos, dos netos, das noras e genros e muitas vezes também do marido. As conquistas paulatinas dos espaços públicos no trabalho, na política e na sociedade não a retiraram do lar, transformando-a em um super indivíduo, adjetivada carinhosa e convenientemente como ser múltiplo e único capaz para exercer tantas funções.
O discurso enaltecedor da multiplicidade, contribui ainda mais para o seu aprisionamento ao lado do discurso de insuficiência do homem para essa função. De sorte, muitos homens ainda tentam, propositalmente, retratar essa insuficiência ao agir negligentemente com alguns cuidados para com as crianças e a anunciam como compensação do provento material que ainda, majoritariamente, fornecem. A solução não seria retorná-la exclusivamente ao jardim, mas deixá-la também na praça, desde que possa dividir de forma justa, os cuidados com o lar, sem culpas ou sanções. [1]
Quando a guarda unilateral era a regra geral na hipótese de conflito, era conferida muito mais ou quase na totalidade à mãe, considerada a “mais apta” para exercê-la no dever de representação, convivência e cuidados para com o/a filho/a, embora a lei não se referisse expressamente a mãe. Isso ainda ocorre na prática jurídica, mesmo após as leis de 2008 e de 2014 que alteraram o capítulo de proteção à pessoa dos filhos no Código Civil, primeiro para considerar a preferência do compartilhamento e depois para estabelecê-la como regra geral.
A introdução legal expressa do modelo compartilhado propôs e propõe, pedagogicamente, essa mudança cultural, porém, a cultura e idealização do feminino para a função materna ainda se reflete muito claramente na jurisprudência que retrata convivências nominadas como “compartilhadas”, mas exercidas unilateralmente com a fixação da residência materna para as crianças, o que demonstra certa ineficácia social da proposta legal. Eles e elas parecem assim desejar: menos ônus e mais poder para eles, mais ônus e menos poder para elas.
Obter a fixação da residência não é bônus e nem poder e sim ônus que se tem atribuído muito mais às mães. Homens e mulheres que foram doutrinados a pensar masculinamente fazem e aplicam a lei.
Não obstante a constatação cultural da desigualdade, é importante que a lei e a jurisprudência avancem para que a determinação do compartilhamento da guarda como regra geral seja plenamente eficaz um dia.
Assim, ao lado de conquistas e de ocupação de espaços há muita violência e subjugação. Essa história foi afetada também pelo momento histórico e mundial da pandemia pelo coronavírus, pois a paridade de gênero foi extremamente afetada, interferindo também na autonomia parental (HOLANDA,2021, p.23).
O Fórum Econômico Mundial calcula que o tempo necessário para alcançar a paridade passou de 99,5 para 135,6 anos nos últimos 12 meses. O Brasil ocupa a 93ª colocação entre 156 países. O impacto, portanto, foi muito mais negativo para as mulheres (WOLD ECONOMIC FORUM, 2021).
Os dados acima ressaltam que apesar de todo o avanço legislativo, ainda se experiencia uma prática perversa para com as mulheres, tendo em vista que se aplaudem homens por muito pouco e se condenam mulheres por qualquer coisa, fazendo de suas vidas uma existência sempre para o outro. A mulher como um importante nutriente social.
A tese do abandono afetivo foi um grande divisor de águas para se lançar um olhar menos complacente para o pai que abandona moralmente (não necessariamente, materialmente) seus filhos, sobretudo a partir de 2012, quando a terceira turma do STJ reconheceu, no julgamento do REsp. n. 1.159.242, o direito de filhos serem indenizados por pais que tenham descumprido seus deveres durante o poder familiar, no entanto, nada que se compare à condenação social de uma mãe que faça o mesmo.
No filme “A Filha Perdida” (2021), adaptado do livro de autoria da misteriosa escritora italiana, Elena Ferrante, tem-se uma mulher de meia-idade, professora universitária, que decide passar férias numa praia na Grécia, mostrando-se atormentada por uma experiência do passado.
Essa experiência que angustia sua vida desde então, sabe-se ao final da trama, foi ter deixado para trás, por três anos, suas duas filhas pequenas e seu marido, para “viver a vida”, ou seja, nada diferente daquilo que muitos pais fazem, na maioria das vezes, por períodos bem maiores, quando não, por toda a vida de seus filhos.
Ocorre que a sociedade não perdoa mães que não sejam devotadas às suas crias, nem as próprias mães se perdoam, vivendo uma eterna culpa que hoje, ganhou o nome de GAT (guilty all the time).
A matéria da revista Veja, intitulada “As Mães no Paredão” (2022) mostra como as brasileiras vivem pressionadas o tempo inteiro quanto à criação de seus filhos. Numa pesquisa feita em 28 países, incluindo o Brasil, foi concluído que 38% das mulheres, em média, se sentem permanentemente julgadas como mães, ao passo que só no Brasil esse percentual sobe para 46%
Ou seja, existem duas normativas diferentes para o exercício da parentalidade: uma jurídica e outra sociocultural.
No paralelo com o mito de Cronos, acima mencionado, pode-se dizer que o pai “deglute” seus filhos para não perder seu poder, ao passo que ele próprio, os filhos e a sociedade “devoram” as mães para sustentar uma cultura patriarcal que colide com a norma posta e com o ideal de justiça igualitária.
Pegando ainda o gancho do manifesto antropófago (1928), de Oswald de Andrade, para quem a cultura brasileira precisava “deglutir” o que era produzido no estrangeiro para criar obras nacionais originais, precisa-se urgentemente ressignificar a MATRIFAGIA SOCIAL para que mulheres tenham seus direitos assegurados (direito de gestar ou não, e gestando, de parir com dignidade, de dividir com o pai de seus filhos o exercício da parentalidade, direito de ter uma vida plena, pessoal e profissional).
Desse modo, a mãe-alimento não seria fagocitada, mas, simbolicamente, devolveria nutrientes para a outra parte da equação a fim de que, juntamente com o outro, cumpra seus atributos de maneira responsável e justa, até porque é somente assim que se aproxima do verdadeiro objetivo de auxiliar na construção e realização da personalidade de seus filhos, concretizando o princípio do melhor interesse destes e, ao mesmo tempo, conferindo maior sentido ao ideal de família eudemonista.
Catarina Almeida de Oliveira
é doutora em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE,
vice-presidente do IBDFAM/PE,
conselheira estadual da OAB/PE,
membro do Grupo de pesquisa CONREP da UFPE –
Constitucionalização das relações privadas
e professora da Universidade Católica de Pernambuco
Maria Rita de Holanda
é doutora em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE,
membro do Grupo de pesquisa CONREP da UFPE –
Constitucionalização das relações privadas,
professora da Universidade Católica de Pernambuco
e advogada.
REFERÊNCIAS
BARROS, Duda Monteiro de; FERRAZ, Ricardo. As Mães no Paredão. Revista Veja, São Paulo: Grupo Abril, edição 2775, ano 55, n. 5, pp 150-158, 9 de fevereiro de 2022
COLLIER DE MENDONÇA, M. Maternidade e maternagem: os assuntos pendentes do feminismo. Revista Ártemis, [S. l.], v. 31, n. 1, 2021. DOI: 10.22478/ufpb.1807-8214.2021v31n1.54296. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/view/54296. Acesso em: 14 fev. 2022.
FILHA Perdida, A. Direção de Maggie Gyllenhaal. EUA/Grécia: Samuel Marshall Films, 122 min, 2021, NETFLIX. Disponível em www.netflix.com, acesso em 16 de fevereiro de 2021.
HESÍODO. Teogonia [livro eletrônico]: Trabalhos e dias. Trad. Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2021.
HOLANDA, Maria Rita de. Parentalidade: entre a realidade social e o direito, Belo Horizonte: Fórum, 2021.
IBGE. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponível em:
< https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/14123-asi-censo-2010-pais-tem-declinio-de-fecundidade-e-migracao-e-aumentos-na-escolarizacao-ocupacao-e-posse-de-bens-duraveis>, acesso em 14.02.2022.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponível em < https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/taxas-de-fecundidade-total.html>, acesso em 14.02.2022.
STJ – Resp: 1.159.242 SP 2009/0193701-9, Relatora Ministra Nancy Andrigui, Data de Julgamento: 24/04/2012, T3 TERCEIRA TURMA. Data de Publicação: DJe 10/05/2012.
WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2021, disponível em: http://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2021.pdf. Acesso em: 22 abr. 2021.
NOTA
[1] Com a licença poética do saudoso professor Nelson Saldanha, autor da obra “O jardim e a praça: ensaio sobre o lado social e o lado público da vida social e histórica”.
Aprofunde-se mais sobre o tema:
Sobre “Os desafios para a mulher na contemporaneidade: entre estereótipos e objeções” as autoras deste artigo Maria Rita de Holanda e Catarina Almeida de Oliveira conversaram com o coordenador da coluna Direito Civil, Marcos Ehrhardt, no episódio 12 do FÓRUM Convida. A conversa desperta para uma análise dos estereótipos ainda não combatidos e das objeções que cercam os direitos fundamentais das mulheres.
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