Por Eduardo Carone Costa Júnior*
Já era de se esperar. Na esteira do massacre ocorrido na escola municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ressurge a discussão acerca do controle de armas de fogo no Brasil. Dentre as inúmeras posições ventiladas, chamou a atenção a proposta do Senador José Sarney de se realizar uma nova consulta popular.
Nada mais salutar para a democracia que permitir à sociedade tomar parte no processo político de tomada de decisão dos grandes temas nacionais. Alias, diga-se de passagem, o Brasil faz plebiscitos e referendos populares de menos, e a desculpa é sempre a mesma: o elevado custo de sua realização. Por que não adotar a prática, difundida nos Estados Unidos, de combinar, numa mesma oportunidade, eleição e consulta popular? Com isso, o argumento contrário à intensificação desta prática democrática cairia por terra já que o “custo” das eleições é inexorável à sobrevivência de uma democracia representativa. Isso sem mencionar do efeito colateral, extremamente salutar, de forçar os candidatos aos cargos eletivos em disputa a pronunciarem-se sobre os temas em discussão.
Mas se é assim, existe algum problema com a proposta do Senador Sarney?
Sim, existe. Subjacente à proposta está a noção de que tragédias como a de Realengo podem ser evitadas com a proibição – a se introduzir num texto de lei – da comercialização de armas de fogo no Brasil.
Uma das primeiras lições que, todos aqueles que desejam se dedicar à difícil arte de elaborar leis, devem aprender é que qualquer esperança de se lograr êxito em produzir um texto normativo dotado de eficácia e efetividade se perde quando o problema a ser solucionado – porque esta deve ser a ratio por traz da introdução de mais uma lei no ordenamento jurídico; dar solução a um problema que não poderia ser solucionado por outro instrumento que não a lei – não é corretamente identificado.
Ninguém duvida de que a segurança pública é um grave problema brasileiro da atualidade. Mas, dai a imaginar que os disparos dados em Realengo, com uma arma roubada e outra adquirida ilegalmente, como num passe de mágica, seriam evitados por uma simples proibição legislativa, é fazer tabula rasa da constatação a que chegou São Tomas de Aquino, já há muitos séculos, de que a lei dos homens, como instrumento de controle social, somente atinge o objetivo de promover o bem comum se for elaborada com racionalidade.
É nesse ponto que a concepção de legislação simbólica, discutida pela doutrina alemã e trazida para o Brasil por Marcelo Neves, pode, ao lançar luz sobre a proposta mencionada, Iluminar a discussão e trazer à tona a racionalidade que há de se esperar em uma legislação de qualidade.
Se é certo que a lei pode produzir efeitos instrumentais, também é certo que ela pode produzir “efeitos latentes”, meramente simbólicos, razão pela qual deve-se procurar conceituar a legislação simbólica partindo da distinção entre os seus sentidos político e jurídico-normativo, para afirmar que a legislação simbólica é aquela em que se verifica a preponderância do primeiro sobre o segundo. Em outras palavras: legislação simbólica não é apenas uma questão de ineficácia do ato normativo, não se resume a um simples diagnóstico de que a lei “não pegou”, “legislação simbólica é aquela em que se verifica uma hipertrofia de sua função simbólica em detrimento da concretização normativa do respectivo texto”[1].
A tipologia de legislação simbólica defendida por Harald Kindermann e adotada por Neves, levando em consideração a finalidade a que se destina o ato normativo, distingue entre:
- a legislação simbólica que confirma valores sociais;
- a legislação simbólica que demonstra a capacidade de ação do Estado, também chamada “legislação-álibi”; e
- a legislação simbólica que adia a solução de conflitos sociais por meio de compromissos dilatórios.
Parece que a proposta do Senador Sarney preencheria alguns dos requisitos para a configuração da segunda espécie, a “legislação-álibi”, em que o Estado-legislador é levado a editar um ato normativo para, simbolicamente, responder a uma pressão que é exercida sobre ele.
No mais das vezes, essa pressão é exteriorizada pela mídia como uma situação de inadequação do ordenamento jurídico para a qual a classe política não se atentou ou perante a qual, para atender a interesses setoriais, prefere se quedar inerte. Com a intensificação do clamor social por mudança e, muitas vezes, manifestações de desgosto públicas pela inércia do legislador, se apresenta uma proposta de legislação que será vista como uma resposta à sociedade, mesmo que suas normas sejam inexequíveis. O fim almejado pelo legislador, neste caso, é “descarregar-se de pressões políticas ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos.”
Em face da necessidade de se “mandar um recado” à sociedade, valores essenciais à qualidade do texto legal, como a identificação correta do problema, são deixados de lado, colaborando para o descrédito na força vinculante da lei, que ocorrerá, no mais das vezes, quando o responsável pela sua elaboração já não mais pode ser identificado. Nas palavras de Marcelo Neves[2]:“A legislação-álibi decorre da tentativa de dar aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador. Como se tem observado, ela não apenas deixa os problemas sem solução, mas, além disso, obstrui o caminho para que eles sejam resolvidos.”
É tarde demais para evitar a tragédia de Realengo. Não é tarde demais para evitar que a resposta do Estado a esse acontecimento se transforme em mais uma tragédia, uma tragédia legislativa.
[1] NEVES, 2007, p. 32.
[2] NEVES, 2007, p.39.
* Eduardo Carone Costa Júnior