Texto publicado na edição 176 da revista Fórum de Contratação e Gestão Pública
Guilherme Jardim Jurksaitis
Carolina Souza Mariz Maia
Em 2006, o Estatuto Jurídico das Microempresas (Lei Complementar nº 123) criou importantes incentivos às microempresas1 que atuam no mercado das compras públicas, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Entre eles, vale destacar a previsão de prazo extra para a regularização de sua situação fiscal e o que se convencionou chamar de empate ficto, que se dá quando, numa licitação, a microempresa termina com preço até 10% superior ao da licitante melhor colocada “não microempresa” (art. 44, §1º, da LC nº 123/06 –2 para licitações na modalidade de pregão, esse percentual cai para 5%, conforme o art. 44, §2º).3
Até a entrada em vigor da Lei Complementar Federal nº 147/14, publicada em 7.8.2014 para alterar a LC nº 123/06, essas e outras condições especiais conferidas às microempresas poderiam ou não ser adotadas nas licitações promovidas por cada ente da Federação, pois estavam condicionadas à previsão nas legislações locais e nos respectivos editais de cada ente. Era uma providência discricionária dos entes federativos adotarem ou não os benefícios criados para as microempresas.
Mas esse quadro mudou com a edição da sobredita Lei Complementar Federal nº 147/14. A partir dela, na falta de lei local conferindo tratamento diferenciado e mais benéfico às microempresas, ou mesmo se os editais de licitação se mantiverem omissos quanto a isso, devem ser aplicadas as disposições constantes da legislação federal (art. 47 e parágrafo único).4 Em suma, estados e municípios passaram a ser obrigados a beneficiar microempresas em suas contratações públicas. Virou dever o que antes era mera faculdade de cada ente federativo.
É verdade que a lei modificadora preservou dispositivo que afasta o tratamento privilegiado às microempresas nas hipóteses em que não houver ao menos 3 “fornecedores competitivos enquadrados como microempresas sediados local ou regionalmente” ou nos casos em que “o tratamento diferenciado não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado” (art. 49, II e III).5
O presente artigo procura apontar, de modo sucinto, algumas das principais dúvidas e polêmicas que surgiram desde a entrada em vigor da LC nº 147/14. Para tanto, tomou como base de pesquisa a jurisprudência recente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Sem a pretensão de estabelecer um recorte metodológico preciso, ou de esgotar os casos decididos pelo TCE-SP, verificou-se como temas mais frequentes: (a) a comprovação da condição de microempresa; (b) o empate ficto; (c) a prioridade de contratação de microempresas com sede no local ou na região do certame; (d) a realização de certames exclusivos para microempresas; e (e) a previsão de cotas para microempresas nas aquisições de bens e serviços divisíveis. A partir deles, foram eleitos casos ilustrativos, que exemplificam o entendimento da Corte de Contas paulista sobre os temas acima. Reitera-se que não se trata de uma análise exaustiva da jurisprudência do Tribunal, mas de um panorama geral sobre seu entendimento no momento.
Sobre a comprovação da condição de microempresa, o Tribunal tem admitido, sem maior aprofundamento, a mera declaração de enquadramento pelas próprias licitantes, com a ressalva de que possível declaração falsa fosse punida, conforme previsão na legislação.6 Assim, parece ter prestigiado a abertura concedida pela Lei Complementar nº 123/06, que não estabeleceu as exigências a serem feitas nos editais de licitação para comprovar o status de microempresa das licitantes7 (Tribunal Pleno, TC-1085/989/14-3, Rel. Cons. Dimas Eduardo Ramalho, sessão de 30.4.2014; Tribunal Pleno, TC-435/989/15-7, Rel. Cons. Renato Martins Costa, sessão de 17.3.2015).
A situação é diferente do tratamento conferido a outras exigências que podem ser feitas pelos editais, conforme as peculiaridades de cada contratação. Um exemplo dessa situação é o pedido de apresentação de balanço patrimonial, que encontra amparo no art. 31 da Lei de Licitações8 e cuja observância não foi excepcionada pela LC nº 123/069 (Tribunal Pleno, TC-4238/989/15-6, Rel. Cons. Sidney Estanislau Beraldo, sessão de 16.9.2015). Vê-se que o TCE-SP sinaliza que a comprovação da condição de microempresa pode ser feita de muitas formas, mitigando o formalismo, sem afastar a cobrança de outras exigências tradicionalmente feitas na fase de habilitação.
Quanto ao empate ficto, já referido acima, está claro que o percentual de 5% ou 10% deve, conforme o caso, ser aplicado sobre o valor final vencedor do certame – nas licitações na modalidade de pregão, isso se dá após a declaração do lance vencedor (Sentença, TC-2201/989/13-4, Cons. Robson Marinho, j. 13.2.2014).10
Todavia, há dúvidas sobre o emprego desses percentuais em licitação com critério de julgamento por técnica e preço. É que a leitura do art. 44, §1º,11 permite indagar se o benefício deve ser aplicado em relação ao “melhor preço”, excluindo a nota técnica, ou sobre a “proposta mais bem classificada”, incluindo a ponderação entre a nota técnica e o preço oferecido. Apesar da discussão, o TCE-SP já reconheceu que o benefício incidirá sobre a proposta final, alcançada após a ponderação entre os fatores técnica e preço (Tribunal Pleno, TC-4734.989.14, Rel. Cons. Antonio Roque Citadini, sessão de 12.11.2014).12
Ao lado do empate ficto, passou a existir também uma “prioridade de contratação” para microempresas com sede no local ou na região do certame, que vale quando o preço oferecido por microempresa for até 10% superior ao do primeiro colocado na licitação. Ao contrário dos benefícios acima mencionados, a prioridade de contratação encontra-se no campo da discricionariedade da Administração, que pode ou não optar por prevê-la em seus editais, devendo sua escolha ser justificada (art. 48, §3º).13
Assentou-se que, nesses casos, “não cabe direcionamento prévio e irrestrito” da licitação para microempresas, aplicando-se o benefício quando, ao término da disputa, se verificar que microempresa instalada “no local ou na região” do certame se encontra em condição apta a usufruir da prioridade. É dizer, o certame se dá normalmente, aberto a todos quantos queiram dele participar, preferindo-se, no entanto, a contratação de microempresa cujo preço final se encontre até 10% acima do oferecido pelo primeiro colocado não microempresa (Tribunal Pleno, TC-5509/989/15-8, Rel. para o acórdão Cons. Renato Martins Costa, Rel. originário subs. Cons. Samy Wurman, sessão de 16.9.2015).14
Diferentemente do empate ficto, em que a microempresa que se encontre dentro da margem percentual é chamada a reduzir sua oferta para cobrir a do primeiro colocado, sob o risco de a Administração não celebrar o contrato, a “prioridade de contratação” confere à microempresa com sede no local ou na região da licitação o direito de ser contratada mesmo se o seu preço final for até 10% superior ao do melhor preço ofertado. A Administração contrata mais caro para beneficiar a microempresa. É a expressão maior da “bolsa microempresa”.15
Já a “cota microempresa” está prevista no art. 48, I e III,16 e pode ser classificada em duas modalidades. A primeira, do art. 48, I, é a licitação exclusiva; a segunda, do art. 48, II, é a cota parcial. Segundo esses dispositivos, deverá ser promovida licitação exclusiva para microempresa quando o valor dos “itens de contratação” não ultrapassar o montante de R$80.000,00. Adicionalmente, nos certames envolvendo bens divisíveis, a Administração deverá prever cota parcial de “até 25% do objeto para contratação de microempresas”.
Os benefícios são análogos, mas não se confundem. No primeiro caso, de licitação exclusiva, a cota vale quando o valor do objeto licitado, considerado em seu conjunto, não ultrapassar a soma de R$80.000,00. A segunda hipótese se aplica nas licitações para aquisição de bens divisíveis, nas quais o fracionamento do objeto não importar em prejuízo à Administração (art. 49, III).
Atento a esse aspecto, o TCE-SP estabeleceu a distinção. Interpretando a expressão “itens de contratação” como o conjunto indivisível que compõe o objeto do certame, em lote único, assentou-se que, quando o valor estimado não ultrapassar a soma de R$80.000,00, aplica-se o benefício da licitação exclusiva para microempresas (art. 48, I). Diferentemente, quando se tratar de licitação com valor superior a esse, e que ao mesmo tempo envolva bens de natureza divisível, vale o benefício da cota de 25% (art. 48, III) (Tribunal Pleno, TC-5509/989/15-8, Rel. para o acórdão Cons. Renato Martins Costa, Rel. originário subs. Cons. Samy Wurman, sessão de 16.9.2015).17
Isso significa que nas licitações de até R$80.000,00, em lote único e independentemente da natureza do objeto, a lei autoriza que se reserve a licitação unicamente para microempresas, mas, quando o orçamento estimado ultrapassar esse valor, e se tratar de bens divisíveis, deve-se separar até 25% do quantitativo para disputa exclusiva entre microempresas.
Esses instrumentos parecem criar uma reserva artificial do rentável mercado das contratações públicas. Será que, com tantos benefícios, empresas maiores podem ser incentivadas a se converter a microempresas? Ou, pior, a usar de empresas com essa roupagem para ganhar espaço no mercado público?18
Se de um lado a norma que autoriza a não aplicação dos benefícios instituídos às microempresas confere (ou devolve) algum grau de discricionariedade ao gestor responsável, de outro transforma em ônus dele justificar e demonstrar que o regime diferenciado para microempresas, em dado caso concreto, pode ser prejudicial para a Administração.
Por isso, é pertinente refletir: nos casos em que a Administração deixar de prever em seus editais o regime privilegiado para microempresas, com fundamento nas referidas exceções, ela teria o dever de responder prévia e publicamente às questões acima? Ou, na ausência de menção aos benefícios da Lei Complementar nº 123/06 no corpo do edital, deve-se presumir que o juízo sobre a conveniência de sua aplicabilidade foi adequadamente feito?
Voltando ao que se afirmou no início do artigo, vale repetir que a LC nº 123/06 afasta o tratamento privilegiado às microempresas nas hipóteses em que não houver ao menos três “fornecedores competitivos enquadrados como microempresas sediados local ou regionalmente” ou nos casos em que “o tratamento diferenciado não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado” (art. 49, II e III).
Mas são muitas as dúvidas para saber em que circunstâncias a Administração Pública pode se socorrer dessas exceções. O que são “fornecedores competitivos”? Qual é a abrangência geográfica para definir empresas “sediadas local ou regionalmente”? No contexto em análise, como definir o que é ou não “vantajoso para a Administração Pública”? E “prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto”? E quais documentos seriam aptos a comprovar tal vantagem ou prejuízo? Princípios abstratos não respondem a essas indagações.
Essas provocações terão de ser enfrentadas pela Administração Pública e pelos órgãos de controle, em especial, pelos Tribunais de Contas quando provocados a se manifestar em sede de exame prévio dos editais de licitação (art. 113, §2º, da Lei de Licitações).19
Tome-se como exemplo o caso de microempresa interessada em participar de uma licitação municipal, cujo edital não contemplou algum ou todos os benefícios previstos na LC nº 123/06. A fim de fazer valer os benefícios conferidos pela LC, socorre-se ao Tribunal de Contas competente pleiteando que se determine a correção do edital.
Na ausência de esclarecimentos, no corpo do edital, sobre as exceções à aplicabilidade do regime privilegiado, como deve se comportar o órgão de controle? Em caso assim, quais critérios devem ser considerados pelo controlador?
E se o edital, por rara circunstância, contiver um anexo explicitando as razões pelas quais a Administração promotora do certame, aplicando as exceções do art. 49, II e III, deixou de prever no edital as normas atinentes ao regime privilegiado? Poderá o Tribunal de Contas adentrar no exame das referidas razões?
Note-se que a atuação dos órgãos de controle em casos tais não é simples. A dúvida não pode levar à insegurança jurídica ou à paralisação imotivada das licitações públicas. O que está em jogo, a priori, mesmo nos mercados menores, é o atendimento de necessidades púbicas básicas, como exemplo, a aquisição de merenda escolar, hortifrutigranjeiros, material de escritório e de medicamentos – itens que em razão de sua divisibilidade poderiam ser subdivididos para cumprir a cota reservada às microempresas (art. 48, I e III, da LC nº 123/06).
Vale anotar, por fim, que, embora relevantes, as controvérsias apresentadas ao TCE-SP a partir do novo regramento não se revelam potencialmente danosas aos negócios públicos – ao menos de per se – e tampouco provocaram no órgão de controle uma postura açodada ou intervencionista. Mas isso não esclarece outro aspecto igualmente relevante, que é o de saber se os benefícios instituídos às microempresas gerarão bons resultados para os negócios públicos e a economia do país, desiderato maior buscado pelo legislador. A experiência dirá.
Decisões citadas
Sentença, TC-2201/989/13-4, Cons. Robson Marinho, j. 13.2.2014.
Tribunal Pleno, TC-1085/989/14-3, Rel. Cons. Dimas Eduardo Ramalho, sessão 30.4.2014.
Tribunal Pleno, TC-2989/989/14-6, Cons. Cristiana de Castro Moraes, sessão 26.2.2014.
Tribunal Pleno, TC-4238/989/15-6, Rel. Cons. Sidney Estanislau Beraldo, sessão 16.9.2015.
Tribunal Pleno, TC-435/989/15-7, Rel. Cons. Renato Martins Costa, sessão 17.3.2015.
Tribunal Pleno, TC-4734.989.14, Rel. Cons. Antonio Roque Citadini, sessão 12.11.2014.
Tribunal Pleno, TC-5241/026/10, Cons. Cláudio Ferraz de Alvarenga, sessão 5.5.2010.
Tribunal Pleno, TC-5509/989/15-8, Rel. para o acórdão Cons. Renato Martins Costa, Rel. originário subs. Cons. Samy Wurman, sessão 16.9.2015.