Juliana Bonacorsi de Palma[1]
Rafael Véras de Freitas[2]
A pandemia de Covid-19 trouxe não apenas uma infinidade de questionamentos jurídicos inéditos e desafiadores, mas escancarou uma verdade que há tempos relutamos: precisamos revisitar com urgência vários institutos que informam o modelo de concessões no Brasil. As concessões são hoje intensamente debatidas no campo doutrinário e na prática profissional, mas este debate ainda é limitado a certo conjunto de temas, como o equilíbrio econômico-financeiro e garantias. Outros temas, embora estruturantes de um bom modelo de concessões, ficaram negligenciados ao longo do tempo. Com isso, premissas obsoletas se consolidaram com efeitos imediatos sobre a eficiência do objeto contratual.
Há tempos o regime jurídico sancionador de contratos de concessão, previsto na Lei n°8.987/1995, necessita ser substancialmente reformado. A começar pela superação do paradigma da Lei n.º 8.666/93 no desenho das cláusulas sancionatórias. A bem da verdade, para os próprios contratos administrativos regidos pela Lei n.º 8.666/93 a disciplina sancionatória é inadequada; quando projeta à realidade das concessões, os efeitos são desastrosos. Isso porque a lógica formalista, punitivista e de extrema desconfiança da Lei n.º 8.666/93 não se compatibiliza com a lógica das concessões, per se um contrato relacional de longo prazo, que terá o seu regime jurídico colmatado no tempo (em razão dos custos de transação que impõe a sua incompletude deliberada)[3].
Quando aplicadas no âmbito de um regime regulatório[4], essas sanções, geram profundas distorções, inviabilizando a necessidade de se equilibrar interesses enredados em um subsistema jurídico-econômico. São notas características que poderão ser ainda mais deletérias no cenário pós-pandemia. É que, durante o período de exceção, o concessionário estará impedido de cumprir com suas obrigações contratuais, seja por conta da perda de demanda (decorrente o isolamento social), seja em razão das medidas sanitárias de polícia impostas pelo Poder Público. A premissa da sanção como instrumento redistributivo, pautada em um viés, tão somente, retrospectivo (backward-looking), já é inoperável. Mais que isso, a aplicação de sanções administrativas, com um viés microscópico, desconsiderando a prospecção de suas consequências (forward-looking), sugere a produção de efeitos negativos sistêmicos.
Cabe ao regulador prospectar os seus efeitos do exercício de sua competência sancionatória, aferindo as reais consequências das sanções que porventura venha a aplicar. E, mais que isso, fiscalizar os seus resultados. Nesse novo contexto, o sistema sancionador deve mirar para uma reforma na qual o enforcement passe a conviver, harmonicamente, com a soft regulation. É dizer, no qual o exercício do poder extroverso unilateral ceda espaço para incentivos para colaboração. Isso não apenas pelas disfuncionalidades do clássico mecanismo de enforcement, notadamente seu baixo efeito simbólico para prevenção de novos ilícitos, mas porque a sanção é um autêntico instrumento regulatório, que pode fazer muito mais pela concessão. A começar na mitigação de comportamentos oportunistas em prol de maior engajamento do regulado, sempre benéfico na manutenção do vínculo relacional de longo prazo.
De acordo com esse racional, lastreado por uma regulação responsiva[5], poder-se-á adotar a implementação de pirâmides regulatórias como método de dosimetria. A principal diferença com relação às dosimetrias adotadas está na consideração da conduta das partes e aspectos institucionais, e não apenas a conduta isoladamente, para determinar a medida da repressão. Isso significa que um mesmo ato ilícito pode receber sanções absolutamente distintas a depender do grau de comprometimento do regulado com a regulação (esquema regulatório tit-for-tat). A regulação responsiva tem o mérito de promover o engajamento dos regulados no longo prazo, com maiores índices de cumprimento das metas contratuais e de observância das regras, bem como investimento em programas efetivos de compliance.
Em termos de estrutura, sua base seria composta por medidas persuasivas mais brandas (a exemplo de notificações) e gradualmente se intensificaria, passando por multas leves e multas pesadas, até alcançar o seu vértice, com a medida mais gravosa de todas: a exclusão do regulado (no caso, a caducidade). De acordo com esse modelo de sanção reguladora, as partes (regulador e concessionária) seriam jogadores, que teriam o desiderato de reduzir os seus custos: o regulador teria o interesse em incrementar o cumprimento da regulação, ao passo que os concessionários teriam o interesse precificar o cumprimento da regulação.
Daí que, de acordo com o sistema proposta, para além da implementação de uma regulação responsiva, deve se mirar na construção de um sistema sancionador arvorado no racional da Law and Economics, por intermédio do qual cumprir a regulação seja, economicamente, mais vantajoso para o infrator do que sofrer a sanção administrativa – ou ao, menos, que os custos de tal descumprimento sejam por ele internalizados[6].
Não se trata de um sistema sancionador de todo novidadeiro. Assim, por exemplo, cite-se o disposto no art. 5° da Resolução ANAC n°472/2018, por intermédio do qual se estabelece uma dinâmica “de providências administrativas”, que são exigidas do regulado antes da aplicação de uma sanção. Também no âmbito da ANTT se verifica a possibilidade de correção da conduta reputada infracional sem a instauração de processo administrativo sancionador pela lavratura do Termo de Registro de Ocorrência – TRO. Outro exemplo corresponde aos alertas e notificações que são enviados à concessionária para sanar as irregularidades, instaurando-se o processo sancionador apenas se as correções não forem satisfeitas, sistema de persuasão que teve lugar, pela inclusão dos institutos do step-in rights e do Acordo Tripartite (direct agreement), no âmbito das modelagens veiculadas pela ARTESP.
Assim, lastreados em todo o exposto, podemos sumariar, em proposições objetivas, os característicos que poderiam nortear um sistema sancionador em concessões, num cenário pós-pandemia: (i) em primeiro lugar, tratar-se-ia de um sistema sancionador que venha a considerar os impactos provocados pela pandemia no cumprimento das obrigações de desempenho e de investimento pelo concessionários; (ii) a partir de tal perspectiva, seriam estipulados prazos, dentro dos quais os concessionários teriam de normalizar o cumprimento de tais obrigações, só após o que se poderia cogitar do estabelecimento qualquer sanção; (iii) considerando perda de demanda provocada pela Covid-19, a aplicação de sanção de multas se mostrará ainda mais ineficiente, diante do que o mais eficaz seria o estabelecimento de incentivos premiais, que tenham por consequência o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato ou novos investimentos; e (iv) também nesse linha, a despeito de não se tratar, tecnicamente, de sanções, deverão ser estabelecidos prazos, dentro dos quais os redutores tarifários (Fatores D, C e X) deverão restar suspensos e até anistiados, de modo a propiciar que os concessionários possam retomar o cumprimento de suas obrigações, evitando-se soluções de continuidade de serviços públicos.
Se punir já não era um meio eficaz em ambientes regulados, depois da pandemia, com muita mais razão, caberá mensurar com substancial grau de evidência e consequencialismo o exercício de competências sancionatórias. Na qualidade de instrumento regulatório, a sanção pode ser mais que um simples inibidor de irregularidades. Como ensina a regulação responsiva, a sanção pode ser um importante mecanismo de engajamento do regulado, otimizando o serviço público objeto da concessão, em total superação dos paradigmas da Lei n.º 8.666/93.
[1] Professora da FGV Direito SP e Coordenadora do Grupo Público. Mestre e Doutora pela Faculdade de Direito da USP. Master of Laws pela Yale Law School. Visiting Scholar pela Washington College of Law – American University. Colaboradora da SBDP.
[2] Professor do LLM em Direito da Infraestrutura da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado.
[3] HART, Oliver. Overcoming Contractual Incompleteness: The Role of Guiding Principles. p. 27. Disponível em: <https://scholar.harvard.edu/hart/publications/overcoming-contractual-incompleteness-role-guiding-principals> Acesso em 15/03/2020) Da mesma forma, (HART. Oliver. Overcoming Contractual Incompleteness: The Role of Guiding Principles. Op. Cit. p. 5.)
[4] V. PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015. PALMA, Juliana Bonacorsi de. Processo regulatório sancionador e consensualidade: análise do acordo substitutivo no âmbito da Anatel. Revista de Direito de Informática e Telecomunicações – RDIT, Belo Horizonte, ano 5, n. 8, p. 7-38, jan. /jun. 2010
[5] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Nova York: Oxford University Press, 1992.
[6] BECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach. In: BECKER, Gary S.; LANDES, William M. Essays in the economic of crime and punishment. 1974.
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Fabíola C N Sampaio disse:
Excelente artigo. Parabéns aos autores. Há tempos precisamos discutir com coragem e responsabilidade as cláusulas sancionatórias nos contratos de concessão no Brasil. O q se deve priorizar é o atendimento ao cidadão, prestando um serviço de qualidade, sempre.