Em tempos em que os diversos meios de comunicação cuidam de divulgar as ainda praticadas manifestações sexistas de desvalorização do gênero feminino, o presente artigo cuidará, pois, da divulgação daquelas cuja prática acontece de forma, por muitos, imperceptível.
Quem nunca presenciou a corriqueira cena de pais, mães e adultos em geral que, diante de crianças ainda de colo tecem seus inocentes, mas nada igualitários comentos acerca de meninos e meninas?
Enquanto ao menino são frequentemente lançados apelidos referentes a um insaciável bezerrinho forte que muito mama, à menina, não raras vezes, cabem os incentivos à beleza e ao comedimento. Assim cresce a “princesinha” da família, saciando-se cuidadora de bonecas-filhas, em meio a espaços limitados de casinhas-lares e a adjetivos que vão forjando a mocinha que desde cedo deve fechar as pernas e portar-se com bons modos. Em outro berço cresce aquele que, com perninhas orgulhosamente abertas a exibir as anunciadas grandes “ferramentas”, passará a “capetinha”, correndo incontido com seus carrinhos desbravadores de maiores espaços.
O problema da discriminação remonta à mais tenra infância, quando meninas e meninos começam a receber tratamentos diferenciados. A ideia de que a mulher precisa de maior proteção é ainda tão forte que, quando uma menina age de forma a ameaçar sua própria segurança, ela é prontamente protegida. Dizer que a proteção é dirigida somente às meninas não é dizer a realidade, mas é inquestionável que há diferenças marcantes na proteção de ambos os sexos. A mulher é visivelmente tratada como um ser mais necessitado de cuidados. Os bebês do sexo feminino são mais carregados e menos vigorosamente manuseados que os bebês do sexo masculino. As meninas são consideradas mais frágeis. É comum os pais de meninas exibirem apreensão quanto à segurança de suas filhas antes mesmo de elas deixarem o berço.
Estudos indicam que os pais estabelecem uma distinção de sexo ao interpretarem o choro de seus bebês. O choro de uma mesma criança foi interpretado como manifestação de raiva pelos pais que o acreditavam vindo de uma criança do sexo masculino, e como manifestação de medo por aqueles que pensavam haver uma menina a chorar.
Os pais respondem diferentemente ao choro de suas crianças. Quando as meninas choram, mostram-se mais prontos a interromper o que estão fazendo, para confortá-las. O choro dos bebês do sexo masculino é mais frequentemente ignorado. Outro ponto registrado é o de que o contato dos pais com um bebê irritado aumenta se o bebê é uma menina e diminui se é ele um menino, ainda que a irritação do bebê do sexo masculino seja mais intensa que a do bebê do sexo feminino.
Após alguns meses a criança começa a engatinhar, a levantar-se no berço e a ensaiar seus primeiros passos. Os feitos infantis atingem os pais com um misto de satisfação e angústia, pois o desenvolvimento do bebê trará os riscos das quedas e do contato com objetos variados. Mas estes perigos não assumem caráter tão trágico e vívido na imaginação dos pais se o bebê é um menino. A preocupação que acompanha os primeiros movimentos da criança é maior sendo ela uma menina. Esta indicação de ansiedade por parte dos pais leva a criança a duvidar de sua própria competência.
É considerada excessiva a ajuda dos pais de meninas que, em situações em que elas não precisam de suporte, dispõem-se aflitos a ampará-las, no intuito de evitar possíveis quedas. Isto porque o processo da recuperação do equilíbrio corporal da criança está intimamente ligado à estruturação da confiança e da autoestima. A criança deve, pois, aprender a aprumar-se por si mesma.
O rótulo de fragilidade que qualifica a menina atinge também sua esfera de agressividade, controlando-a. A agressividade em questão é aquela que move alguém em direção a um fim, que impele, que motiva. A Psicologia a vê como necessária, considerando agressivos os indivíduos que não encontram dificuldades em orientar suas ações no sentido de satisfazer seus objetivos.
Crianças de ambos os sexos são agressivas. Ocorre que a agressividade das meninas costuma incomodar os adultos. Basta que se observe como se dão as repreensões aos impulsos infantis. Quando direcionada a meninos, sua intenção reveste-se de objetividade e precisão. Tem o intuito único de impedir o perigo iminente. Já quando uma menina é o alvo, a repreensão ultrapassa os fins exclusivamente protetivos e inclui mensagens de bem portar-se que não se limitam ao momento presente.
Eis que se pode dizer de um ainda vigente modelo de feminilidade que censura a espontaneidade da menina e que a vincula à fragilidade. A “mocinha”aprende que deve ser meiga e delicada como meio de receber aprovação. Já o “capeta” ou “moleque” convive com maior liberdade de expressão. Não somente o uso dos mencionados apelidos, mas também a indisfarçável carga de orgulho por parte de seus aplicadores adultos, corroboram a infeliz constatação de que o agentes da discriminação nem sequer percebem que estão discriminando.
O presente artigo, longe de eleger os homens como os frios algozes de mulheres completamente passivas, intenta salientar que a discriminação contra a mulher, de autoria masculina e também feminina, é muitas vezes praticada sob o manto da inocência, da leveza e da boa tradição. Contudo, sua aparente conformação com um benfazejo desvelo e uma perseguida dedicação, mais se vale de seu poder altamente limitante sobre as mulheres. Daí ser considerada forma perigosa de discriminação, vez que quase invisível.
Caminhemos todos de mãos dadas, lado a lado, conscientes combatentes de quaisquer práticas discriminatórias cerceadoras, e felizes companheiros ante as inegáveis e bem-vindas diferenças!
*Raquel Diniz Guerra
Professora de Direito Administrativo,Direito Constitucional, Direito Tributário e Teoria Geral do Estado do curso de graduação em Direito (FAMINAS – BH). Professora de Introdução ao Direito do curso de graduação em Administração (FAMINAS – BH).Professora de Introdução ao Direito do curso de graduação em Ciências Contábeis (FAMINAS – BH). Professora de Diretrizes e Bases da Educação do curso de graduação em Pedagogia (FAMINAS – BH). Mestra em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Autora do livro Mulher e Discriminação, publicado pela Editora Fórum.