De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.[1]
Como se sabe, a liberdade de expressão constitui um direito fundamental, cuja proteção se mostra essencial para a manutenção de todo e qualquer Estado Democrático de Direito. Sem ela, modalidades historicamente nefastas de censura e opressões políticas ganham espaço e o sistema democrático perde.
Com efeito, tanto a nova realidade introduzida pela pandemia da Covid-19 quanto os problemas trazidos à tona pelas últimas eleições dos países democráticos – atinentes sobretudo ao uso das redes sociais para a propagação de notícias falsas -, acabaram por criar um palco no qual a discussão acerca da liberdade de expressão atingiu um nível de atenção e relevância talvez jamais visto antes, sobretudo no universo jurídico.
Não obstante, a liberdade de expressão, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluta. Ou seja, está sujeita a limitações nas hipóteses nas quais seu exercício acabe violando outros princípios, valores constitucionais ou até mesmo direitos fundamentais, como a honra e a privacidade. Verifica-se, portanto, um constante tensionamento entre o direito dos indivíduos de expressar livremente suas opiniões em sociedade e a proteção dos direitos da personalidade daqueles para os quais essas opiniões são dirigidas.
Em regra, o Judiciário realiza a ponderação entre estes direitos fundamentais no contexto de um ambiente público. A título de exemplo, imagine as seguintes situações:
(1) “A” entra no local de trabalho de “B” e, em virtude de desentendimentos pessoais, ofende-o verbalmente chamando-o de “corn*” e “f* da p*” na presença de todos os seus clientes;
(2) “A” envia áudios no aplicativo Whatsapp para “B” acusando “C” de funcionar como o “laranja” de um terceiro, tendo em vista que “C” não possuiria condições de construir o patrimônio por ele declarado à Justiça Eleitoral, insinuando que a origem de seus bens certamente deveria ser fraudulenta.
Em um primeiro momento, apenas com base nos fatos, já é possível vislumbrar a ocorrência de lesões aos direitos de personalidade dos alvos das ofensas verbais, decorrentes de um exercício abusivo da liberdade de expressão. E o Judiciário não entende de maneira diferente. As narrativas acima, na realidade, tratam-se de casos concretos reais levados ao Judiciário[2], tendo como pedido a condenação dos ofensores ao pagamento de indenização a título de danos extrapatrimoniais decorrentes dos insultos sofridos.
Em ambos os casos, levando em consideração fatores como o teor pejorativo das palavras utilizadas, o potencial altamente lesivo das ofensas propagadas de forma virtual, a presença de terceiros no momento dos insultos e a extrapolação do mero direito de crítica ou da liberdade de expressão, os julgadores entenderam pela caracterização de dano extrapatrimonial indenizável. Ou seja, nos dois casos, a proteção da liberdade de expressão, porquanto exercida de maneira abusiva, cedeu espaço à tutela dos direitos da personalidade das pessoas ofendidas, igualmente relevantes para o ordenamento jurídico.
Agora considere as seguintes narrativas hipotéticas:
1) “A” entra em um bar e ofende verbalmente “B”, chamando-o de “corn*”, referindo-se à sua esposa como uma “biscate” e à sua filha como uma “rapariga” na frente de todos os presentes no estabelecimento no momento;
2) “A” envia uma série de mensagens em um grupo de Whatsapp afirmando que “B” é sonegador de impostos, coage seus funcionários e chegou até mesmo ao ponto de utilizar “A” como “laranja” de suas empresas.
Tendo em vista as similaridades das circunstâncias acima com aquelas dos casos anteriormente apresentados, tem-se a expectativa compreensível – razoável – de que a mesma solução antes ofertada pelo Judiciário deveria ser alcançada também aos casos em tela. Não obstante, o que acontece quando se introduz na discussão o fato de que, no primeiro caso, “A” é na verdade ex-genro de “B” e, no segundo caso, “A” é na realidade sobrinha da esposa de “B”? O Judiciário chegaria à mesma conclusão antes obtida? Ou a inclusão do elemento família na equação mudaria completamente o resultado oferecido para o problema?
Por também se tratarem de casos concretos reais levados ao Judiciário[3], não há necessidade de permanecer no campo das indagações. Em que pese a forte semelhança entre as situações fáticas, na prática o elemento família parece funcionar como uma espécie de “imunidade civil” concedida aos seus membros. Isso porque ambos os casos nos quais presentes laços familiares entre as partes foram julgados improcedentes, sob o argumento de que desentendimentos familiares, ainda que com o uso de termos pejorativos ou acusações graves, são algo corriqueiro e até mesmo esperado no cotidiano de uma família, não justificando, portanto, a incidência da Responsabilidade Civil nesse contexto.
Essa orientação jurisprudencial, contudo, não se limita a apenas esses dois casos. Com efeito, analisando-se 53 decisões extraídas de 8 tribunais estaduais, envolvendo casos concretos nos quais presente alguma espécie de relação familiar entre ofensor e ofendido, foi possível encontrar apenas 7 decisões procedentes, o que equivale a uma taxa de procedência de somente 13,2%.
A partir destas constatações, torna-se possível questionar se, afinal, seria a família um ambiente no qual insultos verbais proferidos entre seus membros estariam isentos de qualquer consequência jurídica, o que tornaria a liberdade de expressão no ambiente familiar – de maneira inédita no ordenamento jurídico – um direito, se não absoluto, com uma extensão significativamente mais ampla do que àquela existente no ambiente público.
Em outras palavras, seria possível afirmar que uma agressão verbal direcionada a um terceiro estranho ao núcleo familiar possuiria um peso ou relevância diferente para o Direito do que àquela dirigida a um membro da família? E, no caso de a resposta ser positiva, quais motivos seriam capazes de justificar esse condão do vínculo familiar de afastar a ilicitude civil ou até mesmo criminal pelos danos causados aos direitos da personalidade dos destinatários dessas ofensas?
A fim de compreender a forma pela qual a jurisprudência concilia essa interação entre o exercício da liberdade de expressão e a tutela dos direitos da personalidade, especificamente nos casos em que presentes relações familiares entre os envolvidos, optou-se por realizar, primeiramente, uma revisão bibliográfica a partir das noções fundamentais para, em um momento posterior, executar uma pesquisa de jurisprudência, sob a metodologia de levantamento jurisprudencial.
Nela, realizou-se a consulta de todas as decisões disponíveis nos sites de oito tribunais estaduais, por meio dos vocábulos “desentendimento”, “familiar” e “dano moral”, tendo sido inseridos na amostra somente os julgados em que efetivamente enfrentado o mérito da controvérsia buscada. Uma vez de posse das decisões, foi realizada a análise das razões de decidir dos acórdãos, com base nas quais restou possível obter dados intrigantes sobre o objeto da pesquisa, cujos resultados as autoras deste texto convidam os interessados no tema a conhecerem, por meio da aquisição da obra “Liberdade de expressão e relações privadas”.
Simone Tassinari Cardoso Fleischmann.
Doutora e mestra em Direito pela PUC/RS.
Professora permanente no programa de mestrado e doutorado
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Advogada, Mediadora, autora de livros e publicações jurídicas.
Eduarda Victória Menegaz dos Santos.
Bacharelanda em Direito pela UFRGS.
Membro do grupo de pesquisas Cnpq/UFRGS:
Núcleo de estudos e pesquisa em Direito Civil-constitucional,
Família, Sucessões e Mediação de Conflitos.
Notas:
[1] ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 08 jun. 2021.
[2] Caso 1: TJSP, Apelação Cível 1019696-57.2018.8.26.0007, Rel.: Des. Edson Luiz de Queiróz, 9ª Câmara de Direito Privado, j. 21.07.2020, publicado em 21.07.2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=13770208&cdForo=0. Acesso em: 08 jun. 2021.
Caso 2: TJSP, Apelação Cível 1004168-98.2017.8.26.0077, Rel.: Des. Erickson Gavazza Marques, 5ª Câmara de Direito Privado, j. 16.12.2020, publicado em 16.12.2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=14240075&cdForo=0. Acesso em: 08 jun. 2021.
[3] Caso 1: TJSP, Apelação Cível 0000469-91.2013.8.26.0357, Rel.: Des. Alexandre Lazzarini, 9ª Câmara de Direito Privado, j. 15.03.2016, publicado em 16.03.2016. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=9272330&cdForo=0. Acesso em: 08 jun. 2021.
Caso 2: TJRS, Apelação Cível 70082920109, Rel.: Des. Lusmary Fatima Turelly da Silva, 5ª Câmara Cível, j. 18.12.2019, publicado em 23.01.2020. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/buscas/jurisprudencia/exibe_html.php. Acesso em: 08 jun. 2021.
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