Iara Alves de Paiva Lima – advogada
1 Introdução
O ano de 2015 se inicia com importante alteração nas normas de Direito Administrativo. Trata-se da Lei nº 13.097, publicada em 20.01.2015, que acrescentou o art. 27-A à Lei nº 8.987/95, a qual estabelece o regime geral de concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos, conforme previsto no art. 175 da Constituição Federal.
É importante ressaltar que o ordenamento jurídico atual conta com duas leis de concessão e permissões: a de n. 8.987/95, que estabelece o regime geral, e a Lei nº 9.074/95. Embora o art. 1º desta segunda lei leve a crer que se trata de um diploma complementar à Lei Geral, na verdade trata-se de um sistema relativamente autônomo, específico para algumas espécies de concessão ou permissão (art. 1º): vias federais, precedidas ou não da execução de obra pública; exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções, eclusas ou outros dispositivos de transposição hidroviária de níveis, diques, irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas; estações aduaneiras e outros terminais alfandegados de uso público, não instalados em área de porto ou aeroporto, precedidos ou não de obras públicas; os serviços postais.
Tendo em vista que a Lei nº 13.097/2015 alterou apenas a Lei Geral de Concessões de Permissões, a primeira impressão é a de que tais alterações não afetaram a outra Lei (nº 9.074/95). Entretanto, como esses diplomas são comunicantes em alguns aspectos, os efeitos da inserção do art. 27-A na Lei nº 8.987/95 pode acabar por afetar a Lei nº 9.074/95. De todo modo, como se trata de mudança legislativa recente, a jurisprudência levará um longo tempo para afirmar se a mudança afeta ou não as duas leis.
Para o momento, cumpre examinar as alterações ocorridas na Lei Geral sem cogitar de possíveis reverberações para outros diplomas.
2 Vigência
Conforme o art. 168, inciso V, da Lei nº 13.097/2015, a inserção o art. 27-A na Lei Geral de Concessões e Permissões está em vigor desde a publicação da lei que promoveu a alteração, isto é, desde 20.01.2015.
3 Inovações e polêmicas do art. 27-A da Lei nº 8.987/95.
3.1 Caput
Estabelece o caput do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões:
Nas condições estabelecidas no contrato de concessão, o poder concedente autorizará a assunção do controle ou da administração temporária da concessionária por seus financiadores e garantidores com quem não mantenha vínculo societário direto, para promover sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços.
O §2º do art. 27 da Lei Geral já previa a possibilidade de que os financiadores da concessionária assumissem seu controle. Todavia, tal dispositivo não autorizava a seus garantidores que o fizessem. Tal aspecto, portanto, constitui uma inovação do art. 27-A.
Outra inovação é que o §2º do art. 27 falava em assunção do controle da concessionária. Já o novo art. 27-A fala em assunção do controle ou administração temporária. Trata-se de uma mudança relevante. A expressão “controle” remete à estrutura acionária da empresa, enquanto a expressão “administração” geralmente não implica em mudança nessa estrutura, restringindo-se à gestão sem que se altere o quadro acionário.
Há outra alteração mais sutil, porém de implicações bem mais sérias. O caput do art. 27-A diz que o controle ou administração da concessionária só poderá ser transmitido a financiadores ou garantidores com quem a empresa não mantenha vínculo societário direto. Essa norma não constava dos parágrafos do art. 27 e, numa primeira leitura, pode soar como uma proibitiva. Mas, na verdade, trata-se de uma norma permissiva. O que o dispositivo está a dizer é que o controle ou a administração indireta da concessionária pode ser transmitido a uma empresa com a qual ela mantém vínculo acionário indireto.
Pode-se indagar sobre a razão que levou o legislador a se utilizar de uma linguagem indireta, ambígua, para estabelecer uma norma permissiva. Existem duas razões prováveis para isso. A primeira é que existem normativos infralegais referentes a instituições financeiras ou entidades de fomento que proíbem ou desaconselham que tais instituições ou entidades financiem ou garantam operações de empresas com as quais mantêm algum vínculo acionário, direto ou indireto. A razão para isso é evitar o autofinanciamento ou a autogarantia, que são procedimentos perigosos. Tais proibições já bastariam para explicar o porquê de o legislador ter usado uma linguagem enviesada nesse dispositivo. No entanto, há uma segunda razão provável. A jurisprudência, tanto trabalhista quanto cível, vem desconsiderando a autonomia de pessoas jurídicas que, de alguma forma, são ligadas para atribuir obrigações de uma a outra. Com tal procedimento, os tribunais vêm tentando impedir que, por meio de maquiagens ou subterfúgios acionários, grupos empresariais se furtem a obrigações.
Na jurisprudência do STJ, há dois acórdãos emblemáticos no sentido de desconsiderar a configuração acionária da empresa ré para alcançar outra empresa ligada a ela: (Terceira Turma, MC 15526 / SP, julg. 22.09.2009; Terceira Turma, AgRg no AREsp 80040 / RJ, julg. 17.04.2012).
Por essa razão, a ênfase dada pelo legislador à inexistência de vínculo entre a instituição que assumirá o controle e a empresa concessionária tenha sido uma tentativa de impedir que o Judiciário atribua obrigações da concessionária à instituição que assumirá seu controle.
3.2 Parágrafo 1º
Estabelece o §1º do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões:
Na hipótese prevista no caput, o poder concedente exigirá dos financiadores e dos garantidores que atendam às exigências de regularidade jurídica e fiscal, podendo alterar ou dispensar os demais requisitos previstos no inciso I do parágrafo único do art. 27.
Este dispositivo reproduz o que já estabelecia o §3º do art. 27 da mesma lei. Há, entretanto, uma imprecisão nesta nova regra. Ela faz referência a um parágrafo único do art. 27. Entretanto, o artigo 27 não possui parágrafo único, e sim um §1º. Tal erro será provavelmente retificado em nova publicação da Lei nº 13.097/2015.
Independente do erro apontado acima, que por certo será corrigido em breve, o fato é que a norma do §1º do novo art. 27-A padece da mesma fragilidade jurídica da qual já padecia a norma anterior: a possibilidade de burla às normas licitatórias das concessões e permissões.
Para que uma empresa ou consórcio sejam habilitados em certame licitatório para obter concessão ou permissão, é preciso que cumpram exigências de regularidade jurídica e fiscal, bem como exigências de capacidade técnica e idoneidade financeira. Ocorre que a empresa que assumirá o controle ou administração da concessionária não precisa cumprir exigências de capacidade técnica e idoneidade financeira. Isso abre uma porta para que a licitação seja burlada, pois, para que a concessão ou permissão termine nas mãos de uma empresa sem condições de se habilitar no certame, bastará que outra empresa, que reúna condições de participar, vença o certame, e depois tenha seu controle ou administração transmitida à primeira, que não tinha condições de concorrer.
3.3 Parágrafo 2º
Estabelece o §2º do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões:
A assunção do controle ou da administração temporária autorizadas na forma do caput deste artigo não alterará as obrigações da concessionária e de seus controladores para com terceiros, poder concedente e usuários dos serviços públicos.
Em parte, esta norma já estava contida no §4º do art. 27 da Lei Geral. Entretanto, a mudança ampliou substancialmente a norma anterior. O §4º do art. 27 já dispunha que a assunção do controle não alterava as obrigações da concessionária e de seus controladores ante ao poder concedente. Por sua vez, o §2º do novo art. 27-A dispõe a assunção do controle ou da administração temporária não altera as obrigações da concessionária e de seus controladores não só em relação ao poder concedente, mas também em relação a terceiros e aos usuários.
3.4 Parágrafo 3º
Estabelece o §3º do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões.
Configura-se o controle da concessionária, para os fins dispostos no caput deste artigo, a propriedade resolúvel de ações ou quotas por seus financiadores e garantidores que atendam os requisitos do art. 116 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
Esse dispositivo confirma o que foi dito no item 3.1 quanto à estrutura acionária da empresa que se sujeitará a controle. O controlador passará a ser proprietário das ações ou quotas da empresa titular da concessão, diferentemente do que ocorrerá na administração temporária. Há, todavia, uma questão contábil que este dispositivo deixa pendente.
A propriedade do controlador sobre as ações ou quotas da concessionária é resolúvel. Assim, conforme a exegese majoritária do art. 1.359 do Código Civil, que rege essa modalidade de domínio, o controlador será considerado titular dessas ações ou quotas enquanto não se implementar a condição ou termo que resolverá a propriedade. Sendo assim, o controlador poderá lançar esses ativos em seu balanço? A resposta, a princípio, é positiva, mas como ficará o balanço da concessionária? Ela poderá lançar esses ativos, ainda que em outra classificação contábil, enquanto perdurar o controle?
Quanto à referência ao art. 116 da Lei nº 6.404 (Lei das Sociedades Anônimas), trata-se de dispositivo que impõe deveres ao controlador. Em resumo, o que esse dispositivo estabelece é que o controlador, embora vá ocupar a posição de acionista apenas por certo período, deverá atuar como se sócio permanente fosse, com absoluta fidelidade aos objetivos da companhia e com transparência em relação aos demais sócios.
3.5 Parágrafo 4º
Estabelece o §4º do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões:
Configura-se a administração temporária da concessionária por seus financiadores e garantidores quando, sem a transferência da propriedade de ações ou quotas, forem outorgados os seguintes poderes:
I – indicar os membros do Conselho de Administração, a serem eleitos em Assembleia Geral pelos acionistas, nas sociedades regidas pela Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976; ou administradores, a serem eleitos pelos quotistas, nas demais sociedades;
II – indicar os membros do Conselho Fiscal, a serem eleitos pelos acionistas ou quotistas controladores em Assembleia Geral;
III – exercer poder de veto sobre qualquer proposta submetida à votação dos acionistas ou quotistas da concessionária, que representem, ou possam representar, prejuízos aos fins previstos no caput deste artigo;
IV – outros poderes necessários ao alcance dos fins previstos no caput deste artigo.
A contradição deste dispositivo consiste em que, embora tente diferenciar administração temporária de controle, ele acaba por conceder ao administrador temporário poderes semelhantes aos dos controladores, e muito superiores aos dos sócios da concessionária. Para constatar tal contradição, basta comparar os poderes aqui concedidos aos administradores temporários com os poderes que a Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76) concede à assembleia geral de acionistas (art. 122).
3.6 Parágrafo 5º
Estabelece o §5º do art. 27-A da Lei Geral de Concessões e Permissões.
A administração temporária autorizada na forma deste artigo não acarretará responsabilidade aos financiadores e garantidores em relação à tributação, encargos, ônus, sanções, obrigações ou compromissos com terceiros, inclusive com o poder concedente ou empregados.
A questão que este dispositivo deixa pendente deriva da contradição abordada no item 3.5. O §4º concedeu aos administradores temporários poderes praticamente equivalentes aos dos controladores. Por outro lado, o §5º os isenta de qualquer responsabilidade pela gestão da empresa. Desse modo, verifica-se uma profunda assimetria entre os poderes e os deveres que a lei atribui a esses administradores.
Saiba mais
4 Conclusão
Sabidamente, o governo federal passa por um profundo ajuste fiscal, que deverá comprometer ainda mais o montante de investimentos, que já tem sido baixo há décadas. Por essa razão, a tendência é que neste ano de 2015 a esfera federal, bem como a estadual e a municipal, valham-se enormemente dos instrumentos jurídicos que permitem o aporte de investimento privado a obras e serviços de caráter público. Com isso, embora as alterações aqui tratadas da Lei Geral de Concessões e Permissões sejam muito recentes, não tardarão a surgir casos relacionados a elas, que permearão a doutrina e a jurisprudência de Direito Administrativo.