Por Celso Antônio Bandeira de Mello – Professor Titular de Direito Administrativo e Professor Emérito da PUC/SP.
Texto publicado na edição 38 da Revista Interesse Público.
1. Todo o problema da aplicação da lei no tempo gira em torno da necessidade de harmonizar duas idéias que parecem antagonizar-se. De um lado, ocorre a impostergável exigência de estabilidade nas relações jurídicas. Este reclamo, advindo do valor segurança, que é conatural ao Direito, postula a imutabilidade das situações constituídas. Daí sua proteção contra alterações que poderiam advir de leis supervenientes, se a estas fosse reconhecido o condão de interferir com os vínculos regularmente constituídos no passado.
De outro lado, milita a convicção de que as regras novas por força se hão de presumir mais satisfatórias para reger a vida social e por isso mesmo não podem ser detidas pelos eventos regulados no passado. Ocorre, ademais, que a alteração legislativa é condição do progresso social, donde a conveniência de reconhecer-lhe operatividade ampla desde sua entrada em vigor.
2. Na verdade, a antinomia entre as duas ordens de valores prezáveis é muito mais aparente que real. As normas positivas e as soluções doutrinárias, a final acolhidas nas ordenações jurídicas, consistem justamente em demonstração de que é perfeitamente possível chegar-se a uma solução equilibrada, capaz de confortar as duas ordens de interesses, sem comprometimento dos valores nucleares que os animam.
3. Antes de rememorar a gênese do direito adquirido, é útil, para dissipar dificuldades geradas simplesmente por problemas taxinômicos, bordar considerações sobre o possível campo de conflitos no direito intertemporal.
O tempo, esquematicamente, pode ser considerado em sua óbvia divisão compreensiva do passado, presente e futuro. Donde, quaisquer relações ou situações jurídicas forçosamente se alocam ou se alocarão em um dentre estes três segmentos.
4. Há certos acontecimentos que sucederam no pretérito e nele se encerraram. Isto é: algu mas relações jurídicas nascem, medram e fenecem dentro do império de uma única lei, sob cuja égide se extinguem integralmente seus efeitos. O advento de lei posterior obviamente não pode afetá-las, salvo retroagindo, isto é, volvendo para o passado. E a retroação, segundo expôs Paul Roubier, “(…) é a aplicação da lei a uma data anterior à sua promulgação, ou, como se disse, uma ficção da preexistência da lei” 1 . Vale dizer, a retroatividade ocorre quando a lei nova, ainda conforme expressões do mesmo jurista, “remonta em seus efeitos aquém do dia de sua promulgação, invade o domínio natural da lei antiga” 2 .
5. A retroação, evidentemente, não é situação normal, mas, pelo contrário, invulgar, anômala, alheia à índole corrente das regras jurídicas. Com efeito, as leis existem para disciplinar o que está perante elas e não para regredir no tempo e desacomodar os acontecimentos socialmente vencidos e soterrados na poeira do tempo. Para obstar a retroação das leis não há que invocar a teoria do direito adquirido, cuja finalidade e ambição são outros, como ao diante se verá.
O obstáculo à perturbação destas situações decorre pura e simplesmente do princípio da irretroatividade das leis porque, para alcançá-las, a lei nova teria que retroceder, desvelar a cortina do tempo transacto, em suma, retroagir.
Portanto, a superveniência de regras distintas das anteriores em nada interfere com os facta praeterita, ou seja, com as relações superadas.
6. Cumpre esclarecer, todavia, que uma situação jurídica pode considerar-se pretérita em mais de um sentido. Vale dizer: pode-se, restritivamente, reservar tal qualificação a fatos passados em que tanto a situação jurídica quanto o gozo dela já estejam, ambos, cumpridos e, portanto, encerrados no pretérito.
Seria o caso, e.g., do transcurso do período de tempo de trabalho necessário para que um funcionário goze férias e a efetivação deste gozo. Se ambos sucedem no tempo pregresso, tem-se um fato, uma situação, absolutamente consumados. Normas sucessivas, à obviedade, não interfeririam com eles, inobstante viessem a regular diferentemente a matéria, exigindo, verbi gratia, lapso temporal de trabalho maior para obter as férias e período de gozo menor. Idem quanto à aquisição de vencimentos, gratificações, adicionais, etc., urna vez efetivada a percepção deles.
A regra superveniente, que alterasse as condições para se fazer jus a eles ou o quantum do pagamento correspectivo, seria inoperante em relação a estes acontecimentos já clausurados na história.
7. Pode-se – e deve-se -, outrossim, considerar pretérita uma situação – já agora em termos mais amplos e tecnicamente mais exatos – quando os requisitos de direito para seu gozo já se perfizeram no passado, embora o desfrute, propriamente dito, ainda não haja se efetuado.
Vale dizer: cogita-se aqui da completa integralização de uma situação jurídica reportada a seu próprio tempo (não ao futuro), cuja fruição, todavia, ainda está por se realizar, quando sobrevém novo regramento.
Seria o caso de perfazer-se o tempo necessário para o servidor público passar à aposentadoria, gozar férias, sem que, entretanto, haja procedido ao desfrute destes direitos. Idem, com relação ao pagamento de vencimentos, gratificações, adicionais que, por qualquer razão (que não vem ao ponto), ainda não tenha recebido.
Percebe-se, ainda, nesta segunda série de exemplos, que a situação jurídica completou-se totalmente em tempo pregresso, faltando apenas a efetiva implementação da fruição de algo a que já se havia feito jus e que, desde então, podia-se fazer valer. Com efeito: os fatores constitutivos destas situações jurídicas não são a efetiva aposentação, o gozo das férias, nem a recepção das importâncias a haver. Pelo contrário, todos ele só seriam juridicamente exigíveis porque já estava integrado, aperfeiçoado e disponível o correspondente direito. Logo, lei nova não poderia, sem desconstituir a situação jurídica passada, interferir com as relações anteriores.
A noção de irretroatividade das leis, considerada em seus justos termos, consentâneos com a própria índole do Direito, seria plenamente suficiente para a proteção destas situações. Entretanto, para defender-lhes a estabilidade e imunizá-las contra a possível pretensão de invocar-se a lei nova, fala-se, às vezes, em ato ou fato jurídico perfeito ou mesmo em direito adquirido.
Não há inconveniente em tais invocações; entretanto, repita-se, a noção de direito adquirido seria desnecessária para a proteção de tais situações, conquanto não se negue que seja prestante para defendê-las. Em outras palavras: mesmo que inexistisse proteção constitucional ao direito adquirido, as situações descritas persistiriam resguardadas contra o impacto das leis novas, seja por força de uma noção compreensiva da irretroatividade, seja por necessidade de respeitar-se o ato jurídico perfeito, ou o fato jurídico perfeito.
8. Ao lado dos acontecimentos que se cumpriram no passado e nele se venceram, quais os referidos, outros há em que, ao sobrevir lei nova. encontram-se em curso. Transitando no presente. São os negotia pendentia. E dizer: nasceram no passado (em relação à lei superveniente) mas atravessam o presente e projetam-se no futuro. Iniciaram-se ao tempo do preceito antigo, mas não estão juridicamente encerrados e por isso ingressam no tempo de império da lei nova, de tal sorte que esta, sem retroagir e sem negar aquilo que já haja transcorrido, irá alcançá-los sob o foco de suas disposições, salvo se houver sobrevivência da lei antiga para a regência destas relações.
9. Em nome da segurança e estabilidade jurídicas, valores altamente prezáveis no Direito, e a fim de evitar a álea que colocaria em permanente sobressalto as partes de um vínculo jurídico, concebe-se que em certos casos a força da lei antiga projete-se no futuro envolucrando relações constituídas – mas não encerradas – sob sua égide.
É a teoria do direito adquirido que se presta excelentemente para agasalhar o propósito de colocar a salvo da incidência da nova lei certas relações, que assim percorrem o tempo encasuladas no abrigo protetor das regras velhas. Estas sobrevivem para além de seu próprio tempo, com o fito específico de acobertar direitos que seriam muito frágeis e inconsistentes se não existira este expediente jurídico.
10. A teoria do direito adquirido e seu reconhecimento pela legislação dos povos cultos veio a se constituir na fórmula mais perfeita para a salvaguarda da tranqüilidade jurídica e para os interesses dos indivíduos. Através dela construiu-se um mecanismo de defesa contra mudanças bruscas, oriundas de alterações legais que teriam o condão de subverter as composições de interesses lisamente constituídos, porque previstos ou autorizados no sistema normativo vigente ao tempo de sua instauração. Sem o amparo do direito adquirido irromperia a álea nas relações sociais, a imprevisibilidade, o sobressalto, noções antitéticas àqueles que são os objetivos centrais do próprio Direito: a previsibilidade e segurança.
À sua mingua, a própria certeza das situações jurídicas e, portanto, dos interesses individuais ficaria gravemente comprometida, por exposta ao sabor do imprevisto. Daí que o direito adquirido é erigido em valor prezável e, entre nós, constitucionalmente defendido no capítulo dos direitos e garantias individuais, com o que se ressalta seu caráter de proteção ao cidadão, seja em suas relações com terceiros, seja em seus vínculos com o Estado (art. 5°, XXXVI).
11. Desde tempos recuados os doutrinadores e as próprias normas jurídicas revelaram a preocupação de não perturbar vínculos constituídos no passado.
Os primeiros esforços significativos em tema de Direito intertemporal vão ser encontrados no Direito romano. É célebre o texto de Cícero, nas Verrinas, com o qual, em sua segunda oração contra Verres, o pretor, censura acrimoniosamente o retorno das leis ao passado. Citando as leis Voconia, Atínia e Furia, argumenta que o edito de Verres agredia a tradição do jus civile por intentar que suas regras alcançassem e afastassem disposição testamentária manifestada antes do edito.
Limongi França, doutor da máxima suposição na matéria, expondo a questão, advoga a tese de que os pontos de vista de Cícero não eram criação original deste famigerado tribuno, mas apenas refletiam o “fruto da ciência acumulada de muitas gerações de juristas”. Entende que as raízes desta tese remontam a três séculos, pois atribui sua origem aos escritos dos Veteres (Publius Mucius Scaevola. Junius Brutus e M. Manilius) – qui fundaverunt jus civile, no dizer de Pomponio 3 .
12. No Direito clássico iria surgir a noção de causae finitae, isto é, as questões encerradas por julgamento, por acordo de vontades e por prescrição, conforme fragmentos de Paulo e de Ulpiano. De acordo com Roubier, as leis novas poderiam alcançar as causae pendentessendo-lhes intangíveis tão-só as causae finitae 4 . Limongi França, pelo contrário, considera que os textos citados não impõem conclusão oclusiva do entendimento de que as causae pendentes também estariam a salvo.
Lembrando a pobreza do período clássico na matéria, aduz que os textos em pauta devem ser entendidos em coordenação com o período anterior e com as leis precedentes. Traz à colação as leis Atínia e Pompéia, recolhidas em guisa de exemplo, e que, segundo a inteligência que lhes deram Aulus Gellius e Plínio, o moço, só dispunham para o futuro 5 .
13. Os subseqüentes marcos de grande relevo para o Direito intertemporal foram a 1ª e a 2ª Regra Teodosianas, ambas reveladoras da tendência ampliativa na proteção às situações nascidas no passado.
De acordo com a 1ª Regra, as normas apenas dispõem para o futuro: omnia constituta non praeteritis caluniam faciunt, sed futuri s regulam ponunt. Sempre conforme Limongi França, autor ilustre de quem recolhemos todas estas eruditas lições, a 2ª Regra, mais conhecida, dispõe: “É norma assentada a de que as leis e constituições dão forma aos negócios futuros e de que não atingem os fatos passados, a não ser que tenham feito referência expressa, quer ao passado, quer aos negócios pendentes” (tradução do autor) 6 .
Gabba, em sua refulgente Teoria della Retroativitá delle Leggi, esclarece que esta regra estabeleceu a defesa dos “fatii consomati, o totalmente praeterita e i fatti non compiuti, negotia pendentia, cioè fatti comminciatti sotto una legge anteriore, o in altri termini, le ulteriori conseguenze di fatti posti in essere sotto l’impero di una legge anteriore” 7 .
14. No Direito justinianeu, registram-se várias passagens em que há reprovação à retroatividade e defesa dos efeitos oriundos de fatos e atos produzidos no passado.
Só na Idade Média, entretanto, surgiria a idéia do jus quaesitum, isto é, do direito adquirido, cuja noção, todavia, em nenhum texto se encontra esclarecida com precisão. A indicação de seu conteúdo vem a ser elucidada apenas nos tempos modernos.
Cumpre reiterar que o problema do direito adquirido de modo algum se confunde com a questão dos fatos realizados e exauridos no passado. Justamente, a utilidade dessa teoria, o ponto que lhe serve de apanágio, é o de se propor a resolver questões derivadas dos facta pendentia. Em suma: seu préstimo revela-se, sobremodo, na solução que apresenta para salvaguarda dos efeitos de situações transactas. Isto é, propõe-se a determinar a lei aplicável às situações em curso. Os fatos consumados, facta praeterita, já se encontram plenamente acobertados pela teoria da irretroatividade das leis.
Deveras, não há confundir os facta praeterita, ocorridos e vencidos ante diem legis, com os facta futura, sucedidos ex die legis nem com os facta pendentia, surgidos ante diem legis, mas cujos efeitos se perlongam e se processam durante o império da lei superveniente. É precisamente com relação a estes últimos que se põem as questões delicadas de direito intertemporal.
Daí que o grande mérito da teoria do direito adquirido não reside na proposta de salvaguardar o que já se venceu, mas justamente em oferecer solução para os problemas suscitados pelos facta pendentia, ao indicar quando a lei nova tem que respeitar o que ainda não está clausurado pela cortina do tempo transacto.
15. Em síntese: as leis novas, em princípio, são expedidas para imediata aplicação. É conseqüência disto, então, que, de um lado, passem a reger todas as relações jurídicas surdidas após sua vigência e, de outro lado, que apanham também as relações em curso, vale dizer, ainda não exauridas. Com efeito, nesta segunda hipótese não se pode dizer que sejam retroativas, pois respeitam os efeitos que precederam a seu advento, alcançando tão-só aqueles efeitos que se estão propagando ainda e que, por isso mesmo, se desenrolam já à época da vigência da lei nova. Retroagir é agir em relação ao passado. Se uma lei apanha relações que existem no presente, não está se reclinando sobre o pretérito; pelo contrário, está incidindo sobre aquilo que se processa na atualidade.
Segue-se que as relações que nasceram e que faticamente ou apenas juridicamente se completaram no passado obviamente não têm por que serem afetadas por lei superveniente. Para que fossem atingidas seria necessário que a lei retroagisse. A simples noção da irretroatividade da lei é suficiente para protegê-las.
16. Diversamente, as relações nascidas no passado, mas que estão intercorrendo no presente e se projetando para o futuro, em princípio, poderiam e podem ser alcançadas pela lei nova, sem que por força disto se possa dizer ocorrente o fenômeno da retroação.
Sucede, entretanto, que, como foi dito, mesmo sem haver retroação, esta imediata aplicação da lei – que interferiria com as relações já em curso – pode aparecer como fonte de perturbação, de insegurança, de instabilidade, gravosa aos objetivos consagrados na lei velha, isto é, na lei do tempo transacto que serviu de calço jurídico para os direitos suscetíveis de serem afetados pela nova lei.
17. É precisamente para atender a tais situações que surgiu a noção de direito adquirido. Sua função, portanto, não é a de impedir a retroatividade da lei. Sua função é diversa, qual seja: é a de assegurar a sobrevivência da lei antiga para reger estas situações. O que a teoria do direito adquirido veio cumprir – como instrumento de proteção contra a incidência da lei nova – foi precisamente a garantia de incolumidade, perante os ulteriores regramentos, a direitos que, nascidos em dada época e cuja fruição se protrairá, ingressarão eventualmente no tempo de novas leis. O que se quer é que permaneçam indenes, vale dizer, acobertados pelas disposições da lei velha.
Em suma: o direito adquirido é uma blindagem. É o encasulamento de um direito que segue e seguirá sempre envolucrado pela lei do tempo de sua constituição, de tal sorte que estará, a qualquer época, protegido por aquela mesma lei e por isso infenso a novas disposições legais que poderiam afetá-los.
18. Esta é a função do direito adquirido e não alguma outra. E isto aparece com clareza ao se considerar, precisamente, que a lei nova não é retroativa quando se aplica às situações em curso. Se o fora, poder-se-ia pensar que o direito adquirido é instrumento de defesa contra a retroatividade. Não é. Contra a retroatividade basta a noção singela de que a lei vige para seu tempo e não para o tempo pretérito. A noção de direito adquirido não é uma superfetação, mas, o meio jurídico concebido para albergar no manto da lei velha certas situações que, nascidas no passado, querem-se por ela sempre reguladas, inobstante atravessando o tempo das leis supervenientes. De resto, é por isto mesmo que sua ocorrência não pode ser interpretada com visão acanhada e desatenta a seus verdadeiros propósitos.
Em rigor. como muito bem o disse Paul Roubier, o direito adquirido é um problema de sobrevivência da lei antiga, em relação a certas situações que nela se hospedavam.
19. Daí se conclui que cabe invocar direito adquirido (uma vez presentes seus caracteres, que serão a breve trecho referidos) exata e precisamente para a defesa de situações que seriam normalmente alcançadas pelo novo regramento, caso não houvesse direito adquirido. É importante frisar que o apelo a esta noção tem lugar exata e precisamente naquelas situações que seriam lisa e normalmente atingidas pela lei nova – como sucede, a cotio, nas mudanças de regimes concernentes a servidores públicos – não fora o óbice do direito adquirido. E a invocação em tela tem por objeto específico – pois isto é inerência do direito adquirido – assegurar que o direito questionado continue a ser regido na conformidade da lei vencida.
20. É óbvio que não são abrigados pelo quadro da lei velha quaisquer direitos nascidos no passado e ainda transeuntes quando do advento da lei nova.
Este abrigo imunizador só alcança certas situações específicas, ou seja, certos direitos que apresentam em sua constituição, algo que os peculiariza, autorizando concluir que se trata do chamado direito adquirido. Cumpre saber, então, quando se considera adquirido um direito. É disto que nos ocuparemos a seguir.
21. Segundo Gabba, é adquirido todo direito que:
“a) é conseqüência de fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que foi cumprido, ainda que a ocasião de fazê-lo valer não se apresente antes da atuação de uma lei nova referente ao mesmo;
b) ao termo da lei sob cujo império ocorreu o fato do qual se originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.” 8
Donde, o ato capaz de investir o indivíduo em dada situação jurídica confere-lhe, ipso facto, o gozo de todos os efeitos precedentes daquela situação pessoal, inobstante devam ser diferidos no tempo. Uma vez que integram o conteúdo da relação formada, incorporam-se ao patrimônio do sujeito. Por isso Gabba averbou: “(…) adquirido um direito qualquer, todas as faculdades que nascem dele são, também elas, direitos adquiridos, porque e enquanto se possam absorver no conceito geral daquele direito” 9 .
22. Vale dizer: direito adquirido, por definição, não é apenas o direito em sua expressão momentânea. fugaz, mas abrange todos os desdobramentos que nele se contêm. Sendo evidente que nas relações jurídicas os direitos se conectam, ora como coexistentes, ora como conseqüentes uns dos outros, de maneira a formar uma totalidade, cuja identidade se perfaz em sua globalidade, é de mister concluir, ainda com Gabba, que, em linha de princípio: “As conseqüências de um direito adquirido devem ser havidas também como direitos adquiridos junto com ele e em virtude dele, quando se possa considerá-las como desenvolvimento do conceito do direito em causa ou transformação” 10 .
23. Mas, em rigor, a questão medular é a de reconhecer quando um direito deverá ser considerado “integrado no patrimônio” de alguém e, por isso, intangível. O problema, num primeiro súbito de vista, pode parecer de difícil desate. Entretanto, pelo menos no âmbito do Direito Administrativo, sua resolução, nos casos concretos, geralmente é muito simples.
Com efeito, dado que os direitos nascem da Constituição, de uma lei (ou de ato na forma dela praticado), tudo se resume em verificar, a partir da dicção da norma – de seu espírito – se o conteúdo do dispositivo gerador do direito cumpre ou não a função lógica de consolidar uma situação que é, per se, como soem ser as relações de direito público, basicamente mutável.
24. Tomem-se alguns exemplos para aclarar. Paradigmático é o caso da estabilidade Se a Constituição confere estabilidade a quem preencher dados requisitos, é da mais acaciana obviedade que o sentido lógico desta norma é – e só pode ser – o de estratificar tal situação, posto que estabilizar significa precisamente “garantir continuidade”. Se não fora para elidir o atributo de precariedade, cristalizando um estado até então mutável, seria um sem-sentido atribuir estabilidade.
Do mesmo modo, evidencia-se esta consolidação quando a lei declara incorporados aos vencimentos de alguém dadas vantagens, benefícios, etc. Com efeito, não faria sentido algum proceder a esta incorporação se não fora para colocá-los a salvo de mutações futuras. Pois é óbvio que enquanto persistisse a mesma situação (normativa e fática) em vista da qual o servidor os vinha fruindo, continuaria a fruí-los sem necessidade de lei alguma que os incorporasse. É claríssimo, pois, que a função lógica da lei que declara ou reconhece algo como incorporado só pode ser a de prevenir dada situação contra os eventos cambiantes do futuro. Em suma: seu alcance é consolidar uma situação, incorporando-a ao patrimônio de alguém, a fim de que fique a salvo de munições ulteriores.
É evidente, pois, que uma vez preenchidos os requisitos supostos para sua aquisição. como, exempli gratia, o da estabilidade, o servidor ganha um status consolidado, defendido contra quaisquer alterações normativas posteriores.
Só uma nova Constituição poderia infirmar-lhe tal garantia, substanciada no direito adquirido. E poderia fazê-lo unicamente porque uma nova Constituição representa ruptura cabal com a ordem jurídica precedente, constituindo-se, por definição, na derrocada dela com a instauração de outra ordem, emergente, e sem vínculos com a anterior.
Nenhuma outra regra de Direito, fosse qual fosse, poderia aspirar à derrubada de direitos adquiridos, porque, em sua origem, tal norma estaria sempre atrelada à própria Constituição, ou seja, ao próprio documento fundamental que, no caso brasileiro, declara salvaguardados os direitos adquiridos.
Outrossim, se a Constituição declara irredutíveis os vencimentos, é de solar evidência que os pretende defendidos contra providências que os reduzam. Em regime onde vigore o princípio da legalidade, seria evidentemente despiciendo tal atributo que a Constituição lhes confere se não fora para interditar que normas ulteriores, provenientes de Casa ou Casas Legislativas, afetassem a integralidade dos vencimentos a que cada qual faça jus. Segue-se que nenhuma regra de direito, pelas razões supra-expendidas, teria o poder de reduzi-los, salvo, evidentemente, uma nova Constituição, conforme acima elucidado.
25. As fórmulas pelas quais se expressam estas consolidações de direito são variadas. A lei ora se vale da expressão “incorporados”, ora declara “assegurados” tais ou quais direitos, ora os proclama “garantidos”, ora os reconhece “adquiridos”, e assim por diante.
De toda sorte, o que cumpre verificar é se a dicção da regra de direito ou a que resulta de um conjunto delas implica definir como intangível um dado estado ou situação, isto é, como resguardado, sem embargo de se tratar de vínculo jurídico cujos efeitos deverão se desdobrar no tempo. É, pois, a garantia de estabilização para o futuro, de cristalização do que existe em um dado tempo, o que se contém nas regras que indicam assegurados os direitos preexistentes, salvaguardados os direitos já adquiridos, protegidas as situações anteriores.
Se houver espaço para medrarem dúvidas consistentes quanto a isto, é recurso exegético recomendável indagar-se se a aplicação imediata do regramento superveniente causará conturbação de monta, abalo traumático nas relações já constituídas. Em sendo afirmativa a conclusão, tratar-se-á de saber se na ordenação anterior existem elementos plausíveis indiciários do propósito de mantê-los, ainda que parcialmente, a bom recato, portanto defendidos, mais ou menos amplamente, contra superveniências normativas.
Justifica-se esta zelosa perquirição de um possível direito adquirido nos casos duvidosos, porquanto esta garantia, como dito, inspira-se precisamente no intento de evitar trânsito demasiado oneroso para a segurança jurídica e tranqüilidade dos que, fiados no regramento precedente, constituíram vínculos de direito que se perlongariam no tempo. A cautela é sobremodo recomendável perante relações que se encartam no desdobrar de um longo lapso temporal. Com efeito, a comoção delas frustraria expectativas que, se nutridas por dilatado prazo ao abrigo das leis vigentes, tornariam particularmente traumáticos os agravamentos acaso trazidos por regras novas.
26. De par com as noções até agora expostas, cumpre anotar que também se reconhece a existência de direito adquirido perante certos liames jurídicos que, por sua própria índole, são armados pelas partes sobre a inafastável pressuposição de que continuariam regidos na conformidade das cláusulas ensejadas pela lei do tempo em que são formados. Referimo-nos aos contratos em geral e, assim também, aos chamados contratos administrativos.
Aqui, não se trata de reconhecer que determinadas leis professam o intento de imunizar dadas situações ante a superveniência de regras novas. Antes, trata-se de reconhecer que este instituto – o do contrato, ao menos nos de trato sucessivo – traz, inerentemente, em sua compostura medular, a idéia de estabilização e que o Direito, ao contemplá-lo, não poderia, incoerentemente, negar-lhe o que lhe é essencial.
Com efeito: perante contratos, seria ilógico que os vínculos formados corressem autonomamente sua sorte, regidos pela lei do tempo de sua formação, enquanto são alterados de imediato os efeitos jurídicos sob cujo patrocínio as partes buscaram a composição do negócio. A álea assim instaurada viria a constituir resultado literalmente antitético ao pretendido pela teoria do direito adquirido.
É de lembrar que os contratos de trato sucessivo constituem-se por excelência em atos de previsão. Por meio deste instituto, a ordem jurídica prestigia a autonomia da vontade ao ponto de propiciar-lhe o poder de fazer ajustes cuja força específica é atrair para o presente eventos a serem desenrolados em um futuro às vezes distante.
Por via dele, então, as partes propõem-se a garantir, desde já, aquilo que deverá ubicar-se no futuro. Donde, ao se comprometerem, o que os contratantes estão visando é a eliminação da precariedade, porque a essência do pacto é (tal como nas hipóteses inicialmente consideradas) estabilizar, de logo, eventos que deverão suceder mais além no tempo. O fulcro do instituto, portanto, repousa na continuidade dos termos que presidem a avença. Se a lei nova pudesse subverter o quadro jurídico dentro no qual as partes avençaram, fazendo aplicar de imediato as regras supervenientes, estaria negando sentido à própria essência deste tipo de vínculo, por instaurar resultado oposto ao que se busca com o instituto do contrato.
27. É tão veemente a força desta idéia, que Paul Roubier, embora avesso à teoria do direito adquirido, não pôde resistir à convicção de que as situações contratuais reclamam tratamento específico capaz de salvaguardar o respeito à posição dos contratantes.
Como se sabe, o ilustrado mestre francês era partidário da aplicação imediata das leis, cuja incidência deveria, em seu entender, alcançar os fatos pendentes. De acordo com ele, censurável é a retroatividade. Portanto, hão de ser respeitados os facta praeterita. Já os inconclusos são colhidos a partir da lei superveniente pelas regras que dela promanem. Sem embargo da laboriosa construção teórica que erigiu em defesa deste ponto de vista, encontrou-se na contingência de abrir uma exceção imensa à sua tese para sufragar a intangibilidade dos contratos.
Roubier reconhece que o respeito à lei dos contratos em curso é regra certa e considerado verdadeiro “artigo de fé”. Reconhece, ainda, que para a teoria no direito adquirido não há a menor dificuldade em explicar esta intangibilidade 11 . O mesmo, contudo, não se passa com sua doutrina, a qual não fornece justificação evidente para a sobrevivência das normas que presidem o contrato.
28. Sem embargo, o autor percebe a necessidade de preservar as relações deste teor contra mutações imediatas advindas de regulação normativa superveniente. Justifica, então, esta intangibilidade apoiando-se na idéia de que os contratos são atos de previsão em que a escolha procedida pelos contratantes ao comporem consensualmente seus interesses é decidida inteiramente em função das cláusulas ou da lei vigorante. Daí apostilar: “É evidente que a escolha seria inútil se uma lei nova, modificando as disposições do regime em vigor no dia em que o contrato foi travado, viesse a trazer uma subversão em suas previsões” 12.
Com absoluta procedência, ressalta o caráter monolítico do regime do contrato que se constitui por “um bloco de cláusulas que não se pode apreciar senão à luz da legislação sob a qual foi realizado” 13 .
Daí afirmar a plena soberania do acordo, inobjetável mesmo em face do advento de cláusulas imperativas que dispunham em sentido diverso dos termos anteriores. E conclui que em tema de contratos, em vez de aplicar-se o simples princípio da irretroatividade, aplica-se princípio mais amplo, qual o da sobrevivência da lei antiga 14 .