Leia o artigo de Enoque Ribeiro dos Santos, desembargador do Trabalho do TRT – 1ª Região. Mestre, Doutor e Livre Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP. O texto foi publicado na edição número 25 da Revista Fórum Trabalhista – RFT.
I Introdução
Já era chegado o momento de o Brasil, à semelhança dos países de economia avançada, nos novos tempos da globalização dos mercados e especialmente das inovações ocorridas no mercado de trabalho e emprego, ter uma nova Lei da Terceirização.
Isto porque até então apenas a Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho, a Lei nº 6.019/74 (trabalho temporário), a Lei nº 7.102/83 (vigilância) e o trabalho especializado, desde que não se verifique a pessoalidade e a subordinação direta com o tomador de serviços, compõem o núcleo das atividades em que a jurisprudência dos Tribunais do Trabalho dava guarida à terceirização e se alinhava à solução das controvérsias sobre o tema.
Foi neste contexto que o Presidente Michel Temer sancionou e promulgou a Lei nº 13.429, em março de 2017, com base no Projeto de Lei nº 4.302/1998, de relatoria do Deputado Laércio Oliveira, oriundo da Câmara dos Deputados, que regulamenta os serviços terceirizados no Brasil e amplia o tempo de contratação de trabalhadores temporários.
O advento da nova lei, sem um exame mais profundo, que fizemos nesta oportunidade, pareceu-nos, a princípio, oportuno diante da grave recessão que o país atravessa.
É exatamente sobre isto que nos aprofundaremos no sentido de oferecer ao leitor uma visão do acirrado debate sobre esta importantíssima temática, já que absorve virtualmente 15% da força de trabalho no Brasil, ou seja, algo em torno de 12 a 15 milhões de trabalhadores, em um universo de 100 milhões de pessoas, nos setores público e privado.
Para tanto, será necessário fazer um cotejo entre o Projeto de Lei nº 4.302/1998, que deu ensejo à nova Lei da Terceirização nº 13.429/2017, e o PLC nº 30/2015, que tramitava simultaneamente no Senado Federal, que foi rechaçado.
II A nova Lei da Terceirização votada na Câmara dos Deputados, que deu origem à Lei nº 13.429/2017
Vivemos sob a égide do capitalismo moderno, em que o eixo fundamental da economia em um Estado Democrático de Direito repousa sobre o capital e o trabalho.
Como o capital é o polo privilegiado desta relação desigual, desequilibrada, fundada em uma relação de poder e dominação, e fulcrada em contrato de adesão, em que a exceção é representada pelos trabalhadores do conhecimento e da informação, que estão no ápice da pirâmide do mercado de trabalho, é lógico que qualquer alteração nas regras do jogo da terceirização irá provocar a resistência típica das pessoas, que se opõem geralmente a qualquer tipo de novidade.
Isto não é novo na história da própria evolução do trabalho, desde sua gênese, com os casos conhecidos na Inglaterra, da revolução dos ludistas, que arremessavam seus tamancos nas máquinas ou teares de produção de tecidos, com o propósito de manifestar seu inconformismo diante da precarização das condições laborais e da substituição do trabalho humano por novas máquinas e tecnologias mais modernas.
Idêntico movimento surgiu com o advento do iPad e dos smartphones, que levou grande parte da indústria e imprensa escrita a prever o fim dos livros e jornais impressos, o que, logicamente à viva vista não aconteceu.
Porém, a criação de uma nova lei de terceirização, por envolver pessoas, especialmente as mais vulneráveis, não pode afastar conquistas de anos de luta, alcançadas com suor e lágrima na luta sindical, no debate acadêmico e na construção da jurisprudência de nossos Tribunais. Pelo contrário, deve se compatibilizar e ser escrita à luz do poder político máximo que representa a Constituição Federal, em um Estado Democrático de Direito.
Desse modo, não faz sentido que esta nova lei não leve em consideração os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da função social do contrato, da propriedade e do meio ambiente.
Para analisar a compatibilidade e a adequação desta nova Lei da Terceirização nº 13.429/2017 com os princípios citados e as conquistas alcançadas pelos trabalhadores e já incorporadas ao seu patrimônio jurídico, optamos por fazer um paralelo entre o Projeto de Lei nº 4302/98, aprovado na Câmara dos Deputados e o Projeto de Lei de Terceirização que tramita no Senado Federal, o PLC nº 30/2015, que foi afastado, para compreendermos exatamente seus desdobramentos na vida do emprego em nosso país.
III Atividade-fim e atividade-meio
Este é o tópico mais importante de toda a discussão, o cerne da questão, pois sobre ele repousa o que efetivamente está por trás da Lei nº 13.429/2017: regulamentar a terceirização, veladamente dar um cheque em branco ao empresariado ou abrir uma porteira a uma terceirização desenfreada e sem amarras.
A Lei nº 13.429/2017 permite a terceirização ilimitada, irrestrita, sem qualquer regulamentação, ou seja, em todas as atividades da empresa, da mesma forma como preconizava o projeto que tramitava no Senado Federal.
IV Responsabilidade subsidiária/solidária
A Lei nº 13.429/2017 prevê que a empresa contratante (tomadora dos serviços) tenha responsabilidade subsidiária, caso a empresa de locação de mão de obra falhe no pagamento das verbas salariais e consectários legais. Em outras palavras, o trabalhador somente poderá acessar a Justiça do Trabalho após o esgotamento das tentativas de cobrança da empresa terceirizada ou de locação de mão de obra.
O projeto sobre terceirização que se encontra em tramitação no Senado Federal neste ponto era mais favorável do que o aprovado na Câmara, pois estabelecia a responsabilidade “solidária”, caso a empresa contratante não fiscalizasse os pagamentos aos empregados pela empresa terceirizada. Neste caso, em vez do exaurimento das tentativas de cobrança por parte do empregado à empresa terceirizada, o trabalhador poderia, de plano, uma vez verificada a inadimplência de suas verbas, colocar no polo passivo da reclamação trabalhista não apenas a empresa terceirizada, como também o tomador de serviços, ou seja, a empresa contratante.
Podemos dizer que isto é o que atualmente acontece no curso de uma relação terceirizada, pois, na maioria das lides trabalhistas em trâmite nos nossos Tribunais, o autor, ou reclamante terceirizado, ajuíza sua ação não apenas em face da empresa terceirizada, como também da empresa contratante (tomadora dos serviços), colocando ambas no polo passivo da ação, com o pleito de responsabilidade subsidiária da tomadora de serviços.
Se não houver uma fiscalização efetiva por parte da empresa tomadora, inclusive com a retenção de valores do contrato para fins de pagamento de salários, contribuições e consectários, a tomadora dos serviços será condenada, subsidiariamente, nos exatos termos do que preconiza a Súmula nº 331 do Colendo TST.
V Vínculo empregatício/retenção de valores
A Lei nº 13.429/2017 não apresenta qualquer garantia aos trabalhadores quanto à formação do vínculo diretamente com a empresa tomadora dos serviços.
No entanto, o projeto que tramitava no Senado Federal apresentava uma novidade, no sentido de que, embora não haja vínculo empregatício entre a empresa contratante e os terceirizados, 4% do valor do contrato de prestação de serviços deveria ser retido, como garantia, para cumprimento das exigências trabalhistas e previdências daqueles trabalhadores.
É inegável que a proposta que tramitava no Senado Federal proporcionava uma maior segurança ao trabalhador, evitando maior precarização nesta relação de trabalho.
VI Substituição de empresas terceirizadas
Embora a Lei nº 13.429/2017 não faça qualquer alusão a este tema recorrente na seara laboral, o projeto do Senado Federal determinava que, em caso de substituição da empresa prestadora dos serviços terceirizados, com admissão dos empregados da antiga contratada, os salários do contrato anterior deveriam ser preservados.
Certamente, mais uma vez, o projeto do Senado Federal se apresentava mais adequado na proteção aos trabalhadores terceirizados, pois é notória e frequente a ocorrência desta troca ou substituição de empresas terceirizadas, especialmente no setor público, em serviços de vigilância, segurança, alimentação, limpeza, nas quais as empresas de terceirização são derrotadas em licitações públicas por outras concorrentes.
Nestes casos, invariavelmente, os trabalhadores ficam à deriva, totalmente desprotegidos, sem emprego, desprovidos de salários e de verbas rescisórias. No mais das vezes, são obrigados a abrir mão dos 40% do FGTS para obter o novo empregado na empresa sucessória, que venceu a licitação. Em outras palavras, abrem mão de seus direitos para se manterem no mesmo posto de trabalho que já ocupavam.
VII Vale-alimentação, vale-transporte etc.
A Lei nº 13.429/2017 é totalmente omissa nesta matéria, ao contrário do projeto do Senado, que previa que o trabalhador terceirizado teria acesso a restaurantes, transporte e atendimento ambulatorial oferecido pela contratante aos seus próprios empregados, quando e enquanto os serviços forem executados na dependência do contratante.
O projeto do Senado Federal, na verdade, no tópico, atenderia ao que hoje é decidido nos Tribunais do Trabalho, com fulcro no princípio da dignidade humana (art. 1º, I, CF/88), no valor social do trabalho (art. 1º, IV, da CF/88), e no princípio da igualdade (salário equitativo), que deve prevalecer nas relações laborais na empresa.
Caso contrário, o terceirizado seria visto e tratado como um trabalhador de segunda categoria, um trabalhador abstrato, invisível, sem identidade própria, ferindo de morte o princípio constitucional da igualdade, insculpido no art. 5º, I, da Constituição Federal.
VIII Filiação sindical
Enquanto a Lei nº 13.429/2017 prevê livre filiação sindical, o projeto do Senado Federal dispunha que os empregados da empresa terceirizada seriam representados pelo mesmo sindicato, quando o contrato envolvesse empresas da mesma categoria, garantindo os respectivos acordos e convenções coletivas de trabalho.
Novamente, não há qualquer dúvida que o projeto do Senado Federal, no tema, se apresenta mais razoável e protetivo ao trabalhador do que a Lei nº 13.429/2017, na medida em que mitiga a precarização na relação laboral.
Nada mais lógico que empregados que trabalhem, lado a lado, no mesmo ambiente laboral sejam defendidos, em seus direitos, pelo mesmo sindicato profissional, que conhece suas peculiaridades, diferenças, bem como similitudes, estando desta forma mais apto a defender o conjunto da classe trabalhadora, independentemente de esta ser constituída por trabalhadores próprios ou terceirizados. Todos são representados igualmente.
É exatamente isto que ocorre em países de economia avançada, como os Estados Unidos da América, onde prevalece a mais ampla democracia sindical, com o papel relevante do sindicato por empresa, em que os próprios trabalhadores podem obter a certificação1 e a descertificação do sindicato obreiro, sempre por tempo determinado (2 ou 3 anos), e sob a tutela do Board – National Labour Relations Board (o Ministério Público norte-americano), diversamente do sistema arcaico e superado de categorias, que vige no Brasil desde a CF/1937, oriundo da Carta Del Lavoro, de 1927.
O empregador distribui o terceirizado em inúmeras organizações empresariais, o que por si só já dificulta a aglutinação e a concentração típica necessária para a discussão e reivindicação de seus direitos básicos.
Pelas próprias características do terceirizado, a aprovação da Lei nº 13.429/2017 como sancionada deixa uma grande lacuna, pois não contempla o direito coletivo dos trabalhadores. Isto significa deixá-los à total deriva, desprotegidos e submetidos totalmente ao poder do capital desenfreado e ávido somente pelo aumento de seus lucros.
IX Serviços especializados
Da mesma forma, enquanto a Lei nº 13.429/2017 não faz qualquer alusão a este tema, o projeto que tramitava no Senado Federal determinava que as empresas terceirizadas teriam que ser especializadas na área em que atuam ou em que iriam oferecer serviços.
Sem dúvida, o projeto do Senado se apresentava mais adequado que a Lei nº 13.429/2017, pois a porteira aberta ou o cheque em branco dado ao empresariado com a sua promulgação seria, pelo menos em parte, abrandado, atenuado, mitigado pela exigência de que as empresas de locação de mão de obra sejam efetivamente especializadas, e não uma plêiade de cooperativas fraudulentas, organizações sociais, OSCIPs ou toda sorte de empresas criadas para pura e simplesmente mercantilizar trabalhadores terceirizados.
X Análise dos pontos fortes, fracos, vantagens e desvantagens
Muito embora, pela discussão acima, possamos claramente visualizar a tendência pró-empresarial, não apenas da Lei nº 13.429/2017, mas também do projeto que tramitou no Senado Federal, optamos por apresentar uma análise, para apormos nossa conclusão definitiva sobre o tema.
XI Vantagens
Uma das principais vantagens nas mudanças das regras da terceirização, com o advento da Lei nº 13.429/2017, para os que a defendem, se é que existe, repousa na permissão para atuar em todas as áreas, e não apenas em atividades-meio, como outrora, pois abriria a porta para que as empresas brasileiras se beneficiem de elevados ganhos de produtividade das últimas décadas na gestão da organização empresarial e na área das tecnologias da informação, com a contratação de empresas especializadas, já que a globalização permite a evolução das chamadas cadeias nacionais e internacionais de produção.
Outra vantagem da Lei nº 13.429/2017 seria gerar maior segurança jurídica para as empresas tomadoras de serviços, permitindo o surgimento de pequenas e médias empresas especializadas, gerando, destarte, maior produtividade à tomadora desses serviços, que se focará em seu core business.
No momento, as empresas correm o risco de os Tribunais do Trabalho entenderem que a atividade desenvolvida pelo terceirizado integra a atividade-fim da empresa (teoria dos fins da empresa, de sua dinâmica empresarial), o que levará ao reconhecimento do vínculo diretamente com a empresa tomadora, provocando a geração de custos adicionais.
Não se pode olvidar que se a Lei da Terceirização fosse compatível com as conquistas trabalhistas e à luz dos princípios constitucionais, certamente, afastaria a insegurança jurídica, no que respeita à licitude da terceirização da atividade-fim da empresa, o que poderia provocar um aumento dos postos de trabalho ao estimular o crescimento de empresas especializadas.
Para seus defensores, a Lei nº 13.429/2017 aponta para serviços contratados, como aqueles determinados e específicos, sendo que sua delimitação estará definida no objeto do contrato, eliminando-se, desse modo, a possibilidade de utilizar terceirizados para outras funções não previstas em contrato.
XII Desvantagens
A Lei nº 13.429/2017 eventualmente poderá suscitar a redução de trabalhadores contratados com carteira assinada, da mesma forma que a substituição de trabalhadores normais por terceirizados poderá provocar uma queda no nível geral de salários da economia, bem como um aumento na jornada de trabalho. É notório, por farta estatística, que o terceirizado é menos remunerado que o trabalhador contratado diretamente pelo empresário.
Os sindicatos se apresentaram terminantemente contra ambos os projetos de terceirização, alegando que poderão provocar precarização, pejotização, aumento do desemprego e substituição de pessoal formal por terceirizados, temporários e pessoas jurídicas.
Como as despesas com substituição de pessoal no Brasil são elevadas, devido aos consectários rescisórios e à multa de 40% do FGTS, cremos que a pejotização não deverá ser robustecida no Brasil, principalmente pelo fato de que a maioria das empresas estão operando atualmente próximas de seu break even (ponto de equilíbrio), ou no prejuízo, e sem fluxo de caixa suficiente para promover substituições.
Ademais, se a dispensa coletiva não for precedida de prévia negociação coletiva de trabalho com o sindicato profissional, poderá provocar a reintegração de todos os dispensados pela atuação do Ministério Público do Trabalho e do Judiciário trabalhista.
Entre as desvantagens, deverá ocorrer uma maior volatilidade do contrato de trabalho do terceirizado, na medida em que ele geralmente permanece na mesma empresa tomadora por vários anos, sem evolução salarial, ligado a diferentes empregadores. Neste tópico, deverá ocorrer uma maior precarização no trabalho, pois não é praxe ocorrer evolução na carreira, progressão salarial, ascensão profissional qualitativa e mesmo gozo de férias por parte do terceirizado.
A escolaridade média do trabalhador brasileiro que se situa em torno de seis a oito anos deverá permanecer ou decair levemente, com efeitos deletérios para a própria economia do país, cujo padrão de renda já de longa data não evolui satisfatoriamente, pelo contrário, vem decrescendo em face da recessão dos dois últimos anos.
XIII Oportunidades
A porteira aberta e a desregulamentação total proposta pela Lei nº 13.429/2017 poderá estimular o desenvolvimento das micro ou pequenas empresas especializadas em determinados serviços ou produtos para oferecer serviços às grandes empresas.
Como a economia brasileira passou por uma profunda recessão, de quase 9% nestes dois últimos anos, inegável que a soltura das amarras proporcionada pela Lei nº 13.429/2017 poderá provocar, de início, alguma recuperação do emprego precarizado do terceirizado.
O trabalho temporário regulamentado pela Lei nº 6.019/74 emprega em torno de um milhão de trabalhadores/dia no Brasil e tem seu escopo na Convenção nº 181 da OIT – Organização Internacional do Trabalho. A Lei nº 13.429/2017 amplia o trabalho temporário para 180 dias, visando especialmente atender às necessidades empresariais relacionadas à mão de obra substituta.
A nova Lei nº 13.429/2017, neste campo, certamente, poderá provocar o surgimento de inúmeras micro, pequenas e médias empresas especializadas, que passarão a oferecer toda gama de produtos e especialmente serviços para outras empresas maiores, acelerando a oferta de novas vagas no mercado de trabalho.
XIV Ameaças
A maior ameaça da terceirização na atividade-fim das empresas é provocar desemprego dos atuais empregados, para que empresa substitua, por menor preço, trabalhadores nas mesmas funções.
O que pode também ocorrer é que a empresa, em vez de seguir os preceitos originários da terceirização, ou seja, utilizá-la para ter condições de focar em seu core-business, no qual detém o brain power, o savoir faire e os neurônios qualificados adequados, passe a terceirizar todo tipo de atividade-fim, desvirtuando seu propósito genético, com o objetivo de gerar ganhos de produtividade e redução de custos.
XV Conclusões
Gostaríamos de iniciar esta conclusão com o excerto do livro de Fábio Konder Comparato:
o reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas. […] Os direitos humanos de proteção do trabalhador são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com os trabalhadores. Não é de admirar, assim, que a transformação radical das condições de produção do final do século XX, tornando cada vez mais dispensável a contribuição da força de trabalho e privilegiando o lucro especulativo, tenha enfraquecido gravemente o respeito a esses direitos em quase todo o mundo.2
Defendíamos sim uma nova lei de terceirização que assegurasse, preservasse e garantisse direitos conquistados e incorporados ao patrimônio jurídico do trabalhador, e não de uma lei que pudesse deixar praticamente tudo em aberto, sem qualquer amarra, como a Lei nº 13.429/2017.
Admitíamos que se fosse chegada a hora de o Brasil ter uma lei da terceirização, que esta efetivamente viesse a cumprir seu papel político, econômico e social, não se constituindo em um cheque em branco ou uma porteira aberta, sem amarras, para a consecução de ilícitos na seara laboral, estimulando ainda mais o volume das ações no Judiciário trabalhista.
Na comparação dos projetos de lei, o PL nº 4.302/98 da Câmara, que levou à promulgação da Lei nº 13.429/2017 e o PLC nº 30/2015 do Senado Federal, não resta a menor dúvida de que o projeto do Senado trazia um mínimo de direitos que deveriam ser preservados aos trabalhadores terceirizados.
Entretanto, a Lei nº 13.429/2017 deixou ao largo o cerne da questão: a atividade-fim.
O retrato do terceirizado atual no Brasil, objeto de toda esta discussão, é o de: um trabalhador invisível, abstrato, sem identidade própria em seu ambiente laboral, sem plano de carreira, que não incorpora conhecimento técnico, que no quadro atual não tem condições de evoluir profissionalmente e materialmente.
Diante deste quadro, a Lei nº 13.429/2017, como sancionada e promulgada, refoge ao mínimo do que se podia esperar de uma nova lei, pois não se compatibiliza com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do valor social do trabalho, da função social do contrato, da propriedade e do meio ambiente, pois constituem direitos humanos fundamentais, que formam uma camada de direitos essenciais, que já se incorporaram ao patrimônio jurídico dos trabalhadores brasileiros, como se fossem uma segunda natureza. Não há como retirá-los.
Na verdade a Lei nº 13.429/2017 não leva em consideração as ameaças à mercantilização da pessoa humana, sua coisificação, que poderia suscitar uma total indiferença em relação aos mais pobres e desamparados, ou seja, verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana e outorga de um cheque em branco ao empresariado, uma verdadeira porteira aberta a todo tipo de ilicitude na seara da terceirização desenfreada, ilimitada, irrestrita, produto de quem considera inútil a Justiça do Trabalho, que não deveria nem mesmo existir no Brasil.
Se a igualdade essencial da pessoa humana constitui o núcleo basilar do conceito universal de direitos humanos, não obstante a verificação das diferenças individuais, coletivas ou grupais, de ordem biológica, cultural e social, a Lei nº 13.429/2017 cuida de pôr fim a esse postulado, na medida em que ataca, desconstrói ou afasta o derradeiro bastião de proteção desta classe trabalhadora, construída ao longo de lutas e conquistas de várias décadas: a proibição da contratação ilimitada, irrestrita, sem amarras em todas e quaisquer atividades-fim.
Diante deste quadro, encerramos este trabalho, destacando a máxima de Sólon, legislador, orador, poeta e estrategista grego, que viveu no ano de 568 antes da era cristã, para quem: “O Estado mais bem administrado era aquele no qual as pessoas que não fossem ofendidas exigissem a reparação de uma injúria feita a outrem, como se eles mesmos a tivessem recebido”, com o qual, cremos, Kant se inspirou para criar o imortal e contemporâneo princípio teleológico, de que o homem é um fim em si mesmo, jamais meio, ensejando o reconhecimento e imortalização do princípio da dignidade da pessoa humana.
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