Famílias Ectogenéticas e a Amplitude/Restrição do Acesso às Técnicas de Reprodução Humana Assistida: uma análise das alterações propostas pela Resolução nº 2.283/20 do CFM à luz do Biodireito | Coluna Direito Civil

Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Advogado. Mediador Extrajudicial. Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE/CNPq) e do Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional – Grupo Virada de Copérnico (UFPR/CNPq). Vice-Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Diretoria de Pernambuco (IBDFAM-PE). Membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco (CDSG/OAB-PE).

 

Falar em reprodução humana assistida (RHA), diante do contexto jurídico brasileiro atual, sem dúvidas, é uma tarefa que demanda um árduo esforço da doutrina jurídica. Afinal, a escassez normativa na matéria é latente, havendo, na seara jusprivatista, um único artigo, o 1.597 do Código Civil de 2002 (CC/02)[1], que se proponha a alguma forma de regulação – voltada apenas à atribuição de presunções de filiação – e, mesmo assim, de abordagem bastante incipiente quando comparada a real complexidade da matéria. Diante desse cenário, o que acaba servindo de parâmetro para a aplicação da RHA são as resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)[2], as quais, cabe aqui frisar, têm um condão meramente deontológico, ou seja, de orientação ética para os profissionais da medicina que aplicam os citados procedimentos, acarretando-lhes sanções administrativas perante seu órgão de classe,  caso venham a desobedecer as previsões ali estipuladas.

Note-se que, se por um lado, esses preceitos, de cunho bioético[3], são cruciais para a apreensão de uma tutela jurídica adequada e que respeite integralmente a pessoa humana submetida a essas relações médico-paciente, de outra sorte, eles não são suficientes para atender aos fins coercitivos pretendidos pelo norma jurídica. Por essa razão, no dizer de Heloisa Helena Barboza (2000, p. 212-213), o desenvolvimento de um ramo próprio, o do Biodireito, deve considerar não apenas tais preceitos éticos, mas também a observância aos Direitos e Garantias Fundamentais postulados na Constituição Federal, tais quais a Dignidade da Pessoa Humana, a Liberdade, a Igualdade, a Solidariedade etc.

Nesse sentido, quando se fala em projetos parentais ectogenéticos, ou seja, aqueles que são concretizados com o auxílio da RHA (PEREIRA, 2015, p. 289), a jurisprudência tem se valido tanto das diretrizes deontológicas estabelecidas pelo CFM, quanto do recurso a principiologia constitucional para fazer valer o estabelecimento de vínculos materno-paterno-filiais entre os beneficiários e as crianças geradas pelo uso dessas técnicas. Inclusive, os esforços do Judiciário, na tentativa de facilitar a viabilização dos registros civis dessas pessoas, levaram à edição, em âmbito nacional, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do provimento nº 52/2016, o qual fora posteriormente substitutído pelo de nº 63/2017, ambos destinados a promover a extrajudicialização desses registros e a consequente proteção dessas entidades familiares, fossem elas heteroafetivas ou homoafetivas.

Corroborando com tais perspectivas, o CFM, atento aos debates nos campos médico, social e jurídico, está constantemente revisitando e revendo suas normativas, a fim de atualizá-las perante as demandas da sociedade. Foi por essa razão, por exemplo, que, a partir de 2013, após o STF ter reconhecido a natureza familiar de uniões entre pessoas de mesmo gênero (ADI nº 4.277/DF e ADPF nº 132/RJ), passou-se a prever expressamente enquanto beneficiários os pares homoafetivos e com eles, também, as pessoas solteiras que desejassem realizar seus projetos individuais de parentalidade. Não obstante, fez-se ressalva expressa ao direito de objeção de consciência dos médicos, o que demanda certos temperamentos do ponto de vista jurídico, pois deverá ser verificada à luz do caso concreto, não podendo ser oposta em casos que violem diretamente à Igualdade e à Liberdade Familiares na proibição a toda e qualquer forma de discriminação que obste o exercício do Livre Planejamento Familiar por tais pessoas.

Ademais, em 2017, inovação trazida pela resolução 2.168/17 foi a possibilidade de realização da preservação social e/ou oncológica de gametas sexuais, embriões ou tecidos germinativos (Item I-2)[4]. Tal disposição foi de extrema importância, sobretudo para os pacientes submetidos a tratamento oncológico, que podem ter como efeito colateral a infertilidade; sendo importante, portanto, o oferecimento dessa alternativa. Além disso, deu a outros pacientes – os quais não tenham a infertilidade diagnosticada ou aqueles submetidos a outros tipos de tratamentos ou que forem acometidos por doenças os quais gerem um quadro de infertilidade – a opção de preservarem seus gametas sexuais, no intuito de desempenharem um projeto parental futuro. Essa mudança foi, inclusive, igualmente benéfica para as pessoas trans que, apesar de não terem constado expressamente da normativa, também estariam autorizadas a valer-se dela, tendo em vista que, quando submetidas a procedimentos de hormonioterapia ou de intervenções cirúrgicas, podem vir a tornarem-se inférteis.

Recentemente, no entanto, foi realizada uma alteração na resolução 2.168/17, através da resolução 2.283/20, que deu nova redação ao Item II-2 daquela, passando a constar da seguinte forma: “2. É permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros”, em substituição ao texto anterior, que dizia: “2. É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico”. Sobre essa mudança, entretanto, em que pese a sua nítida intenção de ratificar a amplitude de acesso às mais diversas configurações familiares, duas pontuações precisam ser aqui levantadas e problematizadas:

  1. Quando o CFM busca trazer, no bojo da resolução, uma redação aparentemente mais arrojada e inclusiva, fazendo menção expressa a “heterossexuais, homoafetivos e transgêneros”, peca, em certa medida, na escolha terminológica. Primeiramente, pois, quando se fala em expressão de sexualidade enquanto uma identidade própria de cada indivíduo, tem-se a figura dos “heterossexuais” e dos “homossexuais”, ao passo que a terminologia “homoafetivo” não serviria para designar a pessoa, mas sim a relação familiar na qual está inserida, destacando a Afetividade e o cuidado nela presentes[5]. Além disso, é importante frisar que a diversidade sexual e de gênero não se restringe a um binarismo hetero/homo, cis/trans, abarcando, da mesma forma, as figuras da bissexualidade, da pansexualidade, da assexualidade, da não-binariedade, da intersexualidade etc. Por esse motivo, a título de sugestão, mais adequado seria se a normativa indicasse que: “O uso das técnicas de RA é permitido independentemente da orientação sexual/expressão de sexualidade ou da identidade de gênero das pessoas beneficiárias, não importando, igualmente, para fins de sua aplicação, a formatação da entidade familiar nas quais se encontram inseridas”;
  2. Outrossim, ainda que o novo texto da resolução tenha removido a menção expressa à objeção de consciência, em sua exposição de motivos fez-se constar que tal trecho seria prescindível, pois a atuação do profissional da medicina já está amparada pelos “Princípios Gerais” do Código de Ética Médica ( CEM – Resolução CFM nº 2.217/2018), o qual já prevê essa escusa no seu Capítulo I, item VII[6]. A esse respeito, é preciso destacar, contudo, que esse direito não é absoluto, comportando restrições e não podendo o profissional da medicina recursar-se em casos: a) de ausência de outro médico; b) de urgência ou emergência; e, c) quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Além do mais, consoante sustentam Igor de Lucena Mascarenhas e Ana Carla Harmatiuk Matos (2020), o próprio CEM, em seu Capítulo I, item I[7], não autoriza que a atividade desses profissionais seja exercida mediante qualquer forma de discriminação, razão pela qual, para os autores, a escusa de consciência em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero do(a) benenficiário(a) representaria uma dupla violação, tanto aos direitos da personalidade, quanto à possibilidade de concretização de projetos parentais de pessoas integrantes da diversidade sexual e de gênero, que, por sua vez, faria surgir o direito a reparação por danos morais e também existenciais.

Por último, para enfatizar, embora as resolução elaboras pelo CFM sejam importantes, a fim de criar padrões éticos de conduta na aplicação das técnicas de RHA, a sua interpretação não pode afastar-se dos princípios fundamentais que regem o ordenamento como um todo e, em especial, aqueles que norteiam o Direito das Famílias, garantindo a concretização da Liberdade de Planejamento Familiar para os mais diversos tipos de entidades familiares, sejam elas biparentais, monoparentais, multiparentais ou coparentais, heteroafetivas, homoafertivas ou transafetivas.

 

Referências:
BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios da bioética e do biodireito. Revista de Bioética. Brasília, vol. 8, n. 2, p. 209-216, 2000, p. 212-213. Disponível em: http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/276/275. Acesso em 22 set. 2020.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2012.
MASCARENHAS, Igor de Lucena; MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Objeção de consciência médica em reprodução humana assistida: entre o direito e a discriminação. Migalhas, 17 de dezembro de 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/337964/objecao-de-consciencia-medica-em-reproducao-humana-assistida–entre-o-direito-e-a-discriminacao. Acesso em 10 jan. 2020.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015.
SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. Projetos parentais ectogenéticos LGBT: o desafio da construção das famílias homoparentais e transparentais perante o ordenamento jurídico brasileiro. 2020. 424 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas/ Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2020.
SOARES, SOARES, André Marcelo M.; PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
Notas:
[1] Código Civil de 2002: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […]I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; […] II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; […] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; […] IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; […] V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.
[2] Até, então, o CFM editou 7 normativas relativas ao uso da RHA, quais sejam: a 1.358/1992, a 1.957/2010, a 2.013/2013, a 2.121/2015, a 2.168/2017 e, recentemente, a 2.283/2020.
[3] A bioética é um ramo da ética aplicada que propõe a preservação e o respeito à condição humana frente aos avanços tecnológicos promovidos pela meio científico. Nesse sentido, um dos marcos teóricos mais relevantes é o da Teoria Principialista, aperfeiçoada por James Childress e Tom Beauchamp em seu livro “Princípios da Ética Biomética” (1979), na qual elencam quatro princípios basilares: a) da Autonomia – determinada pelo respeito à autodeterminação do paciente com relação aos tratamentos nele implementados, devendo sempre estar precedida do consentimento livre e esclarecido; b) da Beneficência – primando que o profissional da saúde sempre promova benefícios aos seus pacientes; c) da Não-Maleficência – assentado na máxima “primum non nocere”, que impõe a esses mesmos profissionais o dever de não causar prejuízos aos pacientes; e, d) da Justiça – que pressupõe uma distribuição equitativa dos recursos biotecnológicos (No mesmo sentido, ver DINIZ; GUILHEM, 2012; BRAUNER, 2003; SOARES; PIÑEIRO, 2006).
[4] Resolução nº 2.168/2017 do CFM: “2. As técnicas de RA podem ser utilizadas na preservação social e/ou oncológica de gametas, embriões e tecidos germinativos”.
[5] No mesmo sentido, ver SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da, 2020, p. 82.
[6] Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018): “VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.
[7] Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018): “I – A medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza”.

 

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Implementamos em 2020 o Programa de Integridade e Compliance FÓRUM que reforça as boas práticas em nosso ambiente interno e nas relações com o setor público e privado, estimulando todos os parceiros, sejam colaboradores ou terceiros, a compartilharem da conduta ética da empresa. Para isso, as portas da nossa casa editorial são abertas a quem puder e quiser contribuir com a exatidão desse caminho.

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Acreditamos que um efetivo Programa de Integridade e Compliance pode fortalecer nossa instituição a partir de ações e decisões éticas das pessoas com quem nos relacionamos. Assim, convidamos a todos e todas a vivenciarem melhores experiências e participarem desse movimento cultural de mudanças reforçando sempre que vale a pena sermos honestos. Acesse o nosso programa no sitewww.editoraforum.com.br/compliance.

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A prestação regionalizada e a gestão associada de serviços públicos de saneamento | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

Érica Miranda dos Santos Requi é mestre em Direito do Estado
pela Universidade Federal do Paraná (2018). Especialista em Direito Administrativo
pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (2012).
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2010).

 

A Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, intitulada o Novo Marco do saneamento, apresentou regras mais claras a respeito do exercício da titularidade por meio de gestão associada e para a prestação dos serviços públicos de forma regionalizada. Elencou a prestação regionalizada dos serviços, que antes era conceituada apenas como o atendimento a dois ou mais titulares, para elevá-la a princípio fundamental para a geração de ganhos de escala e para a garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços (art. 2º, XIV, da Lei nº 11.445).

De acordo com a nova Lei, a prestação regionalizada é a modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico, em determinada região cujo território abranja mais de um Município, tendo por objetivo gerar ganhos de escala e garantir a universalização e a viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços.

Esse formato de prestação dos serviços públicos de saneamento pode ser estruturado por região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião e também por dois novos formatos criados pela Lei nº 14.026, de 2020: a unidade regional de saneamento básico ou o bloco de referência.

A região metropolitana, aglomeração urbana e a microrregião são unidades instituídas pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, constituídas por agrupamento de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

O Estatuto da Metrópole define a região metropolitana como a unidade regional instituída pelos Estados, mediante lei complementar, constituída por agrupamento de Municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Por sua vez, define a aglomeração urbana como a unidade territorial urbana constituída pelo agrupamento de 2 (dois) ou mais Municípios limítrofes, caracterizada por complementaridade funcional e integração das dinâmicas geográficas, ambientais, políticas e socioeconômicas.

Não define, contudo, as microrregiões. Apenas estabelece que as suas disposições se aplicam, no que couber, às microrregiões instituídas pelos Estados com fundamento em funções públicas de interesse comum com características predominantemente urbanas (art. 1º, § 1º). Assim, a rigor, compete às leis complementares estaduais definirem seus conceitos e formatos de regionalização.

Como dito, o novo marco criou a unidade regional de saneamento básico, definindo-as como o agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos.

Essas unidades devem ser instituídas pelos Estados mediante lei ordinária e adotar a estrutura de governança prevista no Estatuto da Metrópole. Também, devem apresentar sustentabilidade econômico-financeira e contemplar, preferencialmente, pelo menos 1 (uma) região metropolitana, facultada a sua integração por titulares dos serviços de saneamento.

Na hipótese de os Estados não estabelecerem as unidades regionais de saneamento básico no prazo de um ano da publicação da Lei nº 14.026, de 2020, a União estabelecerá, de forma subsidiária aos Estados, blocos de referência para a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico.

O bloco de referência é o agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União, para a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico, nos termos do § 3º do art. 52 da Lei nº 11.445/2007. Contudo, a criação formal do bloco de referência dependerá da gestão associada voluntária dos titulares, a princípio, por meio de consórcio público ou convênio de cooperação.

O novo marco ainda previu a possibilidade de exercício da titularidade dos serviços de saneamento por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal. Portanto, admitiu a formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico, exclusivamente composto de Municípios, que poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal.

Os consórcios públicos conformam instrumento para o desenvolvimento urbano integrado de regiões metropolitanas e de aglomerações urbanas, ou seja, são instrumentos para a prestação regionalizada dos serviços públicos. O detalhe é que, ainda que não haja lei complementar estadual definindo a região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, voluntariamente, os municípios podem constituir consórcios públicos para a realização de objetivos de interesse comum, nos termos da Lei nº 11.107, de 2005.

Todos esses formatos apresentados pelo novo marco pressupõem a atuação do Estado (ou subsidiariamente da União) para a instituição da região de prestação dos serviços. Trata-se da regionalização compulsória aos Municípios para a prestação de serviços públicos de interesse comum, cuja consequência é a fixação de competência metropolitana para a prestação dos serviços públicos de interesse comum.

Ou seja, a criação da região metropolitana pelo Estado (ou de bloco de referência pela União) tem como resultado a fixação de uma competência metropolitana para a prestação dos serviços de interesse comum. Isso quer dizer que competirá à autoridade metropolitana, em conformidade com as normas estabelecidas na lei de criação, regulamentar a prestação dos serviços e não aos municípios de forma isolada.

Em vista disso, os Municípios que pertencem a uma região metropolitana devem planejar a prestação dos serviços públicos de saneamento de forma regionalizada e não individualmente.

Exceção se coloca na hipótese do § 4º, do art. 11-A, no caso de Municípios pertencentes a uma região metropolitana que estejam com estudos para concessões ou parcerias público-privadas em curso. Nesse caso, somente será possível dar seguimento ao processo e efetivar a contratação respectiva se houver a previsão de assinatura do contrato em até 1 (um) ano[1]. Em qualquer outro caso, o Município pertencente a uma região metropolitana deve planejar a prestação dos serviços com a região metropolitana.

Fica evidente que a Lei nº 14.026, de 2020, que estabeleceu o novo marco da política de saneamento básico no Brasil adotou a prestação regionalizada como premissa para a universalização deste serviço. E nesse ponto, apesar da necessidade de regulamentação para melhor esclarecimentos de temas específicos, o novo marco apresenta o desafio da gestão do futuro: a gestão regional.

[1] A redação deste dispositivo pode gerar certa polêmica, uma vez que o caput discorre sobre o limite de 25% para a subdelegação dos serviços de saneamento prestados por contrato. A redação comporta diversas interpretações. Uma delas, que nos parece mais plausível, seria a hipótese de que o limite de 25% para a subdelegação não se aplica aos estudos para concessões ou parcerias público-privadas em curso, nos Municípios, desde que os contratos sejam assinados em até um ano.

 

Confira mais artigos sobre o novo Marco Legal do Saneamento

FÓRUM reúne principais especialistas do país para curso online sobre a nova Lei de Licitações

A nova Lei de Licitações está muito próxima de se tornar realidade. Após aprovação no Plenário do Senado, o Projeto de Lei n° 4.253/2020 deverá ser sancionado nos próximos dias pela Presidência da República. A nova norma substituirá a atual Lei das Licitações (Lei n° 8.666, de 1993), a Lei do Pregão (Lei n° 10.520, de 2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei n°12.462, de 2011), modificando as normas referentes aos sistemas de contratação da administração pública.

Neste contexto de muitos desafios e novidades, é fundamental que os profissionais da linha de frente das contratações públicas estejam bem preparados. Pensando nisso, a FÓRUM reuniu alguns dos principais especialistas no Brasil para debater as atualizações da nova lei e os principais impactos para os setores envolvidos.

O curso online “Nova Lei de Licitações” traz os renomados professores Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, Tatiana Camarão, Ronny Charles, Murilo Jacoby e Gabriela Pércio para aprofundarem em temas, como planejamento de licitação, modalidades de licitação, contratação direta, gestão de contratos e aspectos gerais da lei. 

Com carga horária de 24 horas, as aulas ocorrerão nos dias 04, 06, 11, 13, 18 e 20 de maio de 2021, das 13 às 17 horas. Os alunos poderão ter acesso às aulas gravadas por 30 dias após o término das transmissões ao vivo. 

Faça sua pré-inscrição por meio da página do curso. Saiba mais informações pelo telefone (31) 9 8372-3962 ou pelo e-mail comunicacao@editoraforum.com.br.

Webinar debate mudanças nas práticas punitivas no modelo socioeducativo

O método praxiológico de Pierre Bourdieu e os resultados da pesquisa indicando sugestões para mudanças nas práticas punitivas no campo socioeducativo será o foco do webinar de lançamento do livro  “O Silêncio além das Grades“, com a autora da obra, Ana Cláudia de Souza Valente, e as professoras convidadas Karyna Batista Sposat e Liziane Paixão Silva Oliveira. A conferência ocorrerá no dia 17 de março, às 10 horas (horário de Brasília).

Para a autora Ana Cláudia, a importância do tema se dá em torno das reflexões sobre o agir das instituições e agentes que compõem o campo socioeducativo. “Iremos mostrar os desafios que devemos superar para atingir os objetivos normativos na aplicação de medidas socioeducativas, especialmente a internação.”

A obra  “O Silêncio além das Grades”  é fruto de dissertação de mestrado da autora e busca identificar quais seriam as bases de um modelo de atendimento para adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação no Distrito Federal, uma vez que a construção jurídica da responsabilidade penal para adolescentes não se mostra suficiente para orientar a práxis. 

O objeto estudado no livro foi a governança Intersetorial do campo de administração da justiça penal juvenil, compreendendo a segurança pública, o sistema de justiça e os órgãos de execuções de medidas socioeducativas, pois, ao reproduzirem as mazelas do sistema penal adulto, promovem isomorfismo que dificulta a proteção dos adolescentes autores de atos infracionais.

As inscrições para a palestra online são gratuitas e podem ser realizadas neste link

Nova Lei de Licitações segue para sanção presidencial 

O Plenário do Senado aprovou nesta quarta-feira (10/03) a redação final do projeto da nova Lei de Licitações (PL n° 4.253/2020). Com isso, o texto seguirá para sanção presidencial. 

A nova norma substitui a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993), a Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (RDC – Lei nº 12.462/11). Entre os destaques estão a criação de novas modalidades de contratação, a tipificação de crimes relacionados a licitações, além de disciplinar itens do assunto em relação às três esferas de governo: União, estados e municípios. 

O projeto enfatiza ainda muito a fase de planejamento e traz mais segurança ao poder público, como seguro-garantia nas licitações, o que poderá contribuir para a redução de obras inacabadas. Outra novidade é o portal nacional de contratações públicas, que centraliza os procedimentos licitatórios dos entes federados por meio de um banco de dados unificado.

Na opinião do relator do PL, o senador Antonio Anastasia, a aprovação definitiva do texto encerra um longo processo de racionalização da legislação brasileira. “Os institutos da lei vão representar, no futuro próximo, uma renovação da gestão pública brasileira, pela sua agilidade, adequação, modernidade e transparência.”

Curso sobre a nova Lei de Licitações

Com a proposta de debater os principais pontos do processo licitatório, já com abordagens da Nova Lei de Licitações, a FÓRUM reunirá alguns dos principais especialistas do tema no país em um curso online e exclusivo. Os professores Jacoby Fernandes, Tatiana Camarão, Murilo Jacoby, Ronny Charles e Gabriela Pércio tratarão das atualizações da nova lei e os principais impactos para os profissionais que atuam na linha de frente das contratações públicas. 

Para saber, em primeira mão, mais informações sobre programação e investimento desta capacitação, basta cadastrar-se neste link

6 livros digitais assinados por grandes autoras do Direito

A FÓRUM se orgulha por contar, em sua base de autores, com notáveis mulheres que são referências em diversas áreas do Direito. A diversidade de especialistas torna o acervo ainda mais rico. No catálogo de livros, em especial os digitais, são mais de 200 obras assinadas ou coordenadas que abordam temas, como compliance, contratações públicas, empresas estatais, Direito Tributário, planejamento sucessório, famílias simultâneas, entre outros assuntos. 

Estão presentes entre as escritoras da editora, nomes consagrados e novas promessas do Direito, como a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, Margarete Coelho, Marília Pedroso Xavier, Odete Medauar, Alécia Paolucci, Fernanda Marinela, Eneida Desiree Salgado, Luciana Brasileiro, Teresa Villac e mais dezenas de autoras competentes. 

Durante o mês de março, você tem a oportunidade de adquirir excelentes publicações, em formato digital, de autoria e coordenação das prestigiadas doutrinadoras da casa. As obras estão com 30% de desconto na Loja de Livros Digitais. Para lhe auxiliar na pesquisa bibliográfica, selecionamos 6 livros imperdíveis, confira:

 

Arquitetura do Planejamento Sucessório

Coordenadora: Daniele Chaves

Este segundo tomo, além de confirmar o sucesso editorial obtido, revela-se extremamente oportuno, oferecendo o necessário prolongamento à problematização de numerosas questões, que tomam por base a necessidade de conformação da propriedade à sua função social e da família à perspectiva de comunhão de interesses, em que a autonomia deve ser valorizada como instrumento de realização da pessoa humana em sua comunidade social mais íntima. Nesta substanciosa obra, debruçam-se os eminentes coautores na análise dos temas mais diversos, atentos às mudanças de paradigma e dos próprios fundamentos do direito das sucessões.

 

Controle da Administração Pública

Autora: Odete Medauar

Este livro discorre trata dos controles incidentes sobre a Administração Pública e seus agentes, visando a despertar atenção para o assunto e a propiciar reflexão a respeito. Aspectos teóricos, instituições nacionais e instituições estrangeiras merecerão referência, com o objetivo de melhor expressar as múltiplas faces do tema.

 

As Famílias Simultâneas e seu Regime Jurídico

Autora: Luciana Brasileiro 

Este livro discorre trata dos controles incidentes sobre a Administração Pública e seus agentes, visando a despertar atenção para o assunto e a propiciar reflexão a respeito. Aspectos teóricos, instituições nacionais e instituições estrangeiras merecerão referência, com o objetivo de melhor expressar as múltiplas faces do tema.

 

Licitações Sustentáveis no Brasil

Autora: Teresa Villac

O livro aborda a inserção da sustentabilidade nas contratações públicas brasileiras em uma perspectiva transdisciplinar, que relaciona direito administrativo, direito ambiental, ética ambiental e desenvolvimento sustentável, contextualizando o tema, na Parte I – Sustentabilidade e Ética, com robusto referencial teórico e análise crítica. A presente 2ª edição foi enriquecida com quatro novos capítulos, que compõem a Parte II – A implementação com segurança jurídica das contratações públicas sustentáveis, com orientações da autora. Foi analisada a sustentabilidade na Lei nº 8.666/1993, no recente Decreto nº 10.024/2019 e na Lei nº 13.979/2020, referente às contratações públicas para enfrentamento da pandemia de COVID-19. Consta seleção acurada de jurisprudência do Tribunal de Contas da União sobre contratações públicas sustentáveis, além de observações e sugestões ao PLS nº 1.292/1995, que versa sobre o projeto da nova Lei de Licitações.

 

Regulações Expropriatórias

Autora: Luiza Vereza

O presente trabalho investiga o fenômeno das regulações expropriatórias a partir de uma concepção ampla do instituto da desapropriação. Assentada a premissa de que o art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal atrai para o seu campo de incidência toda espécie de sacrifício ao direito de propriedade, tem-se que o Estado não pode se valer do instrumental regulatório para desapropriar sem a observância dos requisitos constitucionalmente previstos. Poderá fazê-lo apenas se percorrer o caminho constitucional da desapropriação, por meio da deflagração de um devido processo expropriatório que garanta aos expropriados uma solução compensatória prévia e justa. Além da redação expressa do art. 5º, inciso XXIV, da Constituição, outros dispositivos do próprio texto constitucional legitimam a mesma conclusão.

 

Ativismo, Garantismo e Cooperação em Crise

Autora: Amanda Lobão Torres

Expõe, entre outros temas, a diferença entre texto e norma, a ausência da separação entre o direito e a moral, a busca pela vontade da lei ou do legislador, a descredibilidade das considerações à sentença como resultado de um processo silogístico, a impossibilidade da aplicação sem interpretação, a diferença entre princípios gerais do direito e princípios constitucionais, a distinção semântica entre regra e princípios de Robert Alexy, as reflexões sobre os princípios em Ronald Dworkin e a inseparabilidade entre questão de fato e questão de direito.

Dispensa de autorização conjugal e a inobservância do regime de bens no Programa Casa Verde e Amarela: o alto preço da tentativa de efetivação do direito à moradia | Coluna Direito Civil

 
Débora Brandão
é pós-doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca.
Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP.
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.
Professora de cursos de pós-graduação.

 

 

A Lei n. 14.118, de 12 de janeiro de 2021, que instituiu o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), tem como objetivo a promoção do direito à moradia para famílias que atendam a determinados requisitos, em nítida implementação de mais uma política pública de efetivação do Direito Humano de moradia digna.

O PCVA foi estabelecido com diretrizes expressas no art. 2º da Lei para fomentar o atendimento habitacional compatível com a realidade local, com o reconhecimento da diversidade regional, urbana e rural, ambiental, social, cultural e econômica do País, observando a função social da propriedade, sem se esquecer do necessário desenvolvimento econômico e social, a fim de efetivar o desenvolvimento urbano sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

Este Programa tem como objetivo direto, para as pessoas naturais, aumentar a quantidade de residências, sobretudo para a população de baixa renda.

Trata-se de lei com algumas impropriedades técnicas, mas o que chama a atenção é o fato de ser possível entender o que, de fato, o governo federal planeja apenas no art. 8º, § 6º, ao dispor que as unidades habitacionais produzidas pelo Programa poderão ser disponibilizadas aos beneficiários sob a forma de cessão, doação, locação, comodato, arrendamento ou venda, mediante financiamento ou não, em contrato subsidiado ou não, total ou parcialmente, conforme previsto em regulamento.

São inúmeras categorias jurídicas à disposição da população, que até então, tinha acesso aos programas habitacionais, notadamente, por meio de venda ou cessão. As possibilidades são importantes a fim de fomentar o direito à moradia digna e deverão ser regulamentadas para que se clareie o modo como esse direito se efetivará.

Nota-se que há alguma atenção por parte do governo federal a respeito deste tema, que integra o rol dos Direitos Humanos. No entanto, é preciso salientar algumas questões que surgem e merecem a atenção da comunidade jurídica.

Em primeiro lugar, não se trata de norma autoaplicável porque ela mesma condiciona a sua efetividade à existência de regulamento, que deverá ser redigido sem prazo definido.

Mas superada a falta do regulamento, os artigos 13, 14 e 15 dessa lei causam certo espanto.

O art. 13 estabelece que os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 do Código Civil.

Resgata-se a mulher “chefe de família”, num conceito de família hierarquizada, o que não condiz mais com a realidade jurídica vigente no Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988. A designação escolhida pelo legislador deveria ser outra, afinada com a ordem constitucional.

Em relação à regra legal, doações, vendas, cessões serão formalizadas, preferencialmente, em nome da mulher. O advérbio preferencialmente não afasta a possibilidade de os contratos serem formalizados em nome do marido ou de ambos.

Porém, a Lei estabelece outra possibilidade e, esta, mais grave: a dispensa da autorização conjugal disposta no art. 1.647 do Código Civil, nos casos de alienação ou gravação de ônus real sobre bens imóveis, para os casados em qualquer regime que não seja a separação convencional. As pessoas casadas sob o regime de comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aquestos ou regimes personalizados não precisam se submeter ao comando do Código Civil brasileiro[1].

A razão de estabelecer a preferência para que o imóvel fique em nome da mulher tem bases que remontam à segunda metade do século passado, quando políticas públicas de fixação das pessoas na terra adotaram o mesmo critério sob a alegação de que a mulher precisava ter segurança eis que, com o fim do relacionamento conjugal, precisavam ter segurança porque historicamente permaneciam com a guarda dos filhos do casal.

O legislador se esqueceu de que o critério que deve nortear políticas públicas como a presente é vulnerabilidade, que independe de gênero ou existência de prole.

A Constituição Federal estabelece a igualdade entre homens e mulheres no exercício dos direitos e deveres inerentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º) e o texto da lei desiguala expressamente.

É sabido que se há elemento de discrímen, para realizar a diferenciação no tratamento, há suporte jurídico e inexiste inconstitucionalidade. Mas, concretamente, a lei não foi nesta direção.

Também ignorou o fato de que a composição familiar não é exclusivamente heterossexual e, havendo duas mulheres ou dois homens vivendo maritalmente é preciso estabelecer um critério, que deveria, mais uma vez, ser o de vulnerabilidade e não o gênero.

A Lei também ignora que os casamentos são estabelecidos sob dimensões patrimoniais, normalmente, fruto do exercício da autonomia privada dos nubentes que escolhem o regime de bens mais apropriado para reger suas relações, ao dispensar os dados relativos ao cônjuge ou companheiro do titular do bem e a indicação do regime de bens no momento do registro do bem no Cartório de Registro de Imóveis (§ 1º do art. 13).

O art. 14 da Lei que institui o PCVA estabelece que em caso “de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS”.

Mais uma vez a inconstitucionalidade salta aos olhos porque desconsidera, além do regime de bens, o fato de que pode ter havido, e é provável que assim tenha ocorrido, pagamento com a colaboração de ambos, direta ou indireta.

O eventual enriquecimento sem causa que a mulher terá em quaisquer das duas hipóteses (celebração do contrato/registro ou por ocasião da partilha pelo fim do relacionamento), de acordo com o art.15 da Lei, será resolvido em perdas e danos.

Porém, é de se questionar se é a melhor solução porque o objetivo da lei é a efetivação da política pública habitacional, especialmente para a população de baixa renda e o pagamento de indenização deve ficar inviabilizado na maioria dos casos, justamente por impossibilidade econômica da mulher proprietária.

O Programa tem o mérito de fomentar o acesso ao direito à moradia à população de baixa renda por diversas formas, inclusive por meio da venda da propriedade, mas não apenas ela, que é passo largo na efetivação dos Direitos Humanos.

Porém, em tempos de crescimento de feminicídio, a lei, ao estabelecer a propriedade ou a titularidade do direito relativo à moradia em favor da mulher, sem justificativa razoável, pode ser mais uma hipótese de agravamento de crise conjugal, com o desfecho na insensatez da “feitura da justiça pelas próprias mãos”, por parte do marido que se vê sem qualquer direito sobre o bem pelo qual pagou durante anos de sua vida.

Apartar-se da regra do Código Civil, que é boa e importante para a segurança patrimonial do casal, parece ser equívoco que deve ser corrigido pelo legislador porque não é preciso ser vidente para antever mulheres sendo mortas por maridos inconformados pela injustiça fundada na lei. O sonho da casa própria nasce no coração dos casais e sob o solo sagrado do lar é possível que se ceife a vida de mulheres que sonharam com suas famílias, debaixo de um teto para estabelecerem seus lares.

[1] Pode ter sido pensado para evitar a fraude de o casal vir a se divorciar, apenas juridicamente, sem nunca ter deixado de conviver maritalmente, para que não venham a solicitar o benefício mais de uma vez.

Carta aberta às mulheres

Maria Amélia Mello
Diretora Executiva da FÓRUM

 

Há um ano, 8 de março de 2020, ainda não vivíamos a pandemia. Essa afirmação me surpreende. Houve um tempo antes e haverá um tempo depois dela. Os primeiros indícios já surgiam. Pouco mais de dez dias depois, em 19 de março, numa vertigem de decisões que se agravavam hora a hora, colocamos 95% da empresa em trabalho remoto, situação que se tornou definitiva. Começava, para a FÓRUM e para o Brasil, a crise trazida pelo novo vírus.

Para o mercado editorial o efeito foi devastador. Em queda há anos, em um país com baixa tradição de leitores, ela significou o sepultamento de muitas editoras e livrarias. Mas para a FÓRUM foi diferente. Foi diferente por sermos mulheres, por vivermos o feminino com tenacidade. Por isso, escrevo esta carta aberta num 8 de março.

Não afirmo que a FÓRUM é mulher somente porque eu, diretora executiva, sou mulher. Assim como 75% da alta gestão, 65% do Conselho Gestor e cerca de 56% do quadro total de colaboradores. Esses números são consequência da forma como vivemos o trabalho aqui. É ela que nos torna um lugar onde as mulheres podem chegar com firmeza, crescer e se realizar. Assim como é consequência dessa forma feminina de ser o nosso crescimento mesmo durante tudo isso que vivemos como humanidade. 

Se antes já tínhamos uma cultura de compartilhar e não reter, de servir e não competir, de delicadeza e não agressividade, na pandemia aprofundamos nossas bases. Colocamos todo o nosso foco em ser um ponto de segurança e estabilidade para nossos colaboradores no caos que emergia. Protegemos com todos os meio a sua saúde integral. Zelamos pela integridade emocional, mental, financeira e física  de cada um deles, ainda que em detrimento da projeção de resultados.

Em bom português, nós cuidamos das pessoas. Cuidamos de verdade. Nada de enxugar o quadro antes de exaurir todas as outras tentativas. Nada de reduzir salários num momento em que muitas famílias passaram a contar somente com a renda de quem trabalhava na FÓRUM. Nada de metas de venda insensíveis ao novo contexto do mercado. Nada de cortar iniciativas como aula de ioga, grupo de acolhimento psicológico, palestras e treinamento de gestores em segurança emocional: na verdade, criamos e ampliamos. O resultado foi uma empresa em crescimento com a melhor equipe que já tivemos, colhendo resultado após resultado mesmo no cenário o mais hostil. 

No meio disso tudo, lá estavam as nossas mulheres. Isolamento social, crianças sem escola e com aulas em casa, idas ao supermercado transformadas em odisseias, a carga de trabalho invisível já enorme se avolumou ao infinito. Com seus familiares perdendo renda, pressionados no trabalho, adoecidos em diversos âmbitos, mesmo assim elas dobraram sua dedicação e se tornaram gigantes, cada uma em suas funções, fazendo a nossa FÓRUM mudar de patamar como empresa. 

Por mais que ventasse, por mais que nevasse, por mais frio que fizesse, por menos luz que houvesse, era o tempo delas. As flores não paravam de surgir naquela árvore seca, uma após a outra, ressignificando o inverno com uma possibilidade de primavera. Porém, esta não é uma carta-postal com o registro do desabrochar de cerejeiras, embora pudesse ser. 

Esta foi a crise que mais atingiu o  trabalho feminino. Pela primeira vez desde que há registros, o emprego feminino foi o mais prejudicado. As causas não são complexas. Mulheres normalmente ganham menos, assumem mais trabalho doméstico, e num cenário em que a renda se fez escassa e o trabalho da casa se tornou imenso. 

Desconfio que há ainda um ponto mais sutil. Já se vão 92 anos que Virginia Woolf defendeu que para exercer um trabalho criativo a mulher precisava de um teto todo seu. Ela falava do trabalho de escrita, eu expando aqui o conceito. Não é somente uma questão de manter a concentração para terminar um relatório enquanto o filho exige atenção. É algo mais sutil. É aquele espaço imaterial, aquele abrigo emocional de não precisar pensar no almoço a fazer, no excesso de eletrônico das crianças, na torneira que está pingando, na roupa que já terminou de bater, na possibilidade da mãe idosa ter se esquecido da hora do remédio, tudo isso após uma noite mal dormida, pois o bebê ainda acorda algumas vezes de madrugada. 

São tarefas feitas sempre com amor, mas que não permitem que a alma tenha respiro e possa juntar uma ideia com a outra, e produzir algo totalmente novo e genial. Os escritórios, ainda que na forma de uma mesa e uma máquina de café, proporcionavam um abrigo temporário da Casa, essa entidade viva. Em home office, se ganhamos tempo com essa junção, perdemos esse espaço reservado somente para o trabalho, que pode ser precioso.

Enquanto cuidado for “coisa de mulher”, as chances de que uma mulher possa de fato exercer com plenitude sua criatividade, possa de fato realizar todo seu potencial profissional, serão sempre limitadas. Enquanto nutrir, educar, amparar, ouvir, estruturar as condições de manutenção da vida e todas essas mínimas e infindáveis coisas cotidianas que se impõe para que a existência humana prospere, enquanto tudo isso for relegado ao feminino, os espaços de criação podem até vir a existir, pois somos mestras em cavá-los como dá, em achar brechas. Mas com que frequência e a que custos pessoais e sociais? 

Essa carta foi escrita no último tempo do prazo, com uma pequena filha comendo maçã e vendo TV com a cabeça no meu notebook. Teria talvez sido uma carta melhor se fosse escrita num escritório após umas horas livres de meditação e leitura. Garanto que teria sido menos difícil de escrever. Sei que enternece a imagem de cachinhos e bochechas à vista, e de fato são o amor da minha vida. Mas fazer sempre duas, três, cinco coisas ao mesmo tempo, ainda que mentalmente, drena nossas forças e tira a qualidade do resultado, e o pior: das nossas vidas. Custa um esforço tremendo – as estatísticas de doenças mentais em mulheres não mentem. Imagino quantas de nossas autoras não terminaram assim suas teses, suas obras. E cogito se por isso, entre outras razões, haja bem mais autores homens que nos trazem seus originais.

Cuidar é sim maravilhoso. Aquece o coração. Criar condições para que outros se desenvolvam é a coisa mais linda e realizadora do mundo. Essa é, na verdade, uma carta de amor. Por que precisa ser feita só por mulheres? Cuidar não é o problema, o problema é que uns só cuidem, e outros só sejam cuidados. 

Das muitas questões sociais escancaradas pela pandemia, no dia das mulheres esta foi a que escolhi iluminar. Há quase um século pedimos um teto todo nosso para escrever nossos livros, criar nossas empresas, inovar nossos processos, realizar nosso potencial. Não sei que inovações no trabalho, na sociedade e em nossos corações serão necessárias para que tenhamos garantido esse espaço anímico. Os meus anos de vida, que se tornam agora ainda mais incertos, serão para oferecer teto para que o maior número de mulheres possam florescer.