Coronavírus, equilíbrio econômico-financeiro em concessões, dever de renegociar: quem paga a conta pela Teoria da Imprevisão? | Coluna Direito da Infraestrutura

6 de abril de 2020

Vivencia-se uma das maiores crises sanitárias do mundo em razão da pandemia provocada pelo novo Coronavírus “COVID-19”. Trata-se de uma crise de saúde pública, que importará em deletérios efeitos econômicos para toda a sociedade, especialmente por estar no isolamento social, no atual quadrante, o seu principal antídoto. Diante disso, o poder público, atendendo às determinações da Organização Mundial de Saúde – OMS, expediu uma miríade de normativos sanitários, com o desiderato de evitar o crescimento da curva de propagação da pandemia.

Nas concessões de infraestrutura, tal impacto será bem saliente, considerando o fato de que, em regra, os custos afundados no ativo (sunk costs), em estruturas qualificadas como monopólios naturais, predicam, justamente, da sua amortização pelos recebíveis do projeto – gerando economias de escala e de escopo. A lógica é simples: com a manutenção dos custos marginais para a operação dos ativos aliada à redução da demanda, os projetos de infraestrutura, no curto prazo, se tornarão deficitários.

É inequívoca, na presente hipótese, a configuração de um evento imprevisível, de consequências incalculáveis, a ensejar o reequilíbrio pleno dos contratos de concessão explorados pelas Concessionárias, nos termos do art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/1993 (dispositivo aplicável, supletivamente, às concessões).

De fato, o mais simples seria reconduzir o tema à Teoria da Imprevisão, que, aplicada, acriticamente, importaria na transferência para o poder concedente de todos os impactos econômicos provocados pela pandemia. Mas não podemos esquecer que o poder público é uma ficção jurídica. O Estado somos todos nós, que financiamos a máquina pública, direta ou indiretamente.

Razão pela qual tenho que a tese da Teoria da Imprevisão, posta dessa forma, produzirá externalidades negativas sistêmicas. Haverá a produção de uma falha de mercado decorrente de “problemas de coordenação”.

Veja-se: nessas hipóteses, caso os agentes, de forma racional, visem, apenas, a maximizar seus interesses particulares (sob uma perspectiva microscópica), a coletivização de suas ações no mercado (sob um aspecto macroeconômico), provocará resultados desfavoráveis para os próprios agentes.

Exemplos triviais ilustram o ponto: embora todos nós gostemos de andar com nossos próprios carros, se ninguém observar o rodízio de trânsito em São Paulo, todos ficaremos presos no engarrafamento; embora todos precisem empreender, se ninguém respeitar as normas ambientais, todos serão prejudicados pela destruição do planeta. E, para o aqui importa, embora todos os contratos de infraestrutura estejam sendo impactados pela redução da demanda e pelo incremento de custos, se todos os concessionários se valerem da Teoria de Imprevisão, para fins se reequilíbrio, todos os contratos se tornarão inexequíveis.

Não é por outra razão que a Teoria da Imprevisão não vem sendo mais aplicada em modelos de contratos de infraestrutura que se valem de uma Regulação Contratual (Regulation by Contract). Cuida-se de um modelo de regulação que tem lugar pelo estabelecimento, ex ante, após a realização do leilão (Competition for the Market), dos custos que serão incorridos pela firma (o que a diferencia da Regulação Discricionária). Em resumo, essa modalidade de regulação contratual estabelece, desde a modelagem inicial, uma variação do preço obtido no âmbito do procedimento licitatório: (i) pelo reajuste anual; (ii) pelo estabelecimento de uma adequada matriz de riscos contratuais; (iii) pelo estabelecimento de níveis qualitativos de serviços; (iv) pela previsão de obrigações de investimentos, dentre outros arranjos contratuais.

Essa modalidade regulação vem sendo adotada, por exemplo, nas concessões de rodovias e de aeroportos, nas quais são previstas exaustivas matrizes de riscos contratuais, o que restringe muito a aplicação da Teoria da Imprevisão.

Assim, por exemplo, cite-se a hipótese (que já está ocorrendo) de uma alteração abrupta do câmbio que venha a ter lugar pelo advento da pandemia provocada pelo Coronavírus. Alguém duvidaria de que se trata de um evento albergado pela Teoria da Imprevisão, que poderá provocar a onerosidade excessiva de contratos de concessão (especialmente se o projeto tiver sido financiado por organismos internacionais)?

Mas isso não significa que o concessionário, necessariamente, tenha direito ao reequilíbrio de seu contrato. É que, contrariando as diretrizes do Global Infrastructure Hub, os riscos cambiais, salvo exceções presentes em modelagens mais novidadeiras, a exemplo da Concessão n° 01/2019 (Concessão do Lote Pipa) –, têm sido integralmente transferidos para os concessionários em contratos de concessão.

Cite-se, nesse sentido, a Cláusula 5.6.10 do Contrato de Manutenção e Exploração dos aeroportos integrantes dos Blocos Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, que atribuem ao concessionário o risco pela “variação das taxas de câmbio”. E, no mesmo sentido, a Cláusula 21.1.14, do Contrato de Concessão n° 006/2013, da 3ª Fase do PROCROFE, a qual aloca o risco de “variação das taxas de câmbio” ao concessionário.

Nas concessões de rodovias mais recentes, para além de uma matriz de riscos contratuais que delimita a aplicação de tal teoria, o art. 2°A da Resolução ANTT nº 675/2004 prescreve que “Nas revisões extraordinárias serão consideradas as repercussões, decorrentes, única e exclusivamente, de fato de força maior, ocorrência superveniente, caso fortuito, fato da Administração, alteração unilateral do contrato, ou fato de príncipe que resultem, comprovadamente, em alteração dos encargos da concessionária”. (Grifos Postos). Isso quer significar que, à luz da regulação contratual delineada nas normas setoriais, os efeitos decorrentes da Teoria da Imprevisão só poderão ser invocados, pelo concessionário, para fins de reequilíbrio, em sede de Revisão Extraordinária.

Daí o cuidado adicional em se manejar a Teoria da Imprevisão no meio desta pandemia. É dizer, a boa-fé, que deve nortear as relações entre poder concedente e concessionário, impõe outras ordens de soluções imediatas.  A questão é séria, grave e nunca vivenciada, em contratos de infraestrutura. De fato, o que se impõe é uma solução equilibrada e consensual, que possa estabelecer o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Num contexto como o atual, nada mais correto do que os ensinamentos de Oliver Hart (vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2016, ao lado do economista finlandês Bengt Holmström)[1], no sentido de que, no âmbito de contratos incompletos, seria mais eficiente às partes celebrar contratos flexíveis, possibilitando a sua renegociação a posteriori. Tal modelo consistiria no estabelecimento de um ponto de referência, um parâmetro fixo, ex ante, e de variáveis, a serem preenchidas, ex post.[2].

Especificamente a propósito dos contratos de concessão, o referido autor afirma que tais ajustes são, por excelência, marcados por espaços de incompletude. Isso porque, a seu ver, malgrado as disposições contratuais, abre-se um espaço de incompletude na sua execução que engloba todos os possíveis caminhos a adimpli-lo[3]. Nesse quadrante, uma das soluções propostas por Hart, para se colmatar o preenchimento dessas lacunas, seria a adoção de uma metodologia de renegociação, lastreada em princípios ou parâmetros interpretativos[4].

Assim é que, no atual cenário de crise provocado pelo Coronavírus, exsurge o que Anderson Schreiber denomina por “dever de renegociar[5]”. De acordo com o referido autor, “afigura-se não apenas possível, mas imperativa a construção (rectius: o reconhecimento) de um dever de renegociação de contratos desequilibrados, como expressão do valor constitucional da solidariedade social, bem como de normas infraconstitucionais daí decorrentes, em particular a cláusula geral da boa-fé objetiva”. Esse dever de renegociar contratos desequilibrados tem lugar, no direito brasileiro, com a consagração de “valores éticos às contratações” (quando da edição do CC de 2002 e do CDC), de modo que o contrato passa a se converter em uma relação dinâmica, que se encontra funcionalizada a objetivos comuns. Cuida-se, pois, do que a doutrina especializada denomina de “deveres anexos contratuais”.

Assim, sem tomar partido de concessionárias ou do poder público, essa situação faz nascer um regime de renegociação de Contratos de Infraestrutura. Por intermédio desse regime, instaurar-se-ia uma espécie de fluxo de caixa marginal atrelado à pandemia. Nesse quadrante, as perdas de receitas e os incrementos dos custos deverão ser sopesados vis-à-vis os elementos econômicos dos contratos de concessão.

Desse modo, por intermédio da celebração de um Termo Aditivo disciplinador da relação jurídica excepcional (um direito transitório, por assim dizer), podem ser manejadas as seguintes variáveis econômicas: pelo incremento do prazo do contrato; pela redução das obrigações de investimentos; pela alteração dos efeitos econômicos dos descumprimentos das obrigações de desempenho na remuneração da concessionária (com a alteração dos Fatores X, D e C). Bem-vinda serão as novas ideias. Que tal alterar o percentual das receitas extraordinárias que é destinado à modicidade tarifária? Ou reverter as penalidades pecuniárias aplicadas às concessionárias, no âmbito de um acordo substitutivo, para a restruturação econômica da concessão? Ou, em concessões que estão se encerrando, será que não seria possível alterar a metodologia indenizatória pelos investimentos realizados em bens reversíveis não amortizados? Vamos pensar juntos? Se todo mundo pensar que vai sair ganhando, todos sairemos perdendo.

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[1] MAIJA, Halonen-Akatwijuka; HART, Oliver. More is Less: Why Parties May Deliberately Wrtie Incomplete Contracts. National Bureau of Economic Research Working Paper nº 19001, 2013. Disponível em: <https://www.nber.org/papers/w19001> Acesso em 15/03/2020)

[2] HART, Oliver; MOORE, John. Contracts as Reference Points. The Quaterly Journal of Economics. Vol. CXXIII; February 2008.

[3] HART, Oliver. Incomplete Contracts and Public Ownership: Remarks, and the Application to Public-Private Partnerships. Harvard. The Economic Journal, Vol. 113, No. 486, Conference Papers (Mar., 2003).

[4] HART, Oliver. Overcoming Contractual Incompleteness: The Role of Guiding Principles. p. 27. Disponível em: <https://scholar.harvard.edu/hart/publications/overcoming-contractual-incompleteness-role-guiding-principals> Acesso em 15/03/2020) Da mesma forma, (HART. Oliver. Overcoming Contractual Incompleteness: The Role of Guiding Principles. Op. Cit. p. 5.)

[5] SCHREIBER, Anderson. Construindo um dever renegociar no Direito Brasileiro. Revista Interdisciplinar de Direito da Valença. v.16, n°1, 2018, p. 13-12.

 

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