Dever de negociar e o dever de pagar/indenizar os honorários contratuais e sucumbenciais | Coluna Direito Civil

15 de junho de 2021

 

  1. INTRODUÇÃO

Certo dia, um dileto amigo me ligou e, atônito, me disse:

– Recebi uma citação em uma ação reivindicatória envolvendo um imóvel de cem milhões de reais, que, por algum erro, estava em nome de um parente meu. Ninguém me contatou antes. Se tivessem falado comigo antes, eu cederia, pois não tenho interesse algum no bem nem acho que eu teria direito sobre ele.

O amigo, após relatar já ter contratado um advogado apenas para concordar com o pedido inicial, finalizou indagando:

– Eu terei de pagar 10% de honorários sucumbenciais (leia-se: 10 milhões de reais)? Eu posso pedir o reembolso do que paguei de honorários contratuais (algo em torno de 10 mil reais)?[1]

Não estamos a falar de quantia de somenos importância.

Numa análise mais apressada, alguém diria que já poderíamos preparar um Réquiem em razão do inevitável passamento financeiro do meu amigo, pois o art. 90 do Código de Processo Civil textualmente sentencia: “Proferida sentença com fundamento em (…) reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que (…) reconheceu”.

Esse mórbido arauto do iniludível[2] talvez anunciasse que essa morte poderia ser 50% menos trágica com base no § 4º do art. 90 do CPC: “Se o réu reconhecer a procedência do pedido e, simultaneamente, cumprir integralmente a prestação reconhecida, os honorários serão reduzidos pela metade”.

Reduzir para 5 milhões os honorários sucumbenciais à luz dessa gentileza legal não obstariam o sepultamento financeiro desse amigo.

Os 10 mil reais de honorários “gastos” com a contratação do advogado, apesar de, isoladamente ser um grande prejuízo, tornam-se uma simples “gorjeta” diante do assombro daquela quantia milionária.

Entendemos, porém, que o vaticínio açodado acima não prospera. Alguns fundamentos de Responsabilidade Civil e de Teoria Geral de Direito têm o condão de “virar a mesa”, transformando o temor da morte financeira em uma celebração da vida.

 

  1. Fundamentos do dever de pagar/indenizar honorários sucumbenciais e contratuais

Os honorários contratuais são os valores pagos pela parte ao seu advogado a fim de este patrocine seus direitos em juízo. Na hipótese de vitória no processo, indaga-se: a parte derrotada teria ou não de indenizar a parte vencedora pelo dano material sofrido com esse desembolso?

Esse dever de indenizar representa uma discussão de Responsabilidade Civil, pois envolve uma pretensão reparatória.

Em Responsabilidade Civil, ao contrário do que muitos inadvertidamente propalam, não é por que alguém sofreu um dano que terá direito a ser indenizado. Há necessidade da presença de um requisito essencial: a ilicitude do ato causador do dano[3]. A responsabilização civil decorre, em regra, de um ato ilícito! A exceção corre à conta apenas das hipóteses legalmente previstas de responsabilidade civil por ato ilícito[4]. Nesse sentido, podemos invocar a autoridade do professor Flávio Tartuce[5] bem como dos professores Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe P. Braga Netto[6], além dos professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[7] e do professor Paulo Roque Khouri[8].

Diante disso, indaga-se: há ou não ato ilícito em propor uma ação judicial contra outrem sem prévia tentativa de negociação na hipótese em que o réu reconhece o pedido na sua primeira manifestação nos autos? A resposta virá no próximo capítulo.

Em relação aos honorários sucumbenciais, eles nascem por força do CPC como uma obrigação da parte sucumbente em favor dos advogados da outra parte. Formalmente, nos moldes em que foram talhados pelo CPC, os honorários sucumbenciais não é uma indenização (Responsabilidade Civil), e sim uma obrigação (Direto das Obrigações) nascida em favor do advogado. O requisito essencial para o nascimento dessa obrigação é apenas um: o princípio da causalidade. Quem tiver dado causa à ação judicial tem de indenizar.

A pergunta de um milhão de dólares é: quem dá causa a uma ação judicial na hipótese de esta ter sido proposta sem prévia tentativa de negociação prévia e de o réu reconhecer o pedido na contestação?

Essa e a anterior pergunta são o alvo do próximo capítulo.

 

  1. Dever de negociação e sua repercussão na questão dos honorários

As duas perguntas lançadas no capítulo anterior se resumem nesta: quem tem de, no final das contas, suportar financeiramente as despesas com honorários contratuais e sucumbenciais na hipótese de ação judicial proposta sem tentativa prévia de negociação e na qual o réu reconhece o pedido na sua primeira manifestação nos autos?

A resposta, ao nosso sentir, decorre, ainda que indiretamente, do conceito de dever jurídico de renegociar” (ou de negociar), desvelado pelo talento do jurista Anderson Schreiber na tese que lhe alçou a catedrático de direito civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ[9]. A paradigma tese do genial civilista carioca atapeta diversas frentes de estudos e, inclusive, ilumina a questão em pauta. Entre vários artigos inspirados no conceito de Schreiber, chamamos a atenção para a brilhante reflexão do professor carioca Marco Aurélio Bezerra de Melo acerca do dever de renegociar como uma condição de procedibilidade de ações revisionais ou de resolução contratual[10].

No que importa a esse texto, temos que é viável extrair do conceito acima que há um dever jurídico, sustentado na boa-fé objetiva, de que o titular de um direito adote condutas cooperativas para tentar uma composição antes de adotar a medida drástica da propositura de uma ação judicial. Trata-se de um dever jurídico, cuja violação configura um ato ilícito.

Contra esse ato ilícito o ordenamento jurídico dispõe de remédios[11] e, entre eles, estão o dever de indenizar e, em âmbito processual, as consequências de ter sido o causador de uma demanda judicial.

Enfim, entendemos que, na hipótese de alguém ajuizar ação judicial sem prévia tentativa de contato com o réu  (de modo a permitir que este renegocie ou, ao menos, apresente sua rendição incondicional), se o réu reconhecer o pedido na sua primeira manifestação nos autos, o autor da ação, apesar de vitorioso no feito judicial, terá incorrido em ilícito civil a credenciar a sua condenação: (1) a indenizar o dano material suportado pelo réu com os honorários contratuais[12]; e (2) a arcar com os honorários sucumbenciais por ter sido o causador da demanda, tudo à luz do princípio da causalidade que guia a obrigação de pagar as verbas sucumbenciais. É claro que esse entendimento não se aplica a hipóteses de comprovada inviabilidade de tentativa de composição extrajudicial (ex.: indisposição expressa do réu em conversar, inviabilidade de localizar o réu etc.).

Essa é adequada interpretação do art. 90 do CPC.

Em relação aos honorários sucumbenciais, reforce-se: vitória na ação judicial não significa direito a honorários sucumbenciais! É viável que o vencedor seja condenado a pagar os honorários sucumbenciais se tiver causado a ação, a exemplo do caso da Súmula nº 303/STJ[13].

No caso de a Fazenda Pública ser a ré em ação judicial, tendo em vista o seu engessamento extrajudicial por conta das regras de Direito Administrativo, o legislador, com a bênção da jurisprudência, preferiu isentar ambas as partes de suportar os honorários sucumbenciais na hipótese de reconhecimento do pedido pela Fazenda na sua primeira manifestação nos autos[14]. Não discutiremos aqui eventual viabilidade de contemporização dessa interpretação, porque o eixo da discussão mudaria do art. 90 do CPC para outro dispositivo (o art. 19, § 1º, I, da Lei nº 10.522/2002).

 

  1. Conclusão

Há esperança para o meu dileto amigo.

Os 10 mil reais que ele desembolsou com a contratação de advogado para reconhecer judicialmente o pedido têm de ser indenizados pelo açodado autor da ação milionária.

E, principalmente, diante do fato de que esse precipitado litigante causou a demanda, o terror fantasmagórico dos 10 milhões reais de honorários sucumbenciais será exitosamente exorcizado pelo Judiciário e se transformará em um passaporte para Pasárgada, Eldorado, Shangri-la, Uqbar, Atlântida, Maracangalha[15] ou algum outro paraíso lendário com o qual Umberto Eco, Alberto Manguel e Gianni Guadalupi[16] nos fazem sonhar. Ao menos, é o que esperamos[17].

 


Carlos E. Elias de Oliveira

é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB.
Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos
na Universidade de Brasília-UnB, na Fundação Escola Superior do MPDFT-FESMPDFT
e em outras instituições em SP, GO e DF.
Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil. Advogado/Parecerista.

 

Notas
[1] Para fins didáticos e de preservação do anonimato, fiz alguns pequenos ajustes na história.
[2] Manoel Bandeira, no seu belo poema “Consoada”, nominava de “iniludível” o evento futuro e certo que, em algum momento, nos recolherá.
[3] Nesse aspecto, defendemos que a dúvida jurídica razoável pode ser uma excludente (ou um atenuante) de responsabilidade civil por afastar ou “mitigar” a ilicitude (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/direito-civil-atual-coronavirus-responsabilidade-civil-honorarios-sucumbenciais. Publicado em 10 de abril de 2020).
[4] Exemplos: (1) danos causados a terceiros em estado de necessidade ou legítima defesa ocasionadas por alguém (arts. 929 e 930 do Código Civil – CC); e (2) responsabilidade objetiva (ex.: art. 927, parágrafo único, CC).
[5] “O ato ilícito que interessa para os fins da responsabilidade civil, denominado por Pontes de Miranda como ilícito indenizante, é o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica violando direitos e causando prejuízos a outrem. Diante da sua ocorrência, a. norma jurídica cria o dever de reparar o dano, o que justifica o fato de ser o ato ilícito fonte do direito obrigacional.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 356-357).
[6] “(…) conceituamos a responsabilidade civil como a reparação de danos injustos resultantes da violação de um dever geral de cuidado. (…) Diga-se, por necessário, que o núcleo da. responsabilidade civil reside no inexorável pressuposto do dano injusto que possa ser imputado a uma pessoa. (…) a obrigação de indenizar é somente uma das eventuais consequências de um ilícito civil” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016).
[7] “(…) a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 39).
[8] Ao se tratar de hipóteses de responsabilidade objetiva do consumidor (um exemplo de responsabilidade civil por ato lícito), é icônica a obra do nobre professor (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2013).
[9] SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[10] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325543/por-uma-lei-excepcional-dever-de-renegociar-como-condicao-de-procedibilidade-da-acao-de-revisao-e-resolucao-contratual-em-tempos-de-covid-19. Publicado em 27 de abril de 2020.
[11] Em cativante palestra no IDP/DF em agosto de 2019, o jurista Nelson Rosenvald explicitou uma classificação de atos ilícitos e de remédios empregada no direito britânico com base nas obras de Peter Birks. Tivemos a oportunidade, de com adaptações e com base nas obras desse jurista britânico e de James Goudkamp, elencar os ilícitos civis e os remédios neste artigo: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida Jurídica Razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, pp. 1-19, jan. abr/2020 (Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/102/83).
[12] Não ignoramos que a tendência do STJ, em regra, rejeitar indenização por honorários contratuais com fundamento na ausência de ilicitude por haver exercício regular de direito e por já existirem os honorários sucumbenciais (STJ, EREsp 1.155.527, 2ª Seção, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 28/06/2012). Apesar de termos ressalvas quanto a esse entendimento e – nesse ponto – reportamo-nos a artigo do professor Atalá Correia (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-07/direito-civil-atual-reaver-gastos-honorarios-advocaticios-contratuais-gera-duvida. Publicado em 7 de dezembro de 2015), o fato é que a situação tratada neste artigo é TOTALMENTE DIFERENTE da enfocada naqueles julgados. Aqui estamos a cuidar de açodadas ações judiciais sem prévia tentativa de diálogo.
[13] Súmula nº 303/STJ: “em embargos de terceiro, quem deu causa à constrição indevida deve arcar com os honorários advocatícios”,
[14]Veja este julgado do STJ: “O STJ, por ocasião do julgamento do AgInt no AgInt no AREsp 886.145/RS, DJe 14.11.2018, firmou a seguinte compreensão: ‘De acordo com a atual redação do inciso I do § 1º do art. 19 da Lei 10.522/2002, que foi dada pela Lei 12.844/2013, a Fazenda Nacional é isenta da condenação em honorários de sucumbência nos casos em que, citada para apresentar resposta, inclusive em embargos à execução fiscal e em exceções de pré-executividade, reconhecer a procedência do pedido nas hipóteses dos arts. 18 e 19 da Lei 10.522/2002’” (STJ, REsp 1815764/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 10/09/2019)
[15] Em homenagem ao perpetuamente mestre Dorival Caymmi.
[16] Umberto Eco foca em lugares que não teriam sido “inventados” na sua obra “História das Terras e Lugares Lendários”, à diferença de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi no seu “Manual dos lugares fantásticos”.
[17] O STJ ainda não enfrentou especificamente o argumento ora defendido neste artigo, mas apenas casos em que realmente o art. 90 do CPC seria aplicáveis (aqueles em que se frustrou ou era inviável uma tentativa extrajudicial prévia de composição) ou em que, diante do limitado efeito devolutivo do recurso especial, a parte não suscitou o argumento ora alinhavado.

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