Mensagens e mensageiros: privacidade e confiança em tempos de disrupção tecnológica | Coluna Direito Civil

3 de maio de 2022

Coluna Direito Civil

 

As novas tecnologias propiciaram um leque maior de dispositivos para nos comunicarmos. Entretanto, isso não significa que nossa comunicação se dê de forma certeira, ágil e eficaz. Tudo depende de como fazemos. Quando se fala em tecnologia, a primeira coisa que vem à mente são imagens de circuitos, engrenagens, telas e, mais recentemente, dados que abarrotam nuvens e revelam históricos, gostos e preferências de um usuário em apenas um clique. No entanto, o caminho para chegar até aqui foi longo e, não raras vezes, tortuoso. Não é de se admirar que ainda hoje esteja-se traçando este percurso, na esperança de esclarecer muitas dúvidas: as que restam e as que surgem constantemente a cada nova descoberta.

Na era da internet, onde mensagens cruzam o mundo o tempo inteiro, garantir a segurança delas tornou-se uma preocupação constante de muitas sociedades. Depois de um período de certo distanciamento, os seres humanos se voltam novamente para a busca dos mensageiros perfeitos. Desta vez em forma de bites e códigos binários. Não se deve esquecer que cada pessoa é portadora de mensagens e que deve também ter responsabilidade por elas. Com a chegada das redes sociais, cada vez mais pessoas ampliam seus papéis como mensageiros. Enquanto umas estão cientes de tal responsabilidade, outras parecem não se importar muito com isso. Quando fazemos uso dessas redes, acontece um choque entre mensageiros: a pessoa que digita e a plataforma que publica e que pode, às vezes de maneira aparentemente arbitrária, agir como censor. Quando uma pessoa publiciza seus pensamentos, será que essas mídias têm a capacidade ou a competência para dizer o que se pode postar e o que não pode? Que autoridade é essa que eles têm de censurar isso?[1]

Atualmente, as barreiras que separavam o espaço privado do espaço público foram implodidas. Antes, mutuamente excludentes, hoje são praticamente complementares, como um quarto precisa de uma janela para deixar ar e luz entrar e uma janela precisa de uma parede que a sustente em sua função de deixar ver o que há dentro e o que há fora. Em seu trabalho, a antropóloga Paula SIBILIA faz uma interessante genealogia da intimidade e do espaço privado dos sujeitos dos séculos XIX e XX, e o que veio a ser denominado de extimidade.

De forma clara e envolvente, a autora mostra como a intimidade estava relacionada com tudo o que podia se desenvolver no espaço privado. A casa é o emblema desse espaço, onde cada sujeito poderia se isolar, em silêncio e solidão. Esse isolamento proporcionava condições adequadas para se desenvolver uma série de atributos, comportamentos e qualidades que eram consideradas importantes. Essa dimensão privada era tão valiosa que a sua exposição era vista como uma atitude de descuido. As pessoas tinham que se preservar do olhar dos outros por meio não apenas das paredes do lar, como também de uma série de válvulas morais, como o pudor, a discrição e o decoro. As paredes da casa eram parte da constituição da subjetividade.

Ao comparar com tudo o que acontece na contemporaneidade, fica claro que houve uma ruptura desse modo comportamental. A internet e os meios midiáticos se sofisticaram e se expandiram. No começo dos anos 2000 houve a explosão dos blogs, que eram utilizados como diários íntimos e onde as pessoas contavam detalhes sobre suas vidas. Na televisão, o Big Brother virou febre com a exposição voluntária de seus participantes e o Facebook e o Instagram mostram de tudo: desde a comida bem arrumada até as propagandas que fazem a roda do mundo econômico girar.

Por conta disso, está cada vez mais difícil falar de intimidade nos espaços público e privado. A voraz corrida por curtidas e compartilhamentos enfraqueceu a solidez das paredes e ampliou vertiginosamente a construção de janelas. O espaço doméstico agora extrapola as fronteiras, antes rígidas, das paredes, das portas, das cortinas. A intimidade se mostra, tem vontade e ânsia por se exibir, e acaba cedendo à tentação da extimidade. O que se vê então é a normalização de uma espécie de teatro que ganha forma de uma tela, ou mais precisamente, de janelas (ou Windows), que servem para se mostrar, para exibir cenas da antiga intimidade. “Nesse monopólio da aparência e da quantificação dos likes, tudo o que ficar no escuro simplesmente não é”[2].

No mundo hiperconectado de hoje, os dados acabaram por se transformar numa importante moeda de troca bastante valiosa. Um tesouro que geralmente é entregue de bom grado em troca de uma melhor experiência no uso do mundo virtual. Não é à toa que se diz que os dados são o novo petróleo, pois são eles os geradores de receita de muitas empresas de tecnologia. Por isso, a observação atenta e a regulamentação sobre o que é feito com eles é assunto atual e ainda está em andamento. Na falta de medidas realmente efetivas na decisão sobre o que se pode e o que não se pode fazer com os dados coletados e voluntariamente entregues, a privacidade tem se tornado um commodity que poucos conseguem manter.

Antes mesmo da entrada em vigor da LGPD em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado para resolver a constitucionalidade da Medida Provisória nº 954. Essa MP versava sobre a liberação do compartilhamento de dados pessoais por empresas de telefonia com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O voto da relatora Ministra Rosa Weber foi no sentido da imprecisão de como esses dados coletados seriam usados e para qual finalidade, o que foi acatado por maioria, tendo como único divergente o Ministro Marco Aurélio[3]. Quando o usuário cede seus dados para as operadoras de telefonia fixa e celular, espera-se que eles sejam utilizados somente por elas, tendo uma finalidade o uso daquelas informações. Nenhum órgão público deveria usar de seu status para receber e utilizar informações que os usuários forneceram para terceiros.

Outras situações abusivas podem ocorrer. O que se vê por notícias dos últimos tempos é que muitas empresas têm tentado se conformar à LGPD. Mas, algumas delas, ainda não fazendo as adequações necessárias, acreditaram que não receberiam nenhuma sanção administrativa (pois contavam com o período de vacatio legis em relação aos dispositivos sancionatórios); no entanto, muitas acabaram recebendo sanções judiciais[4].

O começo do ano de 2021 foi marcado pelo megavazamento de dados (constituídos por dois vazamentos): dados relativos ao CPF (nome, data de nascimento e endereço), fotos de rosto, imposto de renda de pessoa física, dados cadastrais de serviços de telefonia, escolaridade, dados relativos a servidores públicos, benefícios do INSS, score de crédito e informações do LinkedIn, num total de 223 milhões de informações de brasileiros[5]. Ainda não se sabe como se deu esse vazamento nem a origem dos dados. Para deixar a situação mais complicada, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, funciona a passos lentos. Além disso, não é autônoma, não possui dotação orçamentária, estando subjugada ao Poder Executivo[6].

Percebe-se que a LGPD, sozinha, não dá conta. Como aponta Ronaldo LEMOS et al., “deve-se atentar para o fato de que parte do sucesso da LGPD dependerá diretamente da prometida independência de fato da ANPD e de nomeações técnicas e representativas para esta Autoridade”[7]. Para impedir que situações complicadas como essas voltem a acontecer, ou para que pelo menos haja uma atuação mais dura caso aconteçam, será preciso uma atuação forte da ANPD. Situação que, até o momento, não se tornou realidade.

O funcionamento das relações entre sociedade e tecnologia, abrindo caminhos para discutir questões como privacidade e segurança, precisa ser primeiramente compreendido como resultado de um longo processo histórico que envolve também a natureza e o desenvolvimento das capacidades humanas. Refletir sobre estes assuntos é se colocar diante não só de problemas concretos, mas também de todo um fundo histórico e teórico que está muito além do que os olhos podem ver.

Diante de toda problemática que decorre das inúmeras transformações tecnológicas e sociais, é preciso estimular o pensamento e a reflexão sobre a importância da privacidade no intuito de resgatá-la, entendendo-a, inicialmente, como algo do qual não podemos abrir mão e que não pode ser abandonado, mesmo em prol dos efêmeros prazeres do mundo virtual.

 

 

Marco Antonio Lima Berberi
Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professor na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil-Constitucional da UFPR – Grupo Virada de Copérnico e do Grupo de Pesquisa CNPQ NUPECONST – UniBrasil, linha de pesquisa: direitos fundamentais e relações privadas. Advogado e Procurador do Estado do Paraná.

 

Joyce Finato Pires
Mestranda em Direitos Fundamentais e Democracia (Linha de Pesquisa Constituição e Condições Materiais da Democracia) pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP) da CAPES. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Constitucional – NUPECONST do PPGD do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil-Constitucional da UFPR (Grupo Virada de Copérnico).

 

[1] Aqui não se quer dizer que se pode expressar qualquer coisa. Há limites para tudo, entre elas as apologias e a prática de ilicitudes.
[2] SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2. ed. e rev. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016, p. 151.
[3] POMPEU, Ana. Rosa Weber suspende envio de dados de usuários de telefones ao IBGE. Disponível em: <https://bit.ly/2SnyxNP>. Acesso em: 28 mar. 2021.
[4] COUTINHO, Dimitria. Ao menos oito vazamentos de dados aconteceram no Brasil em 2021; quem é punido? Ig. Disponível em: <https://bit.ly/3366ZOR>. Acesso em: 28 mar. 2021.
[5]G1. Megavazamento de dados de 223 milhões de brasileiros: o que se sabe e o que falta saber. Disponível em: <https://glo.bo/3rP0oSK>. Acesso em: 03 abr. 2021.
[6] DE LUCCA, Newton; MACIEL, Renata Mota. A proteção de dados pessoais no Brasil a partir da Lei 13.709/2018: efetividade? In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direito privado e internet. 3. ed., atual., rev. e ampl. de acordo com a Lei nº 13.709/2018. Indaiatuba: Editora Foco, 2020, p. 211-228.
[7] LEMOS, Ronaldo; DOUEK, Daniel; LANGENEGGER, Natalia; ZANATTA, Rafael A. F.; FRANCO, Sofia Lima; SOUZA, Isabela Garcia de; RIBEIRO, Gabriela Sanches. As mudanças finais da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível em: <https://bit.ly/2RjmqAu>. Acesso em: 03 abr. 2021.

Aprofunde-se sobre o tema

Este texto é uma versão reduzida do artigo “Mensagens e mensageiros: privacidade e confiança em tempos de disrupção tecnológica.” dos autores da FÓRUM, Marco Antonio Lima Berberi e Joyce Finato Pires. O estudo é parte integrante da obra Direito Civil e tecnologia: Tomo II coordenada pelos professores Marcos Ehrhardt Jr, Macos Catalan e Pablo Malheiros, e visa registrar as mudanças nos institutos do direito privado (e as perspectivas para os próximos anos) a partir do impacto das transformações tecnológicas que vivenciamos. Visite nossa loja virtual e conheça este e outros títulos relacionados.

 

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